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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Igrejas
Convento do Carmo - efemérides (5)

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Este extenso trabalho sobre as igrejas do Carmo foi organizado durante alguns anos pelo pesquisador de História e professor Francisco Vazquez Carballa - muitas vezes narrando histórias em primeira pessoa por ter vivido naquela área -, e que em novembro de 2018 enviou o material para divulgação por Novo Milênio:
 

Efemérides do Convento do Carmo de Santos

Francisco Vazquez Carballa

FRADES

São os filhos de Deus que, como consagrados, administram o templo e o culto como cristãos ou fiéis que frequentam e auxiliam com sua manutenção. Havia uma expressão antiga, usada quando o pagamento era muito pouco por um serviço contratado: “Quem vive de esmola é padre!”. Assim aquelas paredes várias vezes seculares abrigaram muitas pessoas das intempéries e nas festividades, bem como nos demais usos, como até enterramentos - recordando que todos eles ou elas foram entes dos quais hoje somos o futuro e por sua vez eles são o nosso passado, que nos legaram por herança a fé cristã e as belezas que podemos contemplar ou comentar.

Comecei a frequentar o Convento do Carmo em 1977 no mês de maio e assim fiz parte da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, que é minha devoção, servi o altar como “coroâo” como dizia frei Rafael, prestei serviços de jardinagem ou até de manutenção em alguma coisa com a mais pura alegria de servir a casa de Deus e seus filhos consagrados.

O tempo vai passando e precisamos nos preocupar com nosso trabalho, com a aposentadoria. Sendo assim, com o passamento de frei Rafael deixei de frequentar o local em 1998, mas ainda faço visitas e preces quando passo por ali, como muitos santistas.

FREI MÁRIO BASTOS

Falecido em 1º de janeiro de 1982. Homem de média estatura, branco, cabelo liso e branqueado pelo tempo, óculos do tempo antigos bem grandes, falar pausado e de muita educação, dizia que sua vocação começou aos 4 anos de idade e com 14 já ingressava no seminário, sendo ordenado em 1942; ministrou aulas no seminário de Itu; posteriormente veio para Santos e continuou dedicado ao serviço de carpinteiro e pintura, sem se descuidar das suas obrigações religiosas: era o diretor espiritual da Legião de Maria, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, Terezitas, Adoração Perpétua, Apostolado da Oração e Irmandade da Ordem Terceira do Carmo, sendo ele o prior carmelita.

Era conhecido por confessar muita gente que o procurava e muito rígido com as coisas relacionadas à igreja, como quando surgiram escapulários coloridos: ele não os queria benzer e nem impor a benção, a não ser que fosse o bentinho tradicional.

No convento do Carmo organizou a primeira restauração. Verificando um canto do altar que estava perdendo seu verniz, percebeu que um dia o mesmo fora folheado a ouro. Fechou a igreja da ordem Primeira por um tempo e depois, ao reabrirem, se via a mesma dourada com fundo azul claro. Descobriu que existiam guardadas e esquecidas imagens antigas em um canto da torre, que foram restauradas e voltaram para a veneração dos cristãos - entre elas a imagem da Virgem do Carmo de vestir, à qual mandaram fazer o corpo, pois antes era de roca, mas seria a mesma que fora venerada pelo povo naquele templo, embora houvesse especulações que seria a imagem que viera do Sítio das Neves; com o restauro se retirou a pesada imagem do nicho maior e se recolocou a Senhora do Carmo no seu trono.

Frei Mário era benquisto pelos estivadores justamente por ter permitido que durante uma de suas manifestações os mesmos pudessem entrar na igreja e ali ficarem longe da detenção e da polícia a cavalo [21]. Muitos daqueles estivadores seriam ligados a partidos de esquerda comunista e o frade era avesso à política, deixando bem claro que fazia aquilo pelas pessoas e não por ser simpatizante destes ou daqueles.

Comprara para o convento um carro que não me recordo se era um Fusca ou Brasília ou até parecido (creio que se alguém se recordar vai falar qual era); o mesmo ficava parado e debaixo de uma cobertura simples que havia no passadiço entre os dois prédios, até que por falta de uso foi vendido e o telheiro retirado.

Ficou enfermo e amputaram uma de suas pernas, o que o levou a ficar em uma cadeira de rodas. Uma vez, relatou em uma reportagem que quando indagado sobre a perna que perdera - o que o levou a ser cadeirante - teria dito: “Graças a Deus, que assim fiquei mais leve”. Assim demonstrava sua fé e, quando celebrava missa, mesmo preso à cadeira de rodas, o fazia paramentado com fervor. Devido à sua impossibilidade de subir escadas, mandou fazer um elevador no fim do corredor do claustro que está ao lado da sacristia; esse mesmo elevador seria retirado pelo desuso e encarecimento na conta de energia elétrica.

O seminário de Itu havia fechado e justamente 5 dias antes dele falecer o informaram que havia sido reaberto, o que o deixou feliz, mas demonstrava estar debilitado. Rendendo seu espírito para Deus no convento que tanto amou, foi velado na igreja onde ocorreu a missa de corpo presente, depois foi inumado no jazigo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte (quadra 2, campa nº 290) e, segundo informaram, seus restos mortais foram encaminhados recentemente para um local onde se conservam os de todos os frades no grande convento de São Paulo.

FREI LUIZ

Foi um frade conhecido no convento por atender aos fiéis em conselhos. Ocorre que era um psicólogo e atendia as pessoas - principalmente homossexuais -, a quem aconselhava e confessava, mas a vida de cidadão comum foi mais forte e assim ele se desobrigou de seus votos e se casou, saindo da vida conventual, justo com uma senhora que muito o procurava para se aconselhar. Assim, de três frades, ficaram no convento no início dos anos 1980 apenas dois. Muitos passaram a chamar o ex-frei Luiz de apóstata, de forma injusta.


Frei Rafael M. Marinho, em julho de 1942
Foto cedida a Novo Milênio pelo professor e pesquisador Francisco Carballa

FREI RAFAEL MARIA MARINHO

Nascido em 21 de dezembro de 1920 e falecido em 17 de fevereiro de 1998. Entre todos os frades - para mim que convivi com ele -, é que foi mais marcante na vida do convento, por haverem registros e fotos por todo seu zelo pela casa de Deus no século XX. Foi o prior frei Rafael Maria Marinho que cuidou do convento até 1998, sendo que o título de prior se deve a existir a ordem das irmãs carmelitas do Marapé, os terceiros carmelitas e os frades, sendo atualmente poucos.

 

Natural da cidade de Boa Vista, região de Campina Grande do estado da Paraíba, era seu pai Francisco Marinho Gomes e sua mãe Maria Alice de Farias. Exibia a foto do padroeiro do lugar, o Bom Jesus dos Martírios; contava que ali ia às festas e quem sabe até foi coroinha; quando menino pegava os santos, muitos dos quais ainda mantinha consigo no seu oratório do convento - como Nossa Senhora da Piedade, o menino Jesus e um São Benedito do qual tinha grande devoção, muito antigos e pertencentes a sua família - e os colocava dentro de uma caixa. Havia um amigo seu que tocava viola e os dois saíam cantando os famosos benditos ou hinos sacros como em procissão pelo lugar ou caminhos de roça - essas mesmas músicas se ouvia o frade cantar enquanto organizava a sacristia.

Ingressou na Ordem do Carmo em Recife, em 1938, e dizia que quando entrou na ordem queriam que assumisse o nome de frei Cucofate (São Cucuphate, mártir falecido em 304, festa 25 de julho) referindo-se ao nome de um mártir cristão, mas ele não admitiu e escolheu um nome ligado à sua devoção particular. Sendo seu nome de batismo Joaquim Marinho de Farias, passaria a ter o nome da Virgem Santíssima e do arcanjo São Rafael. Fez seus votos em 1942, sendo transferindo por ordens superiores para a cidade de São Paulo e posteriormente para Santos, no ano de 1952, sendo o frade sacristão do que muito se orgulhava quando falava sobre o tema, reclamando dos sacristãos que lhe arrumavam, como o velho Moita ou dona Josefa.

Certa vez, numa das poucas vezes em que tirou férias, foi para sua terra no Nordeste: essas férias eram voltadas para o serviço de Deus e costumava celebrar a Eucaristia para as monjas clarissas de Campina Grande/PB, ficando conhecidas como as “Divinas Missas”.

Frei Mário Bastos havia mandado eletrificar o grande lampadário de prata da igreja, quando, trocando a vela, o peso de cobre que o elevava caiu sobre ele, quase causando um acidente, depois do ano de 1952. Mas, frei Rafael, não confiando na energia elétrica para manter a lauda perene e sendo comuns as quedas de energia naquelas épocas, por zelo para com Jesus na eucaristia, passou por precaução a manter uma cantoneira de metal pesada com uma vela de sete dias próxima do altar, segundo o que dizia: "Meu filho, eu mantenho uma vela sempre acesa, pois, se faltar energia, Nosso Senhor não ficará desprovido de luz, pois é um desrespeito com ele!”

Igualmente, fazendo limpeza na pia de água benta de 1710 - que, segundo dizia, parecia mais uma pia batismal -, o frade batia a cabeça, até que decidiu que era hora de sair dali e assim a mesma foi removida para a capela da Ordem Terceira dos carmelitas.

Certa vez, auxiliando um pesquisador, emprestou uma antiga cópia do manuscrito do Tratado de Tordesilhas que havia no convento e possivelmente pertenceu ao capitão-mor Braz Cubas. O pesquisador tomou o documento para si e foi preciso acionar a polícia para que fosse devolvido. Depois disso, o arquivo da igreja foi levado para Belo Horizonte e não para São Paulo.

Deu continuidade na década de 1980 ao douramento dos altares, restaurações, cuidados com o prédio do convento, conforme o próprio jornal noticiou quando relatou o passamento de frei Mário Bastos, pois o frade já tomara a frente desse serviço, em incansável erradicação dos cupins, dos quais dizia “que iriam para o inferno por fazerem isso com a casa de Nosso Senhor”.

Foi nesse período que sofreu um grave acidente: numa noite, quando estava limpando o retábulo do antigo altar-mor, caiu de uma altura de 6 metros, ficou desacordado até que, algumas horas depois, o prior frei Mário Bastos e frei Luís - que o procuravam para rezarem juntos as Completas (Oração da Noite) - o encontraram desfalecido. Foi então socorrido e levado para a Santa Casa de Santos, com quadro clínico grave, chegando a ficar em estado de coma na UTI por vários dias.

Dias depois, uma missa foi celebrada pela sua saúde. Segundo se soube mais tarde, ao mesmo tempo o próprio frei Rafael disse ter tido uma visão de duas belas e reluzentes mãos consagrando a hóstia e ele concelebrando também; logo após ele acordou, recobrando os sentidos.

Por sua devoção, resgatou as festas da oraga, procissão do domingo de Ramos, procissão do Santo Enterro do Senhor, procissão interna do Santíssimo Sacramento, aumento dos confrades terceiros e da Boa Morte, Terezitas e Apostolado da Oração.

Entendia bem da teologia ou devoção cristã e inclusive eu estava ouvindo quando falou da diferença entre aparições do bem ou do mal quando ocorreu uma dessas aparições em 20 de janeiro de 1988, diante da imagem de São Sebastião que um dia esteve no quartel dos bombeiros e agora está de novo na Catedral de Santos. Ele explicou então que uma aparição do bem, quando vem, causa temor e depois traz paz, dando como exemplo a aparição da Virgem de Fátima aos três pastorinhos. Quando uma aparição é do mal, ela traz a paz e a confiança e depois traz o terror ou medo ao contemplado, recordando a história do Doutor Mefisto, tão contada em filmes, que primeiro deixou o personagem confiante e depois aterrorizado, visto que estava em seu poder conforme histórias da época em que foi escrito.

Escrevia os sermões que iria predicar aos fiéis durante a homilia e tenho algumas, como boas recordações daquele pregador; infelizmente, depois de usados, ele largava os papéis por qualquer local e assim se perderam muitos deles.

Promoveu entre 1980 e meados de 1989 a segunda restauração dos altares da igreja com folhas de ouro (a primeira foi a que o prior frei Mário Bastos havia realizado anos antes, dizendo-se que foram eles pintados com purpurina dourada (o recurso que havia até então), e de seu telhado, mantendo o patrimônio do convento intacto até o dia de seu falecimento. Era o restaurador Marcos Lamouch que fazia a douração em um trabalho muito paciente, delicado e demorado. Quando lhe pedia para comprar as folhas de ouro, o bom frade falava dos altos preços e da despesa que isso dava, mas que “para Nosso Senhor, meu filhinho dos outros, tudo tem de ser do melhor”.

Conhecendo a arte do bordado, efetuava verdadeiras obras de arte em palas de cálice, casulas góticas e romanas que ainda hoje existem na igreja, toalhas de altar e o primeiro manto para descer a procissão de Nossa Senhora do Monte Serrat, visto que a Virgem sempre descia com um manto diferente e no dia usava o oficial.

Foi também durante esse período que frei Rafael caiu pela segunda vez do nicho central que existe no grande retábulo, ao trazer o Santíssimo Sacramento para a benção das 18h00, causando muita comoção entre os fiéis. Ao ser levado ao hospital, acalmou os cristãos preocupados com seu acidente, e pela graça de Deus se restabeleceu, voltando ao seu trabalho de clérigo.

Uma vez disse que não entendia como um padre poderia se aposentar, pois seguia a ordem de Melquisedec “Tu serás sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec” (Hebreus cap. 7 vers. 17). Por isso, quando o provedor da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte me pediu para escolher um epitáfio, fiz escolha dessa passagem bíblica e assim foi adornada a tumba, onde ficaram os dois frades amigos até serem exumados e levados para um ossuário da ordem carmelita em São Paulo.

Por várias vezes, esse frade rezou missas sempre de última hora, na igreja do Rosário, a pedido dos irmãos, no período que não havia capelão. Assim, dizia que não fechariam a igreja, e do mesmo modo que monsenhor Moreira subiu durante muitos anos os degraus da escadaria do Monte Serrat rezando seu terço e assim aconselhava todos os fiéis a fazerem o mesmo, frei Rafael vinha sofrendo com problemas de circulação nas pernas, pois tinha trombose, mas não pensava em si: apenas pensava nos fiéis de Deus, também atendendo à sua forte devoção com Nossa Senhora e Jesus Eucarístico, pois ainda tinha fôlego para celebrar no convento do Carmo suas missas cotidianas.

Quando alguém ligava para o convento por alguma necessidade que fosse, quem atendia era a irmã Regina, mas se fosse o frade escutaria o seu famoso “siiimmmm” bem pausado e calmo.

Certa vez um repórter do jornal, defendendo apenas os pombos, quando ainda não se falava muito de toxoplasmose, falou contra frei Rafael, devido a colocar os gradis para evitar a entrada dos pombos na torre. Dizia o jornal que o frade poderia tomar um balde d’água e sabão e limpar a torre. Eu, como confrade de Nossa Senhora da Boa Morte e o irmão Terceiro Waldemar Tavares Jr. (falecido em 2017), escrevemos para a Coluna do Leitor do jornal A Tribuna e o defendemos, mas o que o repórter não sabia é que foi nessa mesma torre que ele deixou aberta a janela do segundo pavimento para que o casal de urubus pudesse criar seu filhote e o mesmo vomitou sobre minha opa da irmandade quando eu subia para tocar os sinos para a saída da Virgem da Assunção; esse urubu finalmente se criou e voou com seus pais dali.

Era comum que pessoas o procurassem para receber a eucaristia. Mesmo contrariado, sendo sua hora de descanso e os problemas de trombose causando dores, descia os degraus do pavimento superior, pois o elevador não estava mais funcionando, assim se dirigia à sacristia, colocava os paramentos necessários ia até o sacrário principal e, fazendo as preces necessárias, abria e concedia a comunhão para o fiel necessitado por causa de uma enfermidade ou problema maior. Ao ser indagado sobre seu horário de descanso ou apenas vendo que olhavam para ele, dizia: “Meu filho dos outros, sou padre e tenho de servir Nosso Senhor!”, quando não dizia coisas semelhantes.

Em 1988 esteve internado por causa desse problema na Santa Casa e eu, trabalhando no laboratório aproveitava para visitá-lo. Recordo que pediu para a irmã Regina um crucifixo de pé que tinha em sua cela e a freira levou a cruz da pequena imagem de Nossa Senhora da Piedade. No final, a cruz lhe serviu, mas reclamou.

Cuidava de muitos pássaros, entre eles um grupo enorme de rolinhas, dando um nome a cada uma de Santa Carmelita: dizia que era seu convento. Também tinha o periquito, o gato siamês Kiko e a cadelinha Katita, que de noite transitava pelos claustros e igreja como forma de avisar se houvesse algum intruso malfeitor: não entendia como uma pessoa poderia fazer mal aos bichos, visto que são criação divina.

Indo passear em sua terra natal, no avião um moço protestante lhe inquiriu sobre as imagens dos Santos, ao que ele explicou sobre a diferença entre adoração e veneração e sobre as imagens na Arca da Aliança, dos anjos de 4,5 metros de altura no templo de Salomão, dos serafins bordados nas cortinas, além da serpente feita por Moisés para salvar os judeus, assim nos disse: “Meus filhos, ninguém lhes ensina!”, em uma dessas viagens trouxe um oratório muito antigo de sua família, que colocou com Nossa Senhora Aparecida do lado fronteiro a São Judas Tadeu, até que os cupins o devoraram.

Ao olhar para os vendedores que antes ficavam na frente da igreja, ele os comparava com um mercado turco onde havia várias barracas e afirmava que assim, com a presença dos mesmos, a igreja ficava mais protegida. Com o tempo, eles foram tirados, por causa talvez de ser patrimônio histórico e precisar estar a fachada livre para os turistas.

Nos anos 1990, sendo o dia 8 de setembro um domingo (N.E.: portanto, em 1991 ou 1996), ao passar a procissão pelos fundos do Carmo, ele convidou a assembleia a um momento de silêncio e oração durante o final da comunhão e assim se manteve a igreja durante o toque de sinos que anunciavam festivamente Nossa Senhora, saudando a passagem da procissão pela Rua General Câmara. Ao cessar o barulho, ele finalizou a homilia e junto ao povo foi para as escadarias da Prefeitura renovar a consagração junto à população santista.

Em 1992, ao comemorar seu jubileu de ouro de profissão solene, como presente pela data do cinquentenário foi-lhe oferecida uma viagem para a Terra Santa e Egito. Preferiu recusar a alegria dessa viagem (visto que gostaria de ir àqueles locais) e doou o dinheiro para que fosse aplicado nos estudos de novos frades carmelitanos.

Referindo-se a viagens de frades, contava muitas passagens sobre os carmelitas, em uma delas estando seus amigos em viagem nas Filipinas, os frades só se sentariam à mesa para almoçar e jantar depois de contar todos os gatos do convento, pois segundo um frade pode observar, os naturais da terra, em costume exótico, comiam a carne dos animais e os religiosos temiam serem servidos com essas finas iguarias.

Levantava muito cedo para rezar as laudes e todos os dias celebrava missas às 18 horas (após a benção do Santíssimo Sacramento), que sempre estavam repletas, oferecendo orientação espiritual aos fiéis.

Dizia missas na Igreja do Rosário dos Pretos quando esta ficava sem sacerdote secular que a quisesse celebrar, assim como dizia missa no Santuário do Monte Serrat, fazia batismos ou casamentos onde o chamavam por ser muito benquisto, tinha o costume de colocar apelidos de pássaros em quem cantava na igreja - isso se aplicando ao coral de dona Elza, e fazia brincadeiras com fiéis amigos, os quais eram comparados com plantas, flores ou bichos como beija-flores. Aliás, ele mesmo dizia:

“Meu filho dos outros, quando morrer quero virar um beija-flor”

Ao que lhe respondia sobre o seu gato siamês:

“Aí o Kiko pega o senhor!”

Então ele retrucava:

“Kiko é menino educado e casto como um carmelita deve ser".

Retrucando, dizia eu:

“Frei Rafael, eu não queria ser seu gato, o senhor os capa.”

Todo mundo ria.

Como sacerdote prestativo ao próximo, não recusava ouvir as confissões de qualquer pessoa que o procurasse, principalmente os frequentadores do convento ou ligados às irmandades e associações, inclusive de homossexuais, meretrizes e até certa vez um mendigo e os demais excluídos da sociedade, pois - segundo dizia - estava servindo a Jesus. Em 1993, um senhor protestante de nome Oliveira foi procurar o frade, mais para conversar do que para se confessar, esse senhor tinha órgãos femininos em seu ventre e fora maltratado em sua igreja. Ao conversar com o frade sobre o que ele pensava disso, frei Rafael lhe respondeu: “Meu filho, perfeito é só Jesus Cristo”. Assim ganhou a atenção desse senhor que, ao fazer a operação para se tornar mulher, faleceu em novembro de 1997 num hospital em Campinas.

Durante a comemoração dos 400 anos do desembarque e presença dos carmelitas no Brasil, promoveu lindas festas voltadas para o povo, onde foi lançado um selo comemorativo e um carimbo pelos Correios do Brasil. A solene cerimônia foi feita na sacristia do convento, houve missa festiva, descerramento da placa comemorativa, lançamento do carimbo, exposição, e por fim uma recepção.

No dizer do professor e artista plástico José Marques de Oliveira Neto: frei Rafael pegou o período da transição entre o que havia do século XIX e final do século XX, por isso a sua contribuição para tantas coisas referentes às histórias do convento, seja de seus bens ou construção, inclusive deve-se ao Irmão Terceiro professor Waldemar Tavares Jr. (falecido em 1997) a introdução da missa com o coral gregoriano que se faz, mas que até 1998 era cercado da liturgia própria ligada a esse canto e tinha como celebrante o frade com os paramentos apropriados.

Era uma pessoa simples na alimentação e tinha o gosto por comidas hoje meio desconhecidas da população, que eram preparadas pela Irmã Regina. Ela sempre desconfiava das visitas e agia como segurança, mas se dedicava na cozinha preparando pratos como o arroz com abobrinha, abobrinha recheada, o quibebe ou feijão com abóbora, entre outras comidas que fazia, além dos doces atualmente considerados antigos como fios de ovos, roscas de leite, roscas de gengibre, bolo de rapadura e outras iguarias.

O prior dizia que se fazia um remédio das folhas ou sementes do flamboyant, uma árvore frondosa de flores vermelhas existente no segundo claustro, mas eu nunca perguntei como preparar tal mezinha para curar males do fígado, apenas eu vi e aprendi com ele como fazer o famoso aluá citado até por Jean Baptiste Debret em sua prancha “Refresco no Largo do Palácio” e que tenho o gosto de preparar nas duas formas distintas.

Dava dicas de como lavar as flores de plástico e posteriormente de seda, colocando-as durante a chuva penduradas de forma que ficariam muito limpas depois de algumas horas - pode parecer estranho à sociedade atual em que tudo é descartável e tem duração efêmera, mas a qualidade das mesmas naquele final de século era diferente das de hoje, pois mantinham por mais tempo a cor e a integridade do material com o qual eram confeccionadas, sendo comum lavar e mantê-las limpas para o uso.

Os vasos de porcelana branca com adornos azuis e muito grandes eram guardados debaixo do altar com cuidado, antes da novena da padroeira ou missa de final de ano conhecida como “Hora Santa”, eram então limpos e adornados com flores que ficassem mais profusas e distintas.

Os castiçais dos altares recebiam velas por ele manufaturadas com um estranho cilindro de cobre e ali ele as fazia cantando hinos sacros ou músicas de sua infância.

Outra característica sua era o famoso tratamento do sacerdote aos seus fieis, tão conhecido como “meu filho e minha filha”, em referência ao sacerdote ou padre ser o pai da comunidade local. Para este frade, era ”minha filha dos outros ou meu filho dos outros” que para algumas pessoas sova como uma ofensa, afinal ser filho(a) dos outros é não saber quem seria o pai ao certo, mas a sua explicação era a mais simples: “Meu filho (minha filha) isso é um respeito à sua mãe!” Realmente, naquele momento cultural a expressão era bem depreciativa.

Quando alguém mais maduro falava sobre os jovens que estavam namorando, brincando com alguma música ou folguedo, passeando ou em festas, ele repetia: “A juventude é linda, meu filho dos outros, eu que sou um saco de batatas sei o quanto é lindo ser jovem!” Era contra comparações relacionadas à aparência ou roupas, sempre recordando que ser jovem era algo muito bonito na vida de uma pessoa.

Com espírito simples, cuidava das suas plantas, com as quais enfeitava o presépio da igreja e seus altares; igualmente cuidava de muitos animais, entre eles o gato siamês de nome Kiko, que mandou castrar para justificar o celibato do mesmo. Ao ocorrer o falecimento desse religioso, o animal teve que ser retirado à força dos pés de seu corpo.

Dizia o frade que quando frei Mário entrava para celebrar a missa ele arrumava a parte do paramento que recorda um capuz e sempre o víamos tentando arrumar o próprio até que eu e o Irmão Terceiro Waldemar T. Jr. passamos a arrumar para ele.

Certa vez, ao entrar na sacristia, me deparei - como tantas pessoas já o fizeram - com o frade cantando o hino “Prova e amor”, mas, prestando bem atenção, percebi que era em forma de paródia e dizendo mais ou menos assim: "Pra matar a sede melhor não há/que tomar a água com limão/eis que peguei dois limões e um litro d’água/ espremi, coloquei açúcar e mexi fiz a limonada/ pra matar a sede melhor não há.........." - e assim seguia ocupado em suas tarefas.

Havia já fazia tempo que São Joaquim estava guardado debaixo do retábulo em um armário esperando o momento para ser unido a Santa Ana já que não foram para o altar-mor. Perguntado para ele sobre o assunto, disse que estava causando o divórcio do casal ao que, sorridente, respondeu: “Meu filho dos outros, são velhinhos: depois de muito tempo acaba tudo e vira só amizade!” Sem querer ele deu um ensinamento sobre os casamentos, talvez devido a suas tantas confissões que acabam por formar o padre na profissão de psicólogo.

Nos anos 70 para 80 muitas linhas de ônibus tinham ali na Praça Barão do Rio Branco seu ponto final, até que houve uma troca dessa numeração, mas até então às vezes eu descia ali e caminhava para a rodoviária sendo comum ver as luzes do templo se acendendo para as preces que o frade fazia às 5h00 da manhã, pois sua vida era mergulhada em profunda mística cristã, havendo relatos a respeito disso:

Estando de passagem no convento do Recife, era no carnaval e ele não gostava muito da folia de Momo, indo tocar os sinos viu algo como seres estranhos em forma de macacos pulando entre as cordas, o que lhe deu grande impressão. Ao dormir, em um sonho, viu o demônio - com sua forma caracterizada pelos artistas antigos -, abraçando todos que estavam no palanque cheio de pessoas e todas desabaram. Ao acordar, descobriu que um acidente semelhante havia ocorrido durante o carnaval.

Ele contou essa história em 1981, quando passou a Banda Frei Gaspar pelos fundos da igreja e eu era porta-estandarte, usando uma túnica que recordava uma cópula de cetim preto. O frade me viu da janela que existe no fundo do convento e no domingo tirou a dúvida:

“Meu filho dos outros, passou por aqui uma banda de carnaval e havia um rapaz parecido com você no meio daquelas mulheres com os pandeiros de fora, acaso era você?”

Respondi:

“Era eu, frei Rafael!”

Respondeu:

“Meu filho dos outros, aquelas mulheres de pandeiros de fora são pecadoras e você junto?”

Resmungando alguma coisa, disse:

“Vocês são jovens, mas tenha juízo!”

Ao celebrar as missas, levantava bem o cálice de forma a segurar a base e amparar o mesmo pela haste ou copa como se quisesse que Jesus vindo do céu o tocasse como numa visão que teve em seu leito, das duas mãos de Jesus Cristo tocando a partícula sagrada. Ele repetia a consagração, na certeza de que Jesus tocava o cálice naquele momento.

Uma vez vieram duas senhoras babalorixás candomblecistas para receber a comunhão ao que ele abraçou o cálice e disse que não, para que elas fossem para a religião delas que era o mais certo.

Cuidava de plantas que usava no adorno dos altares para com bom gosto enfeitar a casa de Deus nos dias de festa, como na Hora Santa em 31 de dezembro. Quando começaram a morrer plantas e a zeladora dona Josefa as viu, disse para mim uma antiga crença popular que quando as plantas de uma pessoa começam a secar é porque o final de seu dono ou dona está próximo. Sabe que assim o foi?

Todas as notas de dólares ou outras moedas deixadas nos cofres de esmolas do convento o prior tinha o costume de guardar e quando o bispo dom David participava de uma celebração no convento ou presidia a Hora Santa e missa do dia 31 de dezembro, entregava para ele essas notas, sendo que a responsável pela limpeza dona Carmelita sempre lhe pediu uma e ele dizia que não, que eram do senhor bispo, mas antes de deixar o mundo, chamou a mesma senhora:

- Terezinha, minha filha dos outros, venha cá, por favor.

- Senhor frei Rafael.

Abrindo a gaveta do arcaz ela viu uma nota de dólar.

- Pegue logo.

- Pra mim, frei Rafael?

- Sim, pegue logo.

- Mas é do senhor?

- Pra onde vou não preciso mais de dinheiro brasileiro e nem estrangeiro.

Ela pegou a nota e agradeceu pelo desejo realizado de ter uma como sempre quisera, assim ela me dizia emocionada, quando a reencontrei próxima da escola em que ministrava aulas de História no bairro do Morrinhos I no Guarujá, pertinho da casa em que ela morava.

Mas o ermitão do Carmo de Santos também tinha um tempo traçado sobre a Terra por Deus. Assim, na sua última missa de domingo se despediu dos fiéis. Quando fechava a pesada tranca da porta da igreja ou quando saÍamos pelos fundos na Rua Itororó ele nos abençoava, mas nesse dia, na porta da frente disse ao nosso amigo em comum Waldemar Tavares Jr, que me dizia isso muito impressionado repetindo suas palavras: “Waldemar, até breve, meu filho dos outros!”. Naquela noite de 17 de fevereiro de 1998 ele rendeu seu espírito para o Criador, dormindo: dizem que o médico afirmou que morrera dormindo e perceberam que o gato Kiko não saia de seus pés, sendo tirado por força. Pela manhã me ligou o Waldemar T. Jr dizendo: “Paco, uma notícia muito chata: frei Rafael faleceu dormindo e o enterro está sendo organizado“.

Quando recebi o aviso do seu passamento, eu trabalhava na Telesp do Gonzaga e para lá me dirigi, tendo a preocupação de pedir que não colocassem flores na sua caixa funerária, pois me recordei que ele sempre dizia que ao morrer não as queria e que o seu hábito carmelita era a flor que levaria deste mundo - o que foi confirmado por irmã Regina e pelo Terceiro Waldemar, que colocou o terço que sempre rezava, mas não a grande medalha de prata de Nossa Senhora das Graças que eu havia dado por ser de seu gosto. Houve uma daquelas pessoas que se metem e acabaram colocando ramadas de cedro para agradar a tal senhora da ordem Terceira.

Começou na igreja conventual a missa de corpo presente celebrada pelo bispo dom David e muitos clérigos da região, inclusive do Valongo. Foi muita gente que lotou a igreja e eu me ocupei dos sinos a anunciar o toque fúnebre, pela primeira vez tocada por minhas mãos na cidade de Santos e assim me despedi do bom frade e depois, da sineira da torre, vi a saída em um carro fúnebre diferente, que viera da capital. Foi para o cemitério do Paquetá, onde seria seu corpo inumado no jazigo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte (quadra 2, campa nº 290). Os carmelitas cantaram o hino “Flos Carmelo”. Recentemente, seus restos mortais também foram transferidos para um local onde são mantidos os despojos dos frades no convento em São Paulo, assim nos despedimos nesta vida.

No cemitério ocorreu um caso estranho: o pedreiro inverteu a posição da tampa da sepultura ficando a enorme cruz marrom de cabeça para baixo, ao que o prior da irmandade mandou arrumar rapidinho. Um ano depois organizei o “acabo de ano”, com o qual estou familiarizado por ser ainda em uso em Pontevedra na Galícia. Nesse ritual, depois da missa que completa um ano do falecimento, os amigos ou parentes se reúnem para rezar no cemitério pelo finado/a, e assim nos dirigimos para o cemitério e fomos até a sepultura, onde rezamos o terço, fizemos preces e nos despedimos para sempre.

Fiquei para contar essa história, visto que o Terceiro Waldemar deixou o mundo em 2017. Na certa já se encontraram: é claro, como todo vivente, sei que um dia também os encontrarei e ainda depois de um abraço vou falar para o frei Rafael: “Tá vendo? O senhor não virou um beija-flor!”

IRMÃ REGINA

Freira baixinha, pele clara, falar acaipirado, reservada, desconfiada e dedicada às suas tarefas sendo cozinheira dos frades e responsável por parte da limpeza do convento, era do Interior e muito dedicada a fazer doces e comidas bem preparadas. Sendo a responsável pelo abastecimento do convento, reclamava que até um olho de alface ela tinha que anotar em um caderno o preço.

Montava o seu presépio dentro de um armário para que os gatos do convento não lhe derrubassem as peças e sempre desconfiava de quem entrasse nas dependências do lugar, se não conhecesse a pessoa.

Com o passamento de frei Rafael, ela se retirou para a casa dessa ordem em Barretos.

SACRISTÃO MOITA

Senhor de pele clara, cabelos brancos, óculos de grau alto, falar rouco e baixo, brincalhão e mal humorado, conversava o necessário e às vezes bebia além da conta. Seu apelido era relacionado ao seu sobrenome, eram muito comuns as piadas que pessoas conhecidas suas faziam ou brincadeiras com seu nome, pois para nós moita é um arbusto grande e assim falavam que iriam atrás da moita, que o sacristão estava escondido atrás da moita, urinaram na moita, que iam procurar o Moita dentro da moita etc. - ao que ele logo respondia de forma mal educada, esbravejando.

Foi um alfaiate que - devido à pouca procura por ternos e demais itens de vestuário - perdeu sua loja nos anos 1970. Sendo ele amigo da irmã Regina, foi contratado como sacristão por indicação dela para ocupar essa função no convento do Carmo. Mas, às vezes ele acabava fazendo algumas coisas erradas, o que deixava o frade em pé de guerra. Não era raro, durante a missa, o frei ir buscar algum item do altar que faltava, assim se explica o que ocorreu antes de uma missa:

Uma vez estando o sacristão ausente da igreja no domingo, ao levar o cálice para o altar, o mesmo caiu de minhas mãos, ao que fui perante o frade, esperando a briga resultante do meu descuido. Mas, ele apenas pegou o objeto, limpou, trocou os panos , colocou outra pala de tecido e me disse:

“Leve com cuidado meu filho dos outros!”

Perguntei:

“O senhor não brigou comigo como fez com o senhor Moita?”

Respondeu-me:

“O Moita leva o sanguíneo e a pala sujos para o altar e Nosso Senhor não merece isso. Você me avisou, meu filho dos outros e eterno é só Deus, nós vamos morrer e eu vou morrer e tudo vai ficar aí”.

O senhor Moita nunca foi despedido pelo prior, para que pudesse se aposentar por faltar pouco tempo, e assim viver sua vida sem passar necessidades.

FREI VALMIR NERES DE BARROS

Natural do Distrito Federal (Brasília), de família humilde, esse frade com certa fartura de enchimentos, pele clara, altura média, tinha barba bem cuidada, paciência, humildade e um sorriso de felicidade constante por ser sacerdote que os fiéis mais maduros apelidaram de sorriso Colgate (referência a uma propaganda de dentifrício em que os personagens aparecem com os dentes muito brilhantes).

Por essa época, seu pai já havia falecido. Muito conhecido pela sua devoção à Virgem do Carmo e pelo seu carisma na pregação do evangelho, ministrava a bênção do Santíssimo às 18h00, repetindo o ritual de seus antecessores ao retirar a hóstia consagrada da custódia gigante e conduzir para o altar.

Com palavras simples e acessíveis ao coração dos fiéis, ensinava os mandamentos de Deus e os Evangelhos. Celebrou missas no Convento e na Igreja do Rosário dos Pretos de novembro de 2006 até 17 de fevereiro de 2008, quando se retirou de Santos, deixando os fiéis com saudades. Consta que teria deixado a vida religiosa contemplativa.

 

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