Matéria publicada em A Tribuna de 24 de abril de 1940
Foto-reprodução feita em 1/8/2007 e enviada a Novo
Milênio em 17/8 por Luiz Fernando Menezes
Na Liberdade, uma das últimas filhas de escravos
Vitor Gomes de Andrade Silva
Os
olhos negros de Helena descem vagarosamente. Fixos, miram o papel amarelo e deteriorado repousado sobre suas mãos. Elas seguram um antigo documento
que comprova a posse da residência de sua família.
Desde que nasceu, Helena Monteiro da Costa, de 82 anos, mora na mesma casa. Esta é apenas uma
modesta e pequena parte da herança deixada por seu pai, Anízio José da Costa, um ex-escravo que morreu aos 110 anos, em 1940. A casa é uma fração do
grande terreno, na Rua da Liberdade, em Santos, que seu pai recebeu da Prefeitura, graças à ajuda de uma rica portuguesa abolicionista. "Ela
era uma mulher muito boa e tinha muito carinho por meu pai", diz Helena.
Nessas terras, que iam da avenida Siqueira Campos (canal 4) até a rua Senador Dantas, ela viveu
durante anos com seus pais e irmãos. Lá, plantavam e colhiam seu próprio alimento (como milho, arroz, feijão e diversos tipos de verduras), criavam
cabras, porcos, galinhas e até macacos. "Éramos praticamente auto-suficientes. Comíamos o que
cultivávamos", recorda-se.
Porém, com o passar das décadas, as transformações da sociedade santista interferiram no modo de
vida da família de Helena. "Nossas terras eram vastas. Não tínhamos como cuidar de toda sua
extensão e, por conseqüência, invadiram-nas e tomaram posse de nossa propriedade. Mas a vida continua."
Helena conta que seu pai foi, possivelmente, o último ex-escravo a trabalhar em Santos, uma das
primeiras cidades do Brasil a iniciar, em 1870, uma campanha contra a escravidão. Embora tenha sido bastante longa, sua vida não foi nada fácil.
Quando criança, fora roubado de Angola e traficado no mercado de escravos. Chegou a águas brasileiras a bordo de um navio negreiro que trazia
angolanos para trabalharem de modo escravo.
O esguio garoto desembarcou no Porto de Santos e, preso às imposições físicas e morais dos
brancos, seguiu direto a Pindamonhangaba, interior do Estado, e, depois, para a cidade de São Paulo, para trabalhar numa lavoura cafeeira. "Após
anos, em um ato de resistência à exploração escravista, meu pai refugiou-se em Santos e ficou abrigado em um quilombo, onde pôde reviver as
tradições culturais de seu povo. Lá, ele permaneceu por algum tempo", ressalta Helena.
Mesmo após a aprovação da Lei Áurea, em 1888, o racismo ainda era muito acentuado e, em sua grande
maioria, os trabalhos braçais eram atribuídos aos negros. Com a sanção da Lei Áurea, Anízio conseguiu adotar o ofício de ensacador no Porto de
Santos, um dos trabalhos mais nobres e bem remunerados que um negro poderia ter. "Nesta
função, trabalhou durante décadas, até se aposentar aos 108 anos", conta Helena.
Seguindo seu estilo de vida, apesar de seus 83 anos, a remanescente filha de escravo não dá
vez para a ociosidade. "Ainda trabalho. Passo roupas para fora". E é
exatamente o fato de ter um ofício que lhe deixa com esta vivacidade e uma forte e rígida energia.
Helena da Costa
Foto publicada com a matéria
Almoço, encontro casual na rua e pesquisa no cartório
Luiz Fernando Menezes
Estava almoçando com meu pai quando ele me contou a
história de um homem negro com 2 metros de altura e que tinha sido escravo. Sua família residia até hoje na Rua da Liberdade. Este homem era
conhecido pela sua simplicidade e educação, ele trabalhava como ensacador de café no Porto de Santos.
"O
Maninho (como era conhecido) chegava a carregar dois sacos de café nas costas, é que os ensacadores ganhavam por produção",
disse meu pai.
Na minha infância cheguei a brincar com a molecada
da Rua da Liberdade e conheci um dos netos do Maninho.
Quando saí em direção ao jornal, para minha
surpresa, encontrei a filha deste homem passando pela rua Torres Homem. Abordei a octogenária Helena da Costa e perguntei-lhe se ela era filha
daquele homem conhecido como Maninho. Ela respondeu-me afirmativamente.
A partir deste contato, o repórter Vitor Gomes de
Andrade Silva e eu marcamos uma entrevista e ficamos surpresos com o depoimento de Helena, que nos disse ter sido fotografada por um repórter do
jornal A Tribuna no dia do enterro de seu pai. Ela apenas não se lembrava da data exata, já que não possuía nenhum documento ou recordação
dele.
Então, eu e Vitor fomos à Hemeroteca Roldão Mendes
Rosa, no Centro de Cultura Patrícia Galvão, onde são arquivados jornais e revistas antigos. Vasculhamos os velhos jornais e não encontramos nada.
Tivemos, então, a idéia de pesquisar o dia do óbito de Maninho nos cartórios de Santos.
Tivemos êxito e descobrimos a reportagem que foi veiculada pelo jornal no dia 24
de abril de 1940. Isso nos emocionou, por que trouxemos à tona uma das muitas histórias curiosas de nossa Cidade, já que Anízio José da Costa
constituiu uma nova família aos 90 anos de idade. |