A Lino Vieira e Alberto de Carvalho
o meu reconhecimento
Ao ilustre padre Dr. João Baptista de Carvalho,
as minhas homenagens
Prefácio
"A guerra é terrível como um flagelo de Deus; mas, como os flagelos, ela pode
ser justa e útil" (Schiller, A Morte de Walenstein,
I, 2)
A guerra é um grande mal, um mal imenso.
Tinha razão o grande Bossuet quando dizia: La guerre est une chose si horrible, que
je m'etonne comment le seul nom n'en donne pas l'horreur. (Pens. Chrét., 36).
Todas as palavras veementes e lúgubres da humana linguagem não logram exprimir os
horrores da guerra, que depreda recursos, arruína valores, despovoa cidades, tala campos, devasta regiões, desorganiza funções, chacina vidas,
alanceia corações, cresta esperanças, orfaniza inocentes, despedaça casais e semeia por toda parte a ruína, a desolação, o pranto, o luto, a morte:
.......crudelis ubique
Luctus, ubique pavor et plurima mortis imago
(II En. 368-369).
Meu Deus! Que triste coisa é a guerra!
E que triste coisa é que os homens vivam a guerrear-se e que só na guerra se veja
tantas vezes o único meio de resgatar direitos conspurcados!
E mais horrenda ainda é a guerra entre irmãos, a guerra civil. Aí mais se encarniçam
os combatentes e mais que nunca se exacerbam os horrores.
I fratelli hanno ucciso i fratelli;
Questa horrida novella vi dó!
(Manz. Cte. Carmg. III).
... será o brado com que, relembrando a primeira efusão de sangue na terra - o
fratricídio de Caim - se devem referir as tristezas horripilantes de uma guerra fraterna, de um extermínio de irmãos.
A guerra se conta entre os mais terríveis flagelos com que Deus sacode a humanidade;
mas, "como os flagelos, ela pode ser justa" e, o que é mais, "pode ser útil", mesmo porque existe ilação entre os dois termos.
Do movimento que empolgou São Paulo, resultaram-lhe, por certo, proventos de ordem
material e de ordem moral que seria longo enumerar aqui.
O despertar de iniciativas, a habilidade das improvisações, o espírito de organização,
a capacidade de trabalho de que São Paulo deu provas, constituíram surpresa para toda a gente e nos autorizam a confiar sem exagero nas
possibilidades risonhas de nosso futuro.
O culto apaixonado de um ideal, a disposição para o sacrifício, o ardor do civismo, o
heroísmo na resistência, a firmeza na desamparada adversidade, foram qualidades que se revelaram rutilantemente e se provaram proveitosamente no
cadinho do sofrimento que incandesceu a alma paulista. Tudo se pode esperar de um povo cujas energias morais despertam ao primeiro rebate da
dignidade, agindo aos embates do dever e reagindo às depressões da adversidade.
E abstraindo de certas defecções que explica a contingência humana, a unanimidade
compacta de uma união sagrada em torno de um ideal pode servir de seguro índice da pujança espiritual de uma raça que contra toda a expectativa não
lograram enervar para os surtos alevantados nem o egoísmo do tempo, nem o comodismo da época, nem as desilusões dos homens.
Virtus perficitur in infirmitate.
E esta guerra veio capacitar o paulista de que é per augusta que se sobe ad
augusta.
Aproxima-se a época da luta incruenta do voto. Pois São Paulo vai arregimentar para
esses embates um exército tão numeroso, aguerrido e coeso que se afiguraria impossível antes da provação sangrenta da revolução, antes do epílogo
inesperado da peleja.
E, o milhão de eleitores paulistas, possuídos de ardor inédito, de serenidade
consciente e confiante, há de constituir uma barreira intransponível a todos os assaltos dos princípios nocivos ao bem estar nacional, à
estabilidade social, à segurança da família brasileira.
Bem verdade é que Deus escreve direito por linhas tortas e fácil lhe é tirar o bem do
mal.
E quando se observa a agitação salutar que ora faz convergirem para o bem do Estado as
energias de nossos moços, muitos dos quais antigamente amolentados pela dissipação ou absorvidos nos cuidados da luta pela vida, tem-se a certeza de
que serão aqui confiados a mãos seguras e patrióticas os nossos destinos políticos, porquanto parece que se vai inaugurar uma nova era, em que aos
cuidados privados se hão de sobrepor os interesses sagrados da Pátria.
Parece que doravante os abstencionismos egoístas, as ambições insaciáveis, os
protecionismos escandalosos, os personalismos absorventes darão lugar ao zelo sincero do bem público, com preterição de todo o faccionismo político
e de toda a preocupação pessoal. Pelo menos enquanto perdurar a lembrança viva e palpável das agruras pungentes dos momentos que estamos
atravessando e que não mais são do que a conseqüência da falta de boa orientação que se não soube ou se não quis imprimir à gestão da coisa pública.
Sempre é verdade, que não há nada como o sofrimento, para esclarecer e orientar,
convencer e estimular.
A experiência nos foi áspera, mas proveitosa. E a experiência nem sempre é o olho
pregado na nuca, a divisar apenas o caminho percorrido, como reza a sabedoria oriental.
A revolução de 1930 fracassou nos seus intentos, dizem, precisamente porque incruenta,
guindando, de um jato de sorte, aos pináculos embriagadores do mando, cabeças que não encaneceram precocemente no fogo do sofrimento que purifica,
ou elevando a posições estonteantes, espíritos aos quais, na falta da experiência dos anos, só a luta ou a provação poderiam conferir aquilo de
Petrarca:
Pensier canuti in giovenil etate.
A revolução paulista, entretanto, é um tecido prodigioso de abnegações sublimes, de
desprendimentos épicos, de heroísmos alcandorados. Já se disse que acaba de ser escrita a mais bela página do civismo brasileiro.
Mister se faz, todavia, gravar na retina dos contemporâneos e perenizar
na lembrança dos pósteros as lições inéditas e imperecíveis desse movimento regenerador, para que lhe perdurem os efeitos.
Pouco ou quase nada se fez ainda nesse sentido até agora, quando importa documentar
com o testemunho presencial, no vigor atual das impressões sentidas, os aspectos vivos, cintilantes, dessa campanha, cuja magnitude nem sequer
transpira claramente, fora do Estado, na imensidade do Brasil. E este não parece ter compreendido ainda a nobreza de nossos intuitos e a grandeza
épica de nossos esforços em prol do bem nacional, no momento em que para São Paulo se criou um brasão cujo lema é: Pro Brasilia fiant eximia.
O conhecimento exato desses três meses em que, segregados do mundo e envolvidos pelo
Brasil, que nos não compreendia, dávamos tudo pelo Brasil, talvez logre atrair para nós, após o advento da paz, um pensamento de carinho de nossos
irmãos brasileiros, a trazer-nos um lenitivo reconfortante para as feridas que borbotavam o sangue rubro de nosso patriotismo e ainda destilam o
sangue negro de nossa humilhação. Porque o que punge São Paulo não é precisamente o travo da derrota, mas o seu insulamento na dor.
Eu creio mesmo que, se de nossos irmãos recebêssemos nós, neste instante aflitivo, o
amplexo da fraternidade concretizado em gestos espontâneos de aproximação e de afetuosa simpatia, isto provavelmente faria mais para o fim que se
tem em vista - a paz dos espíritos - do que a ocupação ou a deportação, e apressaria o desvanecer das suscetibilidades bem compreensíveis que
ameaçam a integridade moral do Brasil. A mim, por exemplo, muito me comoveu há dias a mensagem das crianças cariocas às irmãzinhas paulistas.
Penso que, para a orientação da mentalidade brasileira nesse escopo, grandemente
concorrem obras como esta, elucidativas, sinceras, verazes, que não só documentam para os paulistas o heroísmo de nossa mocidade, mas também não de
comover proveitosamente os que nos combateram ou de longe contemplaram o nosso titânico e extremado esforço, em prol de uma causa que pensávamos
fosse a de todos os bons brasileiros.
Estes, se bem intencionados e despidos de preconceitos, hão de afirmar-nos que, se
acaso erramos, o nosso sacrifício é tido na devida conta, apreço e simpatia por aqueles que num instante se afastaram de nós mas querem ver-nos
sempre na comunhão dos mesmos ideais irmãmente colimados.
E ninguém melhor que Santos Amorim sabe pintar a grandeza do surto maravilhoso de 9 de
Julho.
O próprio título do livro e a profissão de seu autor já constituem um argumento à
nossa tese. Tudo quanto Santos tinha de mais seleto achava-se nas barrancas do Paranapanema ou em outros setores de luta. Generalizando licitamente,
era toda Santos que combatia, era todo São Paulo que renhia imperterritamente, brandindo as armas da luta por um ideal que se lhe afigurava nobre e
nacional.
E de como Santos lutava se pode ter a mais nítida, a mais viva impressão, à leitura
destas páginas trepidantes, vivas, palpitantes, sentidas, de que ressumbra um ardor de convicção, um arroubo de entusiasmo, um desprendimento
abnegado, que só merecem o preito rendido do respeito, da admiração, do pasmo e da ternura.
Pode-se confiar no futuro de uma nação cujos filhos, pacíficos e laboriosos, e às
vezes ricos e comodistas, se transformam num instante, à força de um ideal, em soldados completos, para os quais a guerra não tem segredos a
desvendar nem surpresas a peiar, nem perigos a temer, nem sacrifícios a fugir.
Mercê de Deus que nos confortou essa revelação.
Para os que não n'a presenciaram ou a desconhecem, o livro de Santos Amorim é uma
fonte preciosa para a formação de um juízo seguro e reconfortante.
E para os que a sentiram e auscultaram, este livro é um bálsamo suave a pensar feridas
que sangram, um doce lenitivo a consolar penas que cruciam, uma aragem macia a santificar saudades que pungem, um preito comovedor a honrar mortos
que vivem, uma esperança infalível a soerguer ânimos que se abatem.
O livro, como todo o movimento paulista, está impregnado de Religião. Outro fruto
sintomaticamente benéfico da Revolução. Outro motivo para que eu anuísse ao convite de lhe traçar um prefácio. Deus o favoreça com o merecido êxito.
Santos, novembro de 1932.
Padre João Baptista de Carvalho.
Leitor:
É uma narrativa. Detalhada o quanto possível. Absolutamente fiel. Reprodução exatíssima
dos episódios que assisti. E em que fui parte inúmeras vezes. Sem exageros. Isenta de fantasias. A verdade integral.
É este um despretensioso trabalho de repórter. Que eu sou. Mas de repórter que não
visa conquistar foros de celebridade literária. Que se contenta, depois de vinte anos de porfiosas lutas na imprensa, em continuar sendo simples e
apagado operário do jornalismo.
Vivo tão bem na penumbra...
***
Cenas que a minha memória recolheu. Durante 73
dias de campanha. No setor Sul. Como soldado do 7º Batalhão de Caçadores da Reserva de Santos. É o que você, leitor, irá ler no desenvolvimento
desta reportagem.
Porque este livro é, apenas, uma reportagem. Não é, não poderia ser outra coisa. O
sapateiro - diz-se com muita sabedoria - não deve ir além do sapato.
E eu sou um espírito muito conformado...
***
Mais do que tudo, este livro constitui merecida homenagem à brava
mocidade santista do 7º Batalhão. Que sustentou o fogo. Em defesa de S. Paulo invicto. Na barrancas do lendário Paranapanema. Expondo a vida.
Derramando sangue. Sacrificando-se. Curtindo amarguras. Com destemor heróico. Com lealdade. Honrando a terra bandeirante. Glorificando o Brasil.
Paulistas de S. Paulo! Nobres e invencíveis filhos de
Piratininga!
***
Eu sou crente. Deus está me ouvindo. Elevo-lhe minha súplica fervorosa.
Para que Ele - misericordioso e justo - receba em seu reino de glória a alma dos meus irmãos de farda que pereceram no campo de batalha. Imolados à
causa paulista. Mortos pelo ideal sacrossanto de S. Paulo.
E uma lágrima de dor imensa e de saudade eterna eu
verto aqui. Para os heróis tombados.
***
LEITOR:
Está apresentado o meu modesto trabalho. Fruto paciente de poucos dias. Roubados ao dever
profissional de cada noite. E só eu sei com que sacrifícios consegui vencer esta tarefa.
O livro aí está.
É o quanto basta.
Novembro de 1932. |