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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (E)
O homem concretado (1)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas. É desse período esta série de matérias especiais, que começou a ser publicada em 9 de dezembro de 1984 no jornal santista A Tribuna:
 
O homem concretado

Desde o início da sua urbanização, na passagem do século (N.E.: século XX), Santos vem passando por um processo de expulsão gradativa das populações carentes, buscando-se assim a valorização dos espaços disponíveis. Além da discriminação, isso gera a perda da qualidade de vida, com o concreto se impondo e influenciando as relações sociais, cada vez mais frias.

Texto: Lane Valiengo
Fotos: Araquém Alcântara

A HISTÓRIA

Ainda não era uma cidade. Areia, mangue e cortiços se espalhavam. Havia espaço para respirar, para ocupar. Para fazer o olhar se perder. O século XX se aproximava, novos tempos chegando. Um porto se construía. Caminhos simples, muitas chácaras, trapiches de madeira. A locomotiva atravessando a Serra graças à moderna tração funicular, trazendo o café, rico café, abençoado café. A vida era o café.

A vila que ainda não era cidade começa a se transformar, no último quarto do século. República proclamada, as relações trabalhistas começam a mudar a face do lugar. A observação é de Wilson Roberto Gambeta, em Desacumular a Pobreza, Santos, Limiar do Século: "As cidades imersas no sistema exportador de café transformavam-se. Sofriam uma redefinição de suas funções, redistribuíam seus espaços internos. Os resquícios da arquitetura colonial, vergonha de uma elite modernizadora, seriam soterrados, cuidadosamente apagados da face urbana. As tradicionais atribuições administrativas, militares, comerciais e religiosas dos centros urbanos se ampliavam. Simultaneamente, novos setores apareciam: transportes, bancos, comércio exportador, ferrovias, indústrias e empresas de serviços públicos".

Ainda não era uma cidade. Mas começava a ser. Imigrantes desembarcados se fixavam, trazendo sua força nos braços e idéias sonhadoras na cabeça. Pensavam em riquezas mas ocupavam os porões e as encostas dos morros.

O noroeste soprava como se fosse o vento da esperança. Ou a suave brisa do crescimento. Embora caótica, Santos já é Cidade. Mas não sem sofrimentos. Acompanhava o crescimento de São Paulo, dando um salto longo em direção ao futuro. Taxa de desenvolvimento: 223%. E não havia inflação.

Em 1872, a população oficial era de 9.151 habitantes. No final do século já acusava 50.389. E o Censo de 1913 provava que os tempos haviam mudado: 88.967 pessoas.

Nem tudo era tão animador: morrer era muito fácil, como mostra o relatório do chefe da Comissão Sanitária. Febre amarela, escorbuto, varíola e malária. Nos últimos dez anos do século, morreram mais de 22 mil pessoas. Desembarcar em Santos, no verão, era como descer aos infernos sem sair da Terra. Navios esperavam na barra por tripulantes que substituíssem os que morriam. O porto congestionado, parado. E ainda em obras.

Já era então uma cidade.

A CIDADE

Agora sim, os habitantes podiam se orgulhar: Santos tornava-se importante, exportando do Brasil para o mundo. Atraía gente como nunca. E perdia a inocência e os espaços. A cidade se expandia, tomava outros rumos, ocupava a orla da praia. Era certamente uma cidade formando-se, sombrias perspectivas que se desenhavam mostravam isso.

A oferta de moradias estava esgotada, não havia lugar para tanta gente, atraída pelos negócios e pela construção do porto, o maior da América Latina. Surgem as habitações coletivas, divididas em cubículos, abrigando famílias amontoadas. E que eram dizimadas pela peste. Uma notícia de A Tribuna do Povo, de 17 de julho de 1898, dizia que a fiscalização municipal encontrava numa casa do Largo dos Gusmões nada menos que 186 moradores, vivendo onde não cabiam nem 40.

A vida não era mesmo fácil e Santos era uma espécie de "cidade acampamento", como observa Gambeta, cheia de "pocilgas", de acordo com o sanitarista Tolentino Filgueiras.

O dinheiro com cheiro de café comprava grandes chácaras na orla, do mar, região até então pouco ocupada. Mas, na área central, era preciso tomar algumas providências: sanear, disciplinar, urbanizar. Acabar com os porões da miséria. E com a população que morava nesses porões.

Começa a se desenhar uma verdadeira cidade, numa cidade moderna. E começa aqui também a implantação de um modelo discriminatório de urbanização, com a expulsão da população carente. Um modelo que resultou na cidade que temos hoje. As contradições também têm história.

O CONFLITO

Nos tempos coloniais, senhores e escravos dividiam o mesmo espaço. Só as desigualdades os separavam. O País resolve dar mais um de seus gritos, vira República e tudo muda. Muda o regime de trabalho, que passa a ser assalariado. Em vez de senzalas, surgem os bairros operários, sempre um pouco afastados do Centro. A luta pelo espaço é intensa e a separação é marcada por significativos detalhes.

Conta Gambeta: "O delineamento classista dos bairros era claro já no início deste século (N.E.: XX). Talvez até mais evidente do que em nossos dias, quando tais limites muitas vezes parecem borrados. Distinção geográfica que não transparecia somente nas fachadas das casas. Era igualmente denunciada pela diferente topografia e saneamento do solo. Pela distribuição desigual dos serviços urbanos (iluminação, calçamento, água/esgoto, gás, coleta de lixo, bonde, telefone, ajardinamento e correios). Pelas distâncias guardadas em relação a indústrias e ferrovias".

Aos trabalhadores foram reservados os terrenos mais desvalorizados, como baixadas ribeirinhas e morros escarpados e sem melhoramentos públicos. Gambeta define: "A dilatação do perímetro urbano é também um lento processo de segregação social. Silencioso, mas não sem violência e lutas".

Qualquer espaço era aproveitado: "Camas ou simples esteiras eram colocadas até em corredores e vãos de escadas. Por vezes, buracos estreitos abertos na parede serviram para pernoite a dois mil réis. No espaço entre o forro e o telhado puderam ser instalados mais que uma família. Os porões - impostos às novas construções como medida de isolamento sanitário do piso - alojaram aqueles que se dispuseram a curvar sob a baixa altura dos soalhos".

A típica moradia operária era o cortiço de madeira. Em A Campanha Sanitária em Santos, Guilherme Álvaro conta que, em 1830, foram contados 771 cortiços. Pouco menos da metade da população morava em cortiços, sem as mínimas condições de saúde.

Os problemas da Cidade, que ainda não era grande: em 1905 começam as obras de saneamento, seguindo-se o projeto de Saturnino de Brito. Foram mais de 80 quilômetros de rede coletora e mais 17 quilômetros de canais para águas pluviais, para drenar as áreas pantanosas. Deixava-se então de despejar o esgoto sem tratamento no mar, junto ao porto. O depósito passa a ser feito na Ponta de Itaipu, "fora da enseada".

A Comissão Sanitária cuidava do programa de saneamento, eliminando os focos de mosquito, transmissores da febre amarela. E, é claro, demolindo, à força, os cortiços.

E os moradores desses cortiços?

"Batalha miúda, entre forças desiguais". Assim Gambeta classifica o conflito entre os moradores e a Comissão Sanitária. "A liberdade individual não poderia, se dizia, pôr em risco a saúde coletiva".

A solução era a construção das "vilas operárias", embriões dos atuais conjuntos habitacionais. A política, como se nota, não mudou. Em Santos, a postura adotada com relação à habitação visava eliminar as áreas de adensamento. Gambeta cita o sanitarista americano Fuertes: "Tratava-se de disseminar a pobreza acumulada". Mas a preocupação com o padrão de vida dos operários nunca chegou a ultrapassar o nível das idéias. As "casas populares" que o Estado construiria não saíram do papel. A razão é óbvia: seria uma interferência direta nos "negócios imobiliários".

Tudo ocorreu muito bem: a febre amarela foi extinta em 1904. Os cortiços já não existiam. E os operários foram empurrados para fora dos perímetros urbanos. Ocuparam os morros, construindo barracos, ou áreas ainda vazias. Mas a Cidade não parava de crescer e ameaçar: logo mais, todos seriam empurrados para mais longe ainda, para a periferia, para os mangues. "O mesmo progresso que introduzia melhoramentos públicos elegia os excluídos desses benefícios", sentencia Gambeta.

A NOVA ORDEM

Uma cidade tem que ser coerente com os sistemas que a criaram, mesmo que estes sistemas sejam injustos ao extremo. Com o fortalecimento dos mecanismos capitalistas, os espaços santistas são nitidamente divididos "ao arbítrio dos dominantes": as praias para o lazer, o Centro para o comércio, o estuário para o café e as áreas próximas à serra para as indústrias". Gambeta, novamente: "Fora do arruamento ficaram os indesejáveis - hospitais de doenças contagiosas, o cemitério, o matadouro, a hospedaria de imigrantes, o mercado, o depósito de lixo, as cocheiras e os barracos de madeira".

O ponto inicial da vila se torna um razoável centro comercial e os bairros burgueses formam-se em direção às praias. Entre eles e o Centro, grandes avenidas. No meio, mangues e casebres. Em 1912, Roberto Simonsen iniciava a construção da Vila Belmiro, que deveria ser um modelo de vila operária. Mas o próprio Simonsen, desolado, dizia que as casas nunca foram habitadas por operários, mas sim pela classe média, os operários de casaca. E concluía que "a classe obreira prefere habitar nas casinholas de madeira, em pleno campo, livre da ação disciplinadora da higiene e do fisco".

Passado e presente entrelaçados, os ciclos históricos se repetindo: não era por uma questão de preferência que os operários continuavam em seus barracos. Era, sim, a única opção para quem não tinha direito a conviver com a sua cidade, para quem não recebia nunca a sua parte do crescimento urbano. Para quem continuava sendo espoliado. E expulso.

Foi esse processo de expulsão gradativa que delimitou espaços, que valorizou áreas, que impôs funções. A urbanização reflete sempre o tipo de relacionamento social existente. Por isso, existe um cinturão de miséria cercando toda a Baixada Santista.

O CONCRETO

Já era uma cidade, com sonhos de grande cidade, grande cidade rica. Década de 60, década de um novo salto: em cinco anos, o número de prédios na orla das praias passa de cinco para 157. Os antigos palacetes construídos pelo café desaparecem. Assim como desaparece uma época. O paredão se forma, a invasão é inevitável. Já havia a Via Anchieta, as indústrias chegavam a Cubatão. E o concreto toma conta de todas as ruas, de todas as vias.

O processo de substituição urbana acelerada iria até 1964, sempre 1964. De lá para cá, as tendências foram apenas acentuadas. Há um grande desenvolvimento econômico, mas desigual, pois esse desenvolvimento não reverte propriamente para a população. Santos apenas reproduzia o modelo de ocupação do solo que caracteriza o País, uma ocupação indiscriminada, sem planejamento, sem coerência. E sem que se pense no homem, é o concreto que reina absoluto.

Não foi o problema habitacional que gerou a Cidade que temos hoje, saturada, extremamente adensada, sufocante até. Foi a perspectiva de ganhos ilimitados, que despertou o interesse de capitais vindos de fora, principalmente de São Paulo.

As conseqüências da verticalização desenfreada, da ocupação irracional dos espaços, não poderiam ser mais cruéis: queda da qualidade de vida, falta de ventilação, uma ilha totalmente saturada. Cada vez mais concreto. E o pior: modificando inclusive o relacionamento entre as pessoas, moldando o seu comportamento. O homem é o reflexo do meio em que vive e, ao mesmo tempo, influencia esse meio.

O HOMEM CONCRETADO

Aos poucos, o homem urbano se parece cada vez mais com o meio em que vive. Parece-se com o concreto. Endurece o coração, se isola, se refugia na solidão. Seu mundo é seu pequeno apartamento, ali se sente seguro. Conviver passou a ser um pequeno bom-dia no corredor ou algum aviso pelo interfone.

A superpopulação, como temos em Santos, destruiu o conceito de espaço comunitário. Até as praças são concretadas, como lembra o engenheiro e vereador Alcindo Gonçalves. E as pessoas passam a perder a noção do seu espaço físico.

A vila que pretendia ser cidade ultrapassou seus limites. Está saturada, lotada. E cria um homem urbano essencialmente isolado, guardando suas frustrações entre quatro paredes e um elevador, fazendo com que esqueça de se encontrar com outros homens. Estamos perdendo a capacidade de vivenciar a Cidade, de vivenciar nossas próprias vidas. Perdendo a própria identidade. Transformando-nos em homens concretados, sem faces nem emoções. Incapazes de nos indignarmos.

Mas ainda não estamos atolados no caos. Estamos apenas caminhando para ele.

O concreto não chegou ainda ao coração, à emoção. A Cidade é o produto dos nossos atos, dos nossos pensamentos, das nossas lutas. Mas pode ser também o espelho da nossa ousadia.

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