SEGUNDA PARTE - INDEPENDÊNCIA OU MORTE!
Capítulo III - Fundação do império (cont.)
[...]
Últimos trabalhos da Constituinte Portuguesa
Ultimavam-se os trabalhos da Constituinte Portuguesa, estava-se nas vésperas de assinar e jurar o
Pacto votado e, apesar da atitude corajosamente assumida ela maioria dos deputados brasileiros, as Cortes, cegadas de ódio e estimuladas pelos
acicates de seu orgulho insensato, não tinham consciência exata do que no Reino Americano se passava naquela hora solenemente grave para a
integridade territorial e a unidade política da Nação.
E continuavam a expedir decretos contra o Brasil, como se tivessem meios materiais para forçá-lo a
submeter-se às afrontosas disposições de tais decretos. A cada golpe desfechado contra a altivez, a autonomia, a liberdade, as aspirações da
ex-colônia, revidava ela com um gesto cívico eloqüente que cada vez a separava mais de sua antiga metrópole.
O decreto de d. Pedro, de 3 de junho, convocando Cortes no Rio de Janeiro, e bem assim outros atos
legislativos emanados da Regência, foram anulados pela Carta de Lei de 24 de setembro, a qual, outrossim, mandava apurar a responsabilidade dos
secretários que os tinham assinado; considerava traidor o comandante de forças de terra ou mar ou outras quaisquer autoridades que obedecessem à
dita Regência; intimava a d. Pedro que regressasse para Portugal dentro de um mês, sob pena de perder a sucessão à Coroa, e mandava nomear
imediatamente a nova Regência que devia substituí-lo, e para a qual foram escolhidos, a 5 de dezembro, os seguintes membros, todos portugueses:
presidente, o arcebispo da Bahia, d. Frei Vicente da Soledade (pois que devia funcionar na capital da província, sede da resistência armada contra o
Rio); vogais, Luís Rebello da Silva, Sebastião Xavier Botelho, Manuel António de Carvalho e o coronel de engenheiros João de Sousa Pacheco Leitão;
ministro do Reino, Francisco José Vieira; da Fazenda, José Joaquim de Queirós; e da Guerra e Marinha, o brigadeiro José de Sousa e Sampaio. Tais
leis, decretos e providências só chegaram ao nosso país depois que a fundação do Império era já um fato irrevogável.
Posto em discussão o projeto, que depois foi lei, apresentou António Carlos, na
sessão de 26 de agosto [1],
uma indicação, assinada também por Fernandes Pinheiro, José Ricardo e Silva Bueno - todos santistas, como se sabe - propondo, como preliminar para
se discutir e votar o aludido projeto, que fossem declarados vagos os lugares dos deputados brasileiros, ao que se opôs a Comissão de Constituição,
cujo parecer a maioria aprovou em sessão do mês de setembro.
Concluída em princípios do mesmo mês a Constituição, preocuparam-se vivamente os portugueses com a
atitude dos brasileiros quanto à respectiva assinatura e juramento. Havia inequívocas demonstrações anteriores de que a maioria das bancadas não
pretendia assiná-la e muito menos jurá-la, por ser isso contra a sua consciência e contra os votos de sua pátria natal. E não se enganavam os
constituintes de além-mar, porquanto no dia 10 Villela Barbosa apresentou e fundamentou uma indicação assinada por 8 pernambucanos, 2 paraibanos, 2
cearenses, 2 alagoanos, 1 piauiense e 1 catarinense, propondo que o ato de assinatura e juramento fosse adiado até que chegassem notícias se suas
respectivas províncias tinham ou não eleito deputados ao Congresso do Brasil.
No mesmo dia, os deputados baianos enviaram à Mesa uma declaração de que, no caso
de não ser aprovada a proposta de António Carlos e José Ricardo, não se julgavam autorizados para assinar e jurar a Constituição, visto não poderem
continuar a ser representantes de sua província, "por contrário à vontade geral de seus constituintes"
[2].
No sábado, 14 de setembro, o paulista Fernandes Pinheiro apresentou uma
declaração pro escrito (também assinada pelo cearense Castro e Silva), de que "hesitavam em
prestar juramento ou ato algum promissório, à Constituição"
[3], e na
sessão de segunda-feira, 16, seus colegas de bancada António Carlos, José Ricardo e António Manuel da Silva Bueno aderiram a essa explícita
declaração.
O padre Feijó, a pretexto de moléstia, não comparecia às sessões desde o dia 12 do mês anterior,
entrando com uma petição de licença a 2 de setembro. Apesar da energia desabusada de que deu bastantes provas em ulteriores situações de sua vida
política, foi ele o deputado paulista que menos se expôs ao fogo nutrido dos violentos debates congressionais, talvez por entender inútil o esforço
empregado para defender a causa brasileira contra os seus inabaláveis adversários.
Vergueiro, mui enfadado com a rejeição dos artigos adicionais propostos pela Comissão Parlamentar
de Brasileiros, retirara-se para o solar de seus antepassados em Val da Porca, na província transmontana, em gozo de licenças sucessivamente
prorrogadas; e não voltou mais às lides de seu mandato.
Os outros paulistas, porém, desempenharam o seu mandato até a aprovação final da Constituição -
fato diante do qual compreenderam que não tinham mais que fazer em Portugal como delegados das respectivas províncias, à exceção de Fernandes
Pinheiro que, não obstante sua opulenta ilustração, teve lamentáveis descaídas, imputadas à fragilidade de sua organização moral e pelas quais o
condenou severamente a opinião de seus contemporâneos e o veredictum inapelável da História.
Juramento da Constituição. Os que a não juraram
Reprovados todos os requerimentos e indicações apresentados pelos brasileiros relativamente ao
juramento da Constituição, deliberado pela maioria que todos os deputados eram obrigados a esse dever, por força mesmo de seu mandato, começaram os
constituintes a assiná-la, na sessão de 23, à qual tinham comparecido 141 representantes, dos quais 36 eram brasileiros e lançaram as respectivas
assinaturas no Pacto político que reescravizava novamente sua Pátria.
Desses 36 que o assinaram, somente Muniz Tavares e Lino Coutinho se recusaram a
jurá-lo. Não o assinaram, nem o juraram, o padre Feijó, Nicolau Vergueiro, António Carlos, José Ricardo e António da Silva Bueno (de S. Paulo) e
Cypriano Barata e Francisco Agostinho Gomes (da Bahia), que não compareceu às sessões em que tais atos deviam praticar-se. O primeiro mandara às
Cortes, em sessão de 16 de setembro, uma participação de apoio à indicação, a que já nos referimos, apresentada por Fernandes Pinheiro e Castro
Silva; e nesse documento declarava peremptoriamente que só assinaria a Constituição, "obrigado,
violentado e arrastado" [4].
Vergueiro, convidado pelo secretário das Cortes, por carta, visto achar-se
ausente, a comparecer ao Congresso para dar a sua assinatura e prestar o juramento exigido, respondeu por escrito que não o faria porque a
Constituição aprovada não atendia aos interesses da Nação [5].
Castro e Silva, que, com Fernandes Pinheiro, submetera ao Congresso a célebre e
digna indicação de 14 de setembro, declarando que não jurariam o Pacto, nem praticariam ato algum promissório em relação a ele, voltou atrás de seus
propósitos, mas confessou que o fizera com receio do desterro de que os recalcitrantes eram ameaçados pela maioria dos Regeneradores
[6] - o
que dá bem uma idéia da inaudita pressão material que sobre os nossos representantes estavam exercendo, por todos os modos, os adversários da
liberdade brasileira.
Lamentável atitude de Fernandes Pinheiro
Fernandes Pinheiro, que tivera a iniciativa da sobredita indicação, que a
fundamentara e defendera no plenário em eloqüente discurso, que entendia não poder assinar nem jurar a Constituição por estar ela em "perfeita
contradição com o voto suficientemente manifestado" da Província de S. Paulo
[7],
deixou de comparecer às sessões de 24 e 25, em que se iniciou e encerrou a colheita das assinaturas.
Mas, com a versatilidade própria de seu caráter sem firmeza, permeável às injunções blandiciosas
da lisonja, e suscetível de render-se aos afagos de um elogio ou de um aplauso - não trepidou em proceder em absoluto desacordo com os reclamos de
sua consciência, com as suas públicas manifestações anteriores, com o sentir unânime de sua bancada, e com o manifesto pensamento geral da província
que representava.
O mesmo homem que "depois
de longas e maduras ponderações, guiado unicamente pelos impulsos" de sua consciência, tomara,
"sem conselho de ninguém, uma resolução FINAL sobre a posição que devia assumir";
esse mesmo homem, depois de ter declarado publicamente que "preferia sofrer as ameaças da
populaça e todos quantos sofrimentos quisesse contra mim adotar o Congresso, prisão ou expulsão, antes do que praticar ato que importasse aceitação
de uma Constituição que eu julgava pouco digna do meu País, e que estava em perfeita contradição com o voto suficientemente manifestado de minha
província" [8]
- mudou inteiramente da tarde de um dia para a manhã de outro dia e, aparecendo na sessão de 25, onde foi "acolhido
com visíveis sinais de distinção e contentamento" - confessa-nos ele com ingênua ostentação de
vaidade - declarou que, por motivos de saúde, não tinha podido assinar a Constituição no prazo estabelecido e pedia permissão para fazê-lo naquele
momento, o que lhe foi imediata e gostosamente deferido.
Afastou-se, pois, do pensamento de sua bancada e da opinião de sua província, aquele mesmo que
fora o primeiro a protestar, sem sugestão de ninguém, que não assinaria nem juraria a Constituição votada pelas Cortes, porque S. Paulo a ela se
opunha, porque era ela indigna do Brasil e porque os impulsos de sua própria consciência assim lh'o tinham determinado!
Mas ele, que nas suas Memórias altivamente se gaba de que,
neste sentido, resistiu a todas quantas sugestões e persuasões tentaram sobre sua resolução alguns
amigos [9],
não pôde resistir, entretanto, às reflexões que lhe fez, na tarde de 24, o seu amigo, deputado Trigoso, a cuja palavra mágica se rendeu como por
encanto, convencido finalmente de seu erro inicial e da necessidade de repará-lo por uma reviravolta parlamentar inesperada e escandalosa, que
provocou os mais vivos comentários públicos, geralmente desfavoráveis à imponderada conduta de nosso eminente conterrâneo.
Trigoso apresentara-lhe um argumento, que não era novo e nem tampouco formidável: que a deserção
cerrada de toda a bancada paulista equivalia "a uma declaração de separação dessa província",
responsabilidade que o pontilhoso Fernandes Pinheiro não quis assumir sobre seus ombros. Mas essa responsabilidade não seria pessoalmente sua, e sim
de toda a deputação que, aliás, nada mais tinha feito do que acompanhar, com denodada intransigência, o voto formulado por ele próprio na sua
indicação de 14 de setembro e magistralmente sustentado na sessão de 21.
Apoiando-se nas Instrucções que o Governo Provisório de S. Paulo elaborou
para se guiarem nas Cortes seus representantes, argumenta o deputado santista, com fraco raciocínio e carência de lógica, que, se não aceitasse a
Constituição, trairia o seu mandato, em virtude do qual devia, segundo era terminantemente recomendado naquelas Instrucções, trabalhar para a
união de todos os portugueses de ambos os hemisférios e pela indivisibilidade e integridade do Reino Unido
[10].
Simulava esquecer-se o emérito escritor e parlamentar, de que as Instrucções invocadas e
suas respectivas disposições e recomendações eram muito anteriores às hostilidades praticadas pelas Cortes contra o Brasil, no intuito de
reconduzi-lo à antiga servidão colonial; e que, depois de iniciadas tais hostilidades, a atitude de S. Paulo mudara radicalmente, como se vê da
representação ou ofício de 24 de dezembro de 1821 e de outros atos públicos de José Bonifácio e do governo paulista em defesa do príncipe contra as
ordens emanadas do Congresso de Lisboa; e tanto é assim que o próprio Fernandes Pinheiro, justificando os motivos por que apresentou sua indicação
de 14 de setembro, confessa que a Constituição estava em "perfeita contradição com o voto
suficientemente manifestado de minha província", conforme há pouco assinalamos.
Se, pois, em 14 de setembro, já tinha nosso patrício, tão ilustre quanto fraco, elementos para
entender que o voto da província de S. Paulo já estava suficientemente manifestado em relação à matéria - como é que vem depois opor à vontade
ulterior da mesma província as instruções por ela formuladas cerca de um ano antes sobre a matéria de que nos ocupamos?
Que causa real teria levado o futuro visconde de São Leopoldo a tão censurável atitude política?
Causa real, dizemos, porque a causa alegada e exposta nas suas Memórias é, sem dúvida, mera causa aparente. Da pecha de timidez forrou-se
ele, afirmando que agiu, não por temor e sim impulsionado por madura reflexão, e queremos crer que esta espontânea confissão fosse realmente
sincera.
O receio das insolências da ignara turba, ou das medidas punidoras que acaso o Congresso
resolvesse adotar contra ele - não teriam provavelmente acovardado o seu ânimo a tal ponto. A falta de fé e o excesso de ambição foram talvez os
móveis ocultos de sua conduta singular.
O nosso conterrâneo - ao contrário de seus colegas de bancada - não tinha plena
convicção da completa vitória do movimento nacionalista que se operava no Brasil contra o predomínio português. O Pará e o Maranhão - consignava ele
em suas Memórias [11]
- conservavam-se adesos ao governo de Lisboa; Pernambuco oscilava equivocamente entre as duas tendências; a Bahia continuava, sob a ditadura do
governador das Armas, oficialmente unida a Portugal; em S. Paulo, a opinião, dividida, travara-se de contas na praça pública por ocasião da bernarda
de Francisco Ignácio; em Minas Gerais tentava-se impedir, à força, a entrada do príncipe na capital da província; no próprio Rio de Janeiro
conspirava-se contra a Regência e contra seu ministro...
A sua falta de fé não lhe permitia entrever, através dessas agitações sempre crescentes, que a
causa brasileira caminhava célere para o seu desenlace triunfal. A inteligência, por si só, embora poderosa e embora culta, não penetra os arcanos
do porvir, se não tem a inspirá-la, a impulsioná-la, a movê-la, os puros votos do coração, a confiança nos homens íntegros, a fé nos princípios, o
ardor intenso das convicções...
Para Fernandes Pinheiro, talvez estivesse ainda longe o dia da vitória, que para seus colegas e
conterrâneos estava todavia bem perto. É que seu coração não pulsava pelo ideal comum, com o mesmo vigor pugnaz que distinguia a ação brilhante de
seus ilustres companheiros de lide. Refletiu, então, auxiliado, quiçá, pelas sagazes ponderações de Trigoso, que, se naquelas duvidosas
circunstâncias, acompanhasse inadvertidamente o passo audaz dos outros representantes de sua província, incompatibilizar-se-ia com os mais
prestigiosos elementos oficiais da Nação Portuguesa, comprometendo assim, insensata e irremediavelmente, as probabilidades vindouras de sua carreira
política, sob tão ridentes auspícios encetada...
Valeria a pena sacrificar, num gesto desabrido e inepto, as gratas esperanças do futuro a uma
aspiração utópica e que ainda lhe parecia de solução meramente hipotética? Esta foi a interrogação que o hábil Trigoso levantou no espírito de nosso
jovem conterrâneo, levando-o à renegação escandalosa de suas primitivas idéias e a uma conseqüente mudança de atitude, sob todos os pontos de vista
deplorável...
Mas não foram somente os deputados brasileiros acima relacionados que se negaram ao juramento;
houve também altos funcionários que da mesma forma procederam, como, por exemplo, o marechal Felisberto Caldeira Brant (marquês de Barbacena sob o
Império) que dirigiu ao presidente do Congresso um ofício assim laconicamente redigido: "Acuso
a recepção da carta de V. Exa., datada de 14 do corrente (novembro de 1822)
e, sendo marechal-de-campo do Exército do Brasil, onde se não admite a Constituição feita em Lisboa, não posso, nem devo, de modo algum, prestar-me
ao juramento que V. Exa. me indica".
Fuga para a Inglaterra
Depois de jurada a Constituição, tornara-se perigosa a permanência por mais tempo, em Lisboa, para
os que se tinham nobremente recusado a fazê-lo; e a 2 de outubro apareceu nas Cortes um requerimento de António Carlos, pedindo permissão para
retirar-se de Portugal, requerimento que nem sequer logrou parecer da respectiva comissão.
Na manhã de 6, soube Lisboa, indignada e espantada, que António Carlos, Feijó, José Ricardo, Silva
Bueno, Lino Coutinho, Cypriano Barata e Agostinho Gomes tinham partido com destino a Falmouth, a bordo do paquete inglês Malbourough. O seu
embarque fizera-se cautelosamente na noite anterior, segundo as investigações a que, por ordem do governo, procederam o intendente geral da Polícia
e o juiz criminal do bairro do Mocambo, e o depoimento prestado pelo piloto da barra.
A populaça referveu de ódio contra os que fugiam à sanha facinorosa dos patriotas lusitanos; a
imprensa cobriu-os de epítetos infamantes; no Congresso, Xavier Monteiro requereu que não fossem eles considerados mais como portugueses, a partir
daquele dia famoso; e alguns exaltados constitucionalistas funchalenses quiseram arrancá-los de bordo, quando pela Madeira passou a embarcação que
os conduzia.
Protesto de António Carlos e José Ricardo
Chegados a Falmouth, António Carlos e José Ricardo publicaram um longo protesto contra o que se
acabava de passar em Portugal em relação ao Brasil e aos seus deputados mais ilustres. Nesse documento, notável pela substância e pela forma, os
seus signatários, depois de se referirem às altas esperanças com que tomaram assento no Congresso e à cruel decepção que logo os fulminou, narram
circunstanciadamente tudo quanto as Cortes adotaram na sua legislação com o fim de aniquilar a vitalidade política e econômica do Brasil, e de
reduzi-lo à mísera condição anterior de colônia; e os tormentos por que passaram desde que ergueram, com altivez e energia, a sua voz, para
protestar contra desígnios tão ultrajantes de nossa dignidade e violadores de nosso direito.
Depois, então, que se recusaram a assinar e jurar a Constituição, porquanto, se tal fizesse, se
desonrariam a seus próprios olhos; as ameaças anônimas recrudesceram, e pregava-se criminosamente o assassinato dos deputados divergentes, que foi
resolvido numa sociedade secreta, da qual era membros quase todos os congressistas lusos.
Em vista disso, António Carlos requereu que lhe dessem passaportes, para poder ausentar-se de uma
terra onde a sua vida corria os maiores perigos. Mas, nenhuma resposta ou despacho obteve, pois esperavam afinal vê-lo cair, mais dia, menos dia, "vítima
da sanha da plebe assalariada pelo partido jacobínico. E, de fato, se os abaixo-assinados não tivessem dado o saudável passo de baldarem com a sua
retirada os intentos dos canibais, teriam perecido vítimas de sua cega fúria, como se depreende da denúncia feita ao intendente geral da Polícia".
E assim terminam: "Seguros,
os abaixo-assinados, com o testemunho de sua consciência, apresentam-se sem medo ao tribunal da geração presente, e não declinam o severo
veredictum da Posteridade, cuja imparcial decisão esperam favorável"
[12].
Declaração de outros deputados retirantes
Dois dias depois - a 22 de outubro - os outros deputados retirantes, Lino Coutinho, Feijó, Barata,
Silva Bueno e Agostinho Gomes, também publicaram uma Declaração que, com o Protesto de António Carlos e José Ricardo, foi estampada no
Correio Brasiliense, de Londres, dirigido por Hippólyto da Costa.
Nela expõem os signatários, embora muito sumariamente, as razões da atitude que
assumiram perante as Cortes e da sua atual retirada de Lisboa. Eles "não podiam subscrever, e
muito menos jurar, uma tal Constituição, feita como de propósito para exaltar e engrandecer Portugal à custa do Brasil",
e como, depois dessa resolução, achavam-se expostos inevitavelmente às agressões da populaça, decidiram ausentar-se furtivamente de Lisboa, uma vez
que a um dos deputados dissidentes o governo negara o passaporte solicitado [13].
Chegaram ao Recife a 8 de novembro; e a 24 de dezembro os mesmos signatários do
segundo daqueles documentos publicaram um Manifesto ao Povo da Província, que a Gazeta Pernambucana estampou em sua edição de 3 de janeiro seguinte,
e no qual diziam que o fim principal por que aportavam ali era contar lealmente à sua patriótica população os planos que contra ela se estavam
maquinando em Lisboa, onde se preparava uma forte expedição de 4.000 homens, no mínimo, destinados a Pernambuco e Alagoas
[14].
Assinada, jurada e promulgada a Constituição, as Cortes Constituintes
encerraram-se, passando a funcionar as Cortes Legislativas Ordinárias, cuja legislatura se abriu em 1º de dezembro, servindo os mesmos
representantes, entre os quais alguns brasileiros. Fernandes Pinheiro compareceu à sessão inaugural e à do dia imediato, deixando de comparecer às
demais, para com sua presença "não autorizar discussões menos decorosas, como a relativa à rainha, e outras semelhantes"
[15].
Os dissidentes foram excluídos; outros, alegando moléstia, se retiraram
definitivamente; alguns não chegaram mesmo a tomar parte alguma na legislatura ordinária, como, por exemplo, os baianos Borges de Barros, Rodrigues
Bandeira e Gomes Ferrão, os quais, entretanto, ainda se consideravam investidos no desempenho de seu mandato. Com as diversas defecções,
permaneceram efetivamente nas Cortes Ordinárias, a partir de fevereiro de 1823, até a contra-revolução restauratista que as dissolveu em maio do
mesmo ano, apenas 9 deputados brasileiros - 1 do Rio Negro (Amazonas); 2 do Pará; 2 do Maranhão; 2 do Piauí; 1 de Goiás e 1 da Bahia
[16].
A Regência, nomeada a 5 de dezembro de 1822, para governar o Brasil, na forma do Ato Adicional de
24 de setembro, não chegou a sair de Portugal. Os boatos terroristas que circulavam no Reino relativamente à política internacional da Santa Aliança
e as notícias positivas de que o Brasil proclamara sua independência e fundara o Império, pondo à testa de seus destinos o príncipe d. Pedro,
esfriaram sensivelmente o ardor dos até então irredutíveis arautos da regeneração constitucionalista.
A 13 de fevereiro chegava às Cortes um ofício do ministro do Reino, comunicando-lhes ter adiado a
partida dos membros da Regência para quando as circunstâncias o permitissem, o que nunca, porém, aconteceu.
Brasão de Armas da marquesa de Santos
Imagem publicada com o texto
A marquesa de Santos
Em meio de suas absorventes preocupações políticas, ora ufano por sua delirante aclamação e
significativa popularidade; ora indignado com as Cortes de Lisboa, que continuavam a massacrar o seu orgulho e espezinhar a sua dignidade; ora
apreensivo com as lutas fratricidas ao Norte, com a rebelião das tropas portuguesas da Cisplatina e com a ameaça de um desembarque de novas forças
expedicionárias vindas de Portugal - nem por isso o jovem monarca se olvidava um só instante da sedutora moça paulistana, do idílio aqui iniciado em
hora feliz e repentinamente cortado pelos acontecimentos ocorridos em nossa vida política; dos minutos ditosos, dos beijos rápidos mas saboridos,
que reciprocamente permutaram nos encontros por trás da Academia, ou na vivenda campestre da estrada do Ipiranga, ou no próprio palácio
governamental de S. Paulo, a desoras, quando a militança, o clero, a nobreza, a burguesia, o povo humilde, toda a população, enfim, já fatigada de
tanto e tão ruidosamente festejá-lo, recolhia aos lares para repousar...
É assim que, por carta de 17 de novembro de 1822, anunciava-lhe que tinha conseguido convencer ao
seu excelente pai, o bravo coronel reformado João de Castro, legionário de mais de uma campanha bélica renhida, de que convinha levá-la da província
para o Rio.
"Tive arte
- escrevia-lhe desfaçadamente - de fazer saber
a seu pai, que estava pejada de mim, mas não lhe fale nisso, e assim persuadi-lo que a fosse buscar, e a sua família".
Obtida a fácil aquiescência do magnânimo progenitor, cujas venerandas faces, nesse momento, se não ruboresceram, por certo, de vergonha, mas de
júbilo, foi para cá mandado, em comissão amorosa, e vencendo os soldos do seu posto, o então tenente do Esquadrão de S. Paulo, Francisco de Castro
Canto e Mello, irmão mais novo de dona Domitila, o qual parece ter dado ótimo desempenho à coscuvilhice de que fora encarregado, pois em começo do
ano seguinte, a amásia imperial já se achava de casa posta na Corte, e desde maio seu honrado pai recebia, pelas folhas de pagamento da guarnição
fluminense, os vencimentos mensais de 80$000 réis [17].
Passou a ínfida esposa do truculento e zeloso alferes Felício Pinto a ser teúda e manteúda pelo
imperador, estreitando-se, apertando-se, fortificando-se, num assustador crescendo, os perigosos laços da fortuita ligação iniciada em S. Paulo. Em
d. Pedro, natureza amorável e sensível, apesar da rusticidade de seus gestos, esse afeto, primitivamente carnal, brado instintivo de concupiscência,
mero capricho erótico dos órgãos sexuais sobre-excitados pela beleza física da amante - transformou-se, com o escoar dos tempos e a coabitação
cotidiana, numa verdadeira paixão, funesta e desordenada.
A graciosa dona Domitila empolgou-o sobremaneira na vida privada, na vida doméstica e na vida
pública; inviscerou-se em seu coração; superpôs-se aos seus mais devotados amigos, ao confiante amor de sua desventurada consorte, às sugestões e
conselhos de seus austeros ministros e aos próprios impessoais interesses da grande Pátria de que era ele o varonil, o audaz propugnáculo. Sobre o
conjunto complexo e contraditório de suas qualidades e defeitos, exerceu ela uma dominação irresistível e incontrastável, contra a qual foram
baldados os avisos prudentes, os conselhos ponderados e os ecos vibrantes da opinião pública escandalizada.
Não queremos, assim nos exprimindo, anatematizar a inconsiderada conduta do imperador em tal
conjuntura; reconhecemos que foi humana a tentação em que soçobrou sua fraqueza. Somente as almas em verdade santas são capazes de resistir à
fatalidade atávica de certos impulsos degenerescentes. O que lastimamos é que sua ardente afeição impetuosa se tivesse fixado numa criatura que,
pela inferioridade de seus instintos orgânicos, e pela frivolidade de sua educação moral e mental, não era a mais apta para guiá-lo superiormente na
função histórica que o Destino lhe tinha reservado.
Todavia, concentrou ele, no ambiente da alcova adulterina, toda a razão de ser de sua própria
existência. Vinham-lhe dali os apelos, as súplicas, as ordens imperiosas, rebuçadas na mimalhice das palavras pérfidas e no dulçor dos beijos
fementidos. Do amor desvairado de d. Pedro pela barregã temos o testemunho cabal nas cartas que lhe escreveu e nos atos públicos que por sua causa
praticou. De que fosse correspondido no mesmo grau de intensidade - disso é que nos faltam provas concludentes.
Por ela sacrificou os melhores sentimentos de seu generoso coração; por ela repudiou, com dureza,
a esposa inteligente e casta e a amizade sincera dos mais grados varões de sua Corte; por ela tombou no raso da impopularidade, e perdeu o trono,
tragado pelos abismos voraginosos da revolução. Protegeu, colocou e amou toda a sua família, inclusive até parentes bem remotos; concedeu-lhe, e a
seus ascendentes e colaterais, títulos de nobreza; contra todas as prescrições das leis jurídicas e morais, e os dispositivos expressos da
Constituição Brasileira, reconheceu como filha e princesa imperial, mandando educá-la no Paço, com o tratamento de duquesa de Goiás, a menina Isabel
Maria de Alcântara Brasileira, que da manceba tivera, e encontrou, na docilidade subserviente de nosso conterrâneo Fernandes Pinheiro, que assinou o
decreto de reconhecimento da espúria, nulo de pleno direito em face da jurisprudência em vigor e perante o regime político em funcionamento regular
- o instrumento de que precisava pra essa pretensa legalização, o mesmo que depois referendaria o decreto dando à mundanosa viscondessa acessão ao
título de marquesa de sua terra natal.
Com um simples atestado de reconhecimento, firmado coletivamente pelo visconde de Inhambupe
(António Luís Pereira da Cunha), ministro do Estrangeiro; pelo barão de Lages (João Vieira de Carvalho), ministro da Guerra; e José Feliciano
Fernandes Pinheiro, ministro do Império, datado de 20 de maio de 1826, intimou-se ao pobre pároco da Matriz do Engenho Velho, onde a bastarda fora
batizada, como filha de pais incógnitos, a 31 de maio de 1824, que modificasse o assentamento primitivo, o que tudo foi feito com a aquiescência e
permissão da autoridade diocesana, o bispo capelão-mor, d. José Caetano da Silva Coutinho.
Projeto de casamento
Pretendeu fazê-la duquesa do Grão-Pará, e, saltando por cima
de todas as conveniências dinásticas e dos preconceitos sociais reinantes em todas as épocas, quis elevá-la ao trono, dar-no-la como segunda
imperatriz, "achando-se certa vez a cerimônia disposta nos seus pormenores litúrgicos"
[18],
fato atestado pelo testemunho de uma das filhas do concubinato - a condessa de Iguassu - e confirmado "por
um certo manuscrito em poder do barão Homem de Mello"
[19].
Ignoram-se os motivos que os fizeram recuar de tão audacioso despropósito.
Conjetura ALBERTO RANGEL [20]
que, por parte da marquesa, poderia ter influído para esse recuo "o medo do assassínio com que
a ameaçaria o senador Diogo António Feijó", mas da sua frase não se percebe claro se o padre é
que a ameaçava diretamente de matá-la ou lhe fazia ver a ameaça em que ela viveria sempre, na alarmante expectativa de uma agressão homicida.
Da parte de d. Pedro, segundo o mesmo escritor, concorreria para a desistência o escrúpulo nascido
da "desigualdade no himeneu" - escrúpulo
mui pouco de esperar-se do imperador, que o não tivera, quando reconheceu como princesa imperial a filha bastarda e mandou educá-la no Paço, em
companhia e ao mesmo nível das suas filhas legítimas.
Além disso, dona Domitila, conquanto não fosse de puro sangue real, era de nobre prosápia. Por
qualquer dos ramos de sua ascendência - paterna ou materna - o seu sangue entroncava-se historicamente em velhas cepas da mais remota aristocracia;
e reprofundava até na bastardia de dona Teresa Affonso, filha de d. Affonso Henriques, o fundador do Reino Português.
Opulentou-a de jóias, que ela ostentava com soberba nas recepções da Corte; enriqueceu-a com
valiosas propriedades imóveis, fundiárias e urbanas, e outros bens; constituiu-lhe finalmente um avultoso patrimônio com o qual poderia ela viver
desafogadamente, quando o apoio imperial viesse a faltar-lhe ou a idade madura lhe indicasse a hora da retirada e do repouso...
Iniciação na Maçonaria
A acreditar-se no que escreveu o doutor PIRES DE ALMEIDA, chegou a iniciá-la na Maçonaria,
alcançando, aqui em S. Paulo, fazê-la eleger para o cargo de venerável de uma das lojas em atividade - a Ipiranga.
Afirma esse escritor que esteve presente a uma sessão por ela presidida; e aqui
vão na íntegra os seus períodos a respeito: "Pois bem: a marquesa de Santos, pelo régio amante
ali iniciada, presidia na qualidade de venerável às mais calorosas sessões. Substituída na efetividade pelo padre Manuel Joaquim do Amaral Gurgel,
mais tarde diretor da Faculdade de Direito, eu assisti ainda a uma sessão magna por ela honorariamente presidida, assessorada pelos
vigilantes Clemente Falcão Filho e João Theodoro Xavier, adjuntos à Faculdade"
[21],
ALBERTO RANGEL estabelece algumas dúvidas a respeito dessa informação porque a "mais
antiga Loja Maçônica de São Paulo data apenas de 13 de março de 1832 e não é a Ipiranga", o
que torna impossível que a neófita fosse nela receber a luz pelas mãos do imperador. Houve, com efeito, em S. Paulo, uma Loja de adoção de senhoras,
"a que se poderia ter filiado a marquesa".
Mas - prossegue o ilustre publicista - "nessas congregações femininas, acima do grau três, a
hierarquia é intransponível. Dona Domitila, no altar de venerável... roça por um caso estúrdio e fenomenal"
[22].
Em primeiro lugar, naão se pode afirmar com segurança que a mais antiga Loja
Maçônica de S. Paulo date apenas de 1832. O que não existe são dados documentais que "autorizem
a afirmar que outras Lojas existissem em S. Paulo, antes dessa (a Loja Intelligência,
de Porto Feliz, fundada em dia e mês não sabidos de 1831), posto que, na antiga província,
existissem muitos maçons esparsos"
[23].
Não há dúvida que a Ipiranga foi fundada pela Amizade, a 15 de junho de 1847
[24].
Mas seria esta a mesma Loja Ipiranga a que se refere o escrito do dr. PIRES DE ALMEIDA; ou tratar-se-ia mais provavelmente de uma Loja primitiva de
que a de 1847 adotou depois a denominação? A falta de documentos não nos permite esclarecer o caso definitivamente; por isso mesmo fica de pé o
único depoimento escrito que chegou até nós - a crônica de PIRES DE ALMEIDA, autor que se intitula testemunha de vista dos fatos que registrou.
O argumento invocado por ALBERTO RANGEL para invalidar o peso da narração que nos legou o escritor
contemporâneo - de que acima do grau três a hierarquia nas Lojas Maçônicas femininas era intransponível, e que o fato contado roça, por isso mesmo,
pelo absurdo e pelo fenomenal, por contrário aos estatutos da Ordem - não nos parece irresistível ou concludente. Ao imperador que é que importava a
hierarquia maçônica e os estatutos da Ordem? Pois ele não revogou o Direito Canônico, o Direito Civil e a Constituição que ao Brasil outorgara -
reconhecendo a filha espúria adulterina como princesa brasileira e dando-lhe o título de duquesa de Goiás? E não encontrara homens da estatura
mental de José Feliciano Fernandes Pinheiro para endossar atos tão claramente ilegais, tão incisivamente despóticos, tão flagrantemente absurdos?
E o próprio autor, que ora duvida, não é o mesmo que nos assegura que d. Pedro pretendeu ascender
a barregã ao trono, como segunda imperatriz dos brasileiros, tendo-se até chegado a dispor os pormenores do respectivo cerimonial litúrgico? Porque,
pois, hesitaria em proceder de forma idêntica com a Ordem de que fora, havia pouco, ou era talvez ainda, o grão-mestre eminentíssimo? Acaso
merecer-lhe-iam mais respeito os estatutos da Maçonaria do que a Constituição do Império? Os seus preceitos porventura valeriam mais do que as
estipulações jurídicas da legislação vigorante no Brasil? Haveria na Ordem Maçônica - que ele tantas vezes desvenerou, brutalmente apoiado na força
militar - quem se atrevesse a contradizer e impugnar suas caprichosas determinações?
Dissemos atrás que não se encontram nos documentos que lhe dizem respeito,
provas quaisquer de que ela dedicasse a d. Pedro uma afeição correspondente à que ele lhe testemunhava a cada passo. De fato, o que nos parece é que
dona Domitila, que se entregara a vários galãs sem todavia preferir nenhum, exercitava o amor como uma indústria. Fazia-se pagar generosamente para
obter do amante favores oficiais em proveito de terceiros [25].
No conchego de sua casa apalaçada, sozinhos, ambos, no contubérnio orgiástico
daquelas horas perdidas, entre um sorriso amatório e um beijo saboroso, assinava ele patentes de nomeação que previamente eram mandadas para lá
[26].
Para conseguir que o amante fizesse arquivar a devassa instaurada contra os
sediciosos de S. Paulo, recebera dos interessados uma soma de dinheiro; e para obter a dissolução da Constituinte ganhou de Costa Carvalho a vultosa
propina de 12 contos de réis, conforme revelou a José Bonifácio [27],
em carta confidencial, a imperatriz, de quem era ela primeira-dama; e esses pedidos, que o imperador cegamente atendeu, foram as causas
determinantes de todos os desastres que aconteceram posteriormente ao combalido império, com a queda e conseqüente deportação dos beneméritos
Andradas e seus mais dedicados colaboradores.
Ávida por dinheiro, não hesitava quanto aos meios para adquiri-lo; e a tal respeito explorou
quanto pôde a liberalidade do imperante. Os teres e haveres que amontoou por essa época feliz, tratou, depois, de resguardá-los contra quaisquer
possíveis dilapidações. A fonte de ouro, fulgurante e sonora, cessara de correr; convinha-lhe zelar por que se não escoasse inutilmente em
desperdícios... A preocupação de ganhar dinheiro, que na juventude a obsedara, transformou-se no requintado prazer de conservá-lo, quando a
engelhada velhice lhe bateu à porta.
A ruptura, que é sempre o remate fatal das ligações de semelhante natureza, separou finalmente o
enamorado par; ele buscou o necessário oblívio entre os braços gentis da nova esposa, cuja beleza impressionante para logo exacerbou o seu
temperamento filogínico; ela, abandonando com pesar a Corte, de cujas pompas comparticipara, refugiou-se na obscuridade da vida provinciana, onde
vieram surpreendê-la, ao cair das folhas, no morrer do outono, as primeiras manifestações da decadência.
O declinante sol da mocidade, resvelando-lhe na palidez da frente devastada, em crepusculinos
reflexos e penumbras tristes, já começava a desalumiar-lhe as iriadas, rútilas pupilas, onde cambiantes lumaréus arderam... A esbelta diva, que fora
o encanto dos salões do Paço, transmudara-se aos poucos na sensata caseira matronal, que aos deveres da administração doméstica se devotava com
excepcional afã.
Abastosa de cabedais opimos, sobreviera-lhe a preocupação da poupança, da
redução dos gastos, das economias sovinárias, o terror quimérico da pobreza; e negociava com quitandas e miudezas, por intermédio de seus numerosos
escravos, tomando-lhes contas diretamente, e vendendo-lhes, a eles próprios, e aos vinténs, o toucinho com que temperavam sua comida, porquanto ela
não lhes fornecia a necessária gordura [28].
Mas tinha mãos largas para as prodigalidades aparatosas e as filantropias de ostentação, que
repercutiam no comentário das ruas, na tagarelice das rodas desocupadas e nas locais laudatórias das gazetas. Para as festas comemorativas do Sete
de Setembro concorria sempre; e, acompanhada de uma escrava conduzindo um balaio repleto de víveres, andava pessoalmente, de porta em porta, em
assomos de caridade espetaculosa, a socorrer os necessitados.
Contribuiu com certa soma para as despesas da guerra contra o Paraguai.
Conta-nos o seu póstumo e devotado campeão [29]
que, pelo casamento de sua primeira neta, dotou-a com dez contos de réis - caso que cairia forçosamente no domínio público, servindo de pábulo às
conversações da época.
Em todos esses atos o que prepondera é o prurido da exibição, o desejo de não
ser esquecida, a preocupação de que falem a seu respeito, no anseio de provar ao mundo, outrossim convencendo-se a si mesma, que não perdera de todo
a realeza. O trono é que era outro - assentava-se na gratidão do povo que não no coração do soberano. Ao morrer, a sua fortuna, inventariada
judicialmente, com as reduções de praxe, montava a mais de 1.300 contos de réis [30].
Isto há cerca de sessenta anos (N.E.: contados evidentemente da publicação desta obra em 1922).
Demoramo-nos um pouco a retraçar o interessante perfil da favorita, porque foi ela o móvel
principal e funesto de quase todas as ações políticas do imperador, de meados de 1823 até o seu segundo matrimônio. Foi ela, sem dúvida possível,
uma das causas originárias de sua impopularidade, de sua queda, e de todas as vicissitudes por que passamos nos primeiros anos de nossa
independência.
Outra fosse ela, outros os seus dotes morais, mais generosos os pendores de seu coração, mais
nobre tivesse a educação do que a linhagem - e d. Pedro encontraria, na sua ternura respeitosa e nos seus conselhos desinteressados, o firme ponto
de apoio de que precisava para conduzir-se com segurança e com dignidade no desempenho majestático de suas altas funções.
VARNHAGEN - mais cortesão do que historiador - não faz na sua História da Independência a
mínima alusão a essa mulher, como se ela não tivera sido um dos fatores mais influentes e mais perniciosos dos acontecimentos que tão profundamente
perturbaram a marcha política do primeiro reinado.
A marquesa de Santos na velhice
(retrato sobre vidro, existente na
Biblioteca Fluminense, no Rio)
Imagem publicada com o texto
***
[...]
NOTAS:
[1] E não a 23, como diz
VARNHAGEN (obr. cit., pág. 207) e RIO BRANCO emenda em sua nota 57 à mesma página. O teor da Indicação de António Carlos é o seguinte: "Como
as províncias de S. Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, e outras, estão em perfeita união com o príncipe real e dissidência com
Portugal, o príncipe real já convocou Cortes Gerais e Constituintes no Rio de Janeiro, o que implica soberania separada, e o fez a votos dos
procuradores das ditas províncias, proponho que se declarem nulas as representações das províncias que aderem ao Governo de S. A.".
[2] VARNHAGEN - Obr. cit.,
pág. 208. RIO BRANCO, nas notas 58, 59 e 60 corrige diversos erros do autor quanto às datas dos documentos a que se refere.
[3] RIO BRANCO - Nota 60 à
pág. 208 da Hist. da Independência.
[4] GOMES DE CARVALHO - Obr.
cit., pág. 403. O sr. EUG. EGAS (Biographia do Padre Feijó, pág. 16, vol. 1º) diz que essa declaração Feijó a fez nas Cortes em sessão de 25
de abril.
[5] DJALMA FORJAZ -
Terceira Conferência sôbre o Senador Vergueiro.
[6] GOMES DE CARVALHO - Obr.
cit., pág. 421.
[7] Memórias, págs.
34 a 35.
[8] Memórias, págs.
34 a 38.
[9] Pág. 35.
[10] Págs. 35 a 39.
[11] Págs. 39 a 40.
[12] MELLO MORAES - Obr.
cit., vol. 1º, págs. 314 a 315.
[13] MELLO MORAES - Obr.
cit., vol. 1º, págs. 313 a 314.
[14] Idem, ibidem, pág.
315.
[15] Memórias, pág.
42.
[16] Nota de RIO BRANCO à
Hist. da Indep., pág. 211.
[17] ALBERTO RANGEL -
D. Pedro 1º e a Marquesa de Santos, pág. 124.
[18] ALBERTO RANGEL - Obr.
cit., pág. 235.
[19] Idem, ibidem, nota 2.
[20] Idem, ibidem, págs.
101 a 123 e 335 a 345.
[21] ALBERTO RANGEL - Obr.
cit., pág. 277, e nota 1.
[22] Idem, ibidem, nota 2.
[23] A Maçonaria no
Centenário da Independência do Brasil, pág. 49.
[24] Idem, pág. 50.
[25] De um manuscrito em
poder do falecido barão Homem de Mello (In ALBERTO RANGEL - Obr. cit., págs. 427 a 431, nota 158).
[26] ALBERTO RANGEL - Obr.
cit.
[27] VASCONCELLOS DE
DRUMMOND - Obra citada, págs. 60 e 99.
[28] Do manuscrito citado
na nota 1 da página anterior (N.E.: corresponde aqui à nota 25).
[29] ALBERTO RANGEL - Obr.
cit., pág. 280.
[30] ALBERTO RANGEL - Obra
cit., pág. 290. |