Nove de Julho
A grande ilusão de 1932 - O sacrifício inútil - Data apenas simbólica na história de um povo - Santos, a
heróica, espera sempre o seu monumento
Francisco Martins dos Santos
(Fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Santos)
Vinte e dois anos decorrem nesta data sobre a
deflagração do Movimento de 1932, sobre a Grande Ilusão do povo paulista, que tanto sacrifício e tanto sangue lhe custou.
Grande Ilusão, dissemos, porque temos visto e estamos vendo, ao fim de tanto
tempo, como se tripudia sobre tão grande e tão santa efeméride, como tão inútil parece ter sido a sementeira de sangue, de heroísmo e glória,
realizada por São Paulo sobre o chão social de si mesmo e da Pátria.
Só a última geração de jovens, essa que ainda não entrou na liça das grandes
competições e na raia das realizações humanas, pode desconhecer o que foi o Movimento Armado Constitucionalista de vinte e dois anos atrás e só ela
tem assim certo direito de desconhecer os seus ensinamentos, havidos pelas demais gerações anteriores, por essas mesmas que estão servindo e, no
entanto, em verdade não servem, porque procuram servir-se antes de servir à coletividade e aos ideais que animaram e geraram a grande página
bandeirante e aos seus centauros.
Câmaras daqui, dali, de acolá, de São Paulo e do Brasil, compostas de homens que viram
e assistiram toda a grande epopéia, que espetáculos nos têm proporcionado, de inciência, de incapacidade, de retrocesso, de ambição e de
impatriotismo!? Quanto desprezo têm revelado ao grande sacrifício de 1932 e quanta negação àquela extraordinária sementeira de luz?...
Constituição e Voto Secreto, conquistas máximas do país supostamente redimido pela
suprema demonstração de renúncia de todo o povo paulista daquele ano, aí estão, como tantas outras conquistas, conspurcados, pisados, desprezados,
como trapos inúteis, por essas duas coisas informes, disformes e lamentáveis que têm sido para nós - Política e Administração Pública, em São Paulo
e no Brasil - cúpulas de abrigo, puras e simples, de mil atentados e mil vergonhas, de mil assaltos e mil infâmias, praticados nestes vinte e dois
anos em que se esperava, exatamente, a germinação daquela suprema sementeira.
É grande, senhores, o desencanto de todo o povo abandonado e sempre ingênuo, explorado
em sua boa fé de eterno crente, abandonado à sanha dos exploradores de todos os tipos e todos os portes, que se acobertam na impunidade da triste
república, que se alentam no apoio das forças dirigentes, e que se agigantam pela ausência de humanidade, de religião verdadeira, de moral, de
consciência, ou de sentimentos, em suas carnes, em seus cérebros, em seus membros, em suas glândulas e em seus órgãos de feras insaciáveis.
Ninguém sabe o que será ou como será o dia de
amanhã, diante do carnaval satânico dos preços, dos golpes, dos assaltos, das dificuldades e das misérias, para o qual não há remédio nem defesa;
diante do caos que se promete, ao fim de vinte e dois anos da Grande Ilusão, do sacrifício inútil... apenas um símbolo talvez, dentro da grande
História da nossa terra e da nossa gente.
***
Santos, cidade excepcional do Estado e do país, onde
tudo ainda é melhor, mais resguardado e mais puro do que em todos os outros setores avançados; Santos se orgulha de haver participado do grande
Movimento de 1932 como nenhuma outra cidade, depois da Capital; e o volume da sua imensa colaboração não cabe, palidamente sequer, na mais sintética
das sínteses, nas pobres linhas de um artigo de jornal.
A sua epopéia particular abriu-se a 10 de julho de 1932, com estas linhas, em corpo grande,
lançadas pela A Tribuna:
"Revoltou-se na capital a guarnição federal. O movimento
de solidariedade ao general Bertoldo Klinger visa a deposição voluntária, ou pela força, do governo federal.
"As tropas insurretas contam com a adesão de todas as forças do Estado de São Paulo,
de Mato Grosso e do Paraná e com o apoio de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
"O general Isidoro Lopes foi aclamado generalíssimo das forças sublevadas.
"Manifesto ao povo paulista. Caso o governo central recuse demitir-se coletivamente,
os revolucionários marcharão para o Rio de Janeiro, sob o comando do general Bertoldo Klinger. Distribuição de munições aos civis".
Abriu-se assim, e encerrou-se logo a 3 de outubro, com as melancólicas e trágicas
palavras da mesma A Tribuna:
"O governo do Estado considera-se deposto. O coronel
Herculano de Carvalho assumiu o governo militar da Capital.
"Ao povo santista.
"Em perfeita concordância com a Delegacia Regional de Polícia (então sob os cuidados
do tenente Augusto César do Nascimento) e atendendo ao atual momento (o Comando do 6º B.C.P.) vem solicitar à laboriosa população santista que se
abstenha de quaisquer manifestações, a fim de que não seja alterada a ordem pública nesta cidade.
"Qualquer tentativa em contrário será repelida energicamente".
As palavras eram secas demais, rotineiras e pobres, sem dúvida, para significar que
nada mais restava da página heróica de S. Paulo e do sacrifício imenso da cidade de Santos pela Pátria. Marcava-se deste modo o fim da grande
Revolução, da Guerra Paulista, sem que houvessem sido (por falta de armamentos e de um chefe militar que não fosse Bertoldo Klinger) alcançados os
seus objetivos imediatos (Reconstitucionalização e Voto Secreto), que o seriam depois, pelos seus efeitos morais, mais fortes talvez do que os
efeitos materiais da própria Força.
Naquele mesmo dia, entrariam em Santos dois navios da Divisão Naval Brasileira que
patrulhava a costa, e o tenente coronel Índio do Brasil assumiria o Governo Militar da Praça de Santos.
Entre uma publicação e outra, porém, entre o primeiro e o segundo fato - naqueles
quase três meses decorridos - que páginas de epopéia não foram realmente escritas na terra dos Andradas! Não houve jamais e decerto jamais há de
haver espetáculo igual de abnegação, de civismo, de desprendimento, de amor e de grandeza moral, espetáculo que tivemos a honra de descrever e fixar
pela primeira vez em nossa História de Santos (vol. II, págs. 138 e 167), em todas as suas linhas e pormenores maravilhosos, sem que até hoje
alguém mais o fizesse em maior tomo, como esperávamos e como seria justo esperar.
Uma proclamação da Milícia Cívica Santista, lançada a 11 de julho, foi a chave da
Porta Sagrada do Movimento.
Outra proclamação magnífica, do mesmo dia, aparecia assinada pelos diretores do
Partido Republicano Paulista, J. Carvalhal Filho, Alberto Cintra, Renato Pinho, J. M. Alfaia Rodrigues e Adelson Nogueira Barreto. Esta segunda, a
muitos, apesar do entusiasmo do momento, pareceu eivada do ranço "carcomista" ou "saudosista", do grupo político que fora o autor direto e exclusivo
da Ditadura que se pretendia então derrubar; daquele grupo velho, mal-falado, que hoje tanta admiração e tanta saudade desperta aos desenganados de
São Paulo e do Brasil...
Depois foi a maravilha que se viu, foi o depoimento dos chefes
militares sobre o valor dos soldados santistas, e, quando três meses mais tarde ou pouco mais, se fez a chamada dos combatentes, voluntários e
heróis da terra do sentimento e do civismo, faltavam mais de quarenta. João Pinho fora o primeiro a morrer (em princípios de agosto),
sacrificado no combate de Salto, sob o comando do coronel Sampaio, na frente Norte; Carolino Rodrigues foi o segundo, a 18 de agosto, de
ferimentos recebidos no mesmo setor, nas trincheiras de Pinheiros; depois era Tiago Ferreira, do glorioso Tiro Naval, na região de Silveiras;
depois era Alfredo Schammas, a 24 de agosto, na ocupação de Guareizinho, frente Sul; a 29 de agosto era Januário dos Santos, morto por
uma granada, na trincheira, ao lado dos moços do Naval e do 8º B.C.R.; no dia 30 era Sebastião Chagas, deste último Batalhão e depois dele,
Ivampa Duarte Lisboa, no combate da Fazenda Boaventura, em Silveiras, desfalcando ainda as hostes gloriosas do Tiro Naval de Santos; e assim
Alfredo Albertini, do Naval, e Durval Amaral, da Força Pública, e Antônio Damin, o Pérsio de Sousa Queiroz Filho, o
Dagoberto Gasgon, e outros mais, muitos outros, cujo sangue, hoje, mais do que ontem e do que nunca, pede uma compensação à altura do seu
sacrifício, pedindo em última análise ao povo de sua terra que saiba fazer uso do Voto Secreto, a grande arma por eles conquistada, dando a São
Paulo governos que correspondam ao seu Passado e à sua História, condenando para sempre, definitivamente, os ladrões, as marafonas, os parasitas, os
salafrários e exploradores comuns que tentam infelicitá-lo, arrasá-lo ou reduzi-lo, infiltrando-se nos setores mais altos da sua Política e da sua
Administração, e, em conseqüência, do seu funcionalismo.
***
Fique ao fim desta evocação revoltada uma nota de estranheza. Santos
continua à espera do Monumento ao soldado e ao herói da jornada de 1932, ao seu homem, ao seu sangue, sacrificados ao ideal da redenção política e
moral do Estado e da Pátria. A A Tribuna, autora da subscrição que o produziu, desincumbiu-se há bastante tempo da sua realização. O
Monumento do Soldado Santista está pronto. Faltam-lhe apenas as obras complementares: bases de pedra e assentamento. É tão pouco o que falta! Por
que já não existe no lugar devido esse monumento reparador? Por que não se inaugurou esse justo preito de admiração e de saudade, agora, no ano do
Quarto Centenário da Capital dos paulistas?
Vinte e dois anos passados, o Monumento de Santos parece mais um símbolo (invisível por
enquanto) do próprio esquecimento em que os homens deixaram a Revolução, suas causas e seus efeitos, seus esforços, os milhares de soldados
santistas e os milhares de contos de réis oferecidos ao Movimento...
Quem sabe se é melhor que ele nunca apareça? Não será menos doloroso?!... Para que
mais uma ironia, de bronze ou de pedra, lançada ao panorama das nossas tristezas? |