Assinatura de Martim Francisco
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Segunda viagem
Em 1805 ainda se achava Martim Francisco provido no cargo de inspetor das Minas e
Matas e é no desempenho de suas funções que o vemos empreender uma nova excursão minerográfica, desta vez pela zona da marinha. A 8 de julho do
referido ano desceu a Serra de Paranapiacaba até as planícies alagadas do Cubatão.
Itanhaém
Tomando carros puxados por bois, no porto de Piassabussú, foi até a Conceição de
Itanhaém, pela extensa Praia Grande, num percurso aproximado de dez léguas. Depois de uma pequena demora para descansar e colher informações,
atravessou o rio Conceição e seguiu para Peruíbe por uma praia que tem de comprimento cerca de seis léguas.
A indolência das populações causa-lhe triste impressão. Como não trabalham no cultivo
da terra, que é boa e feraz, alimentam-se mal; e é à insuficiência de sua nutrição habitual que se deve atribuir a sua fraqueza orgânica e não ao
estagnamento das águas e à impureza do ar.
O ilustre paulista jogava com os mesquinhos dados científicos do tempo, e não podia
supor que a indolência de que se acusa o filho do litoral não é a causa de seu depauperamento orgânico e sim a conseqüência de enfermidades crônicas
e esgotantes de que são portadores os parasitas das terçãs malignas e outros inimigos implacáveis que se geram nas lagoas tranqüilas e traiçoeiras e
nos charcos miasmáticos e sórdidos.
Peruíbe
A 16 subiu o morro de Peruíbe, sulcado de vales e cortado de ribeirões, e estranha que
aquela gente, cuja principal indústria consiste em tirar madeiras, ainda se não tivesse lembrado de levantar engenhos d'água aplicáveis à maior
movimentação da mesma indústria.
Correu à praia de Una, transpôs o morro da Juréia, um dos mais altos da costa
marítima, de onde várias cachoeiras se despenham com fragor. Aí se demorou de 18 a 20, procedendo a pesquisas e exames mineralógicos.
Colheu no Rio Verde, que nasce nesse morro, granadas vermelhas a que os habitantes do
lugar chamam rubis, e verificou que são untuosas as sementes do fruto do embiruçu e podem produzir magnífico azeite.
As dificuldades da jornada vão-se tornando cada vez maiores e ei-lo que - tomado de
desalento, prostrado pelo desânimo - escreve: "Nos desertos africanos não há tantas dificuldades a vencer como nesta
colônia portuguesa há tanto povoada; todos os caminhos, a não serem as praias, são impraticáveis".
Iguape
Por mar embarcou-se para Iguape, onde chegou a 21, viajando a carro desde o porto até
a vila. Em Iguape e seu termo, compreendendo Xiririca, encontrou 5.322 habitantes que se entregavam à cultura do arroz, havendo muitos engenhos de
descascar os saborosos grãos da nutritiva gramínea.
Levaram-no a ver a pequena casa de banhos onde se lavou o Senhor Bom Jesus, imagem
muito milagrosa, segundo o pensar do povo inculto que ali vai cumprir promessas ou pedir-lhe que o sare de enfermidades.
"O Senhor aqui é o médico universal
- escreve o douto excursionista -, pois que não há médicos nem remédios. Bom será que dure a credulidade dessa gente. E
quando deixará a ignorância de ser partilha do miserável homem?!"
Havia em toda a zona muita falta de sal e era excessivo o seu preço, pelo que os
naturais o fabricavam em pequena escala para o seu próprio consumo. Coavam a água num tacho, levavam-na ao fogo, onde a deixavam até evaporar-se e
depois, quanto tomava o ponto, batiam-na com pás, resultando daí um sal muito branco, mas pouco sápido.
Agradaram-lhe os costumes dos iguapenses, não assim os dos habitantes do porto da
Ribeira, que viviam soçobrados em degradante luxúria, como freqüentes adultérios, mesmo entre parentes. Entrou depois pelo Juquiá, cujas margens são
ricas em madeiras de construção.
Prodigiosa multidão de pássaros entrecruzavam-se nos ares, e iam confraternizar com os
viajantes, aproximando-se deles. A melodia de seus cantos e a variedade do colorido de suas plumagens amenizavam os agrores da fatigante excursão e
o tédio da soledade.
Xiririca e seu vigário
A 4 de setembro pôs-se a caminho para Xiririca, chegando dois dias depois. Povo alegre
e tratável, pecando por excesso de preguiça. Os engenhos para pilar os arrozes e moer as canas abundam como as quedas d'água.
O Pároco, encontrou-o como o de Barueri: amável e de bons costumes. Apreciava a
pintura e a estatuária, fazendo imagens de pau e pintando toda a qualidade de insetos, quadrúpedes, anfíbios e aves.
Martim Francisco também não menciona o nome desse obscuro sacerdote que chamou sua
atenção e mereceu-lhe as honras de simpáticas e calorosas referências, e nós não conseguimos descobri-lo, apesar do empenho e diligência que
empregamos nas investigações que fizemos a respeito.
Nos rios que percorreu, após uma estadia de quatro dias no lugar, percebeu restos de
antigas lavras de ouro abandonadas por já não darem lucro.
A 17, depois de ter passado o ribeirão dos Pilões e as sete cachoeirinhas, chamadas
popularmente Sete Pecados, penetrou pelo ribeirão do Iporanga, em cujas margens houve outrora um grande e movimentado arraial e ricas lavras
de ouro. No momento, só existiam valendo alguma coisa as do capitão Francisco Luís. O que maravilha, porém, é a pureza, a brancura, o esplendor das
estalactites da gruta chamada Lapa de Santo António.
A 20 achava-se às margens do Taquanvira, de onde voltou, por ser sua intenção
regressar pela marinha ao ponto inicial de onde partira. A pedra calcária existia em quantidade em toda a zona da Ribeira e ele não compreendia como
é que os seus habitantes preferiam extrair cal das ostras dos sambaquis, muitíssimo inferior à que se extrai
daquela pedra.
Cananéia
De regresso a Iguape, daí seguiu a 1º de outubro para Cananéia, pelo Mar Pequeno. Era
o mais indolente dos povos de toda a costa. Os seus 1.600 habitantes cultivavam um pouco de arroz, de mandioca e de algodão. Tudo lhes ia de Iguape
e Paranaguá. Tão alarmado ficou Martim que não hesitou em vaticinar-lhes completa extinção, caso não reformassem totalmente seus hábitos,
dedicando-se à agricultura, cujos produtos, além de abastecerem a localidade, seriam levados até Curitiba por uma estrada que se deveria abrir
ligando um povo ao outro, desde que Cananéia voltasse a amar o trabalho como dantes, como no tempo em que exportava anualmente oito a nove barcas de
farinha.
Esse povo entregara-se outrora à construção de embarcações, mas tal indústria tinha
decrescido muito e ninguém queria dedicar-se a outro ramo de atividade. Daí a preguiça, a miséria, a decadência que sobreviveram.
Depois de ter procedido a minuciosos estudos mineralógicos, hidrográficos e
orográficos, iniciou o seu regresso, e vinha convicto de que pela escassez de ouro nas terras de beira-mar deviam os respectivos habitantes dedicar
sua atividade e seu trabalho ao plantio e ao comércio.
O Diário interrompe-se a 14 de outubro, parecendo que o restante
das notas e apontamentos se extraviou [23].
Ainda não tinha completado trinta anos quando, no severo cumprimento de seus encargos,
aventurou-se aos riscos e desconfortos dessas peregrinações pelos rios, praias, selvas e montanhas do litoral e do sertão paulista.
Martim Francisco era de alta estatura e compleição robustíssima, vantagens físicas que
lhe permitiam resistir impávido às extenuantes fadigas dessas excursões penosas, sem conchego nem comodidade alguma, por extensas zonas inóspitas e
péssimos caminhos quase intransitáveis.
Pousava freqüentes vezes ao acaso, à beira de um córrego, no recôncavo de uma serra,
no fundo de uma canoa encalhada na areia; e alimentava-se mal, principalmente na região do Sul da marinha, onde, afora o peixe, eram os arrozes e a
farinha de mandioca os pratos obrigatórios de seus repastos frugais.
Além disso, constantes perigos o assaltavam de cada lado: eram os aborígines, na sua
luta de morte contra os brancos; eram os jacarés ocultos nos caniçais das lagoas; eram as cobras que rastejavam por entre as touceiras da estrada;
eram as onças que de suas furnas pulavam, esfaimadas e urrantes, à procura das presas desprevenidas e incautas...
Nada, porém, o fazia recuar das obrigações que tinha de cumprir honradamente, porque
as aceitara de vontade livre; e essa inflexibilidade de conduta no exato desempenho de suas atribuições como funcionário público dependente de
superiores hierárquicos, ele não a abandonou na vida política, no fastígio das mais ilustres posições, preferindo sempre desagradar a todo o mundo a
ter de praticar um ato contrário à lei, à moral, ao dever e à própria consciência.
Ainda em 1822, se achava ele no desempenho desse cargo técnico, do qual pediu demissão
ao Governo Provisório, após os acontecimentos sediciosos de 23 de maio daquele ano, em conseqüência dos quais viu-se coagido a demitir-se de membro
do referido governo.
A esses acontecimentos temos que fazer
minudenciosa referência no segundo volume desta obra, pela sua direta relação com a Independência. O Governo Provisório, em sessão extraordinária do
dia seguinte, resolveu negar-lhe a demissão pedida [24], nada mais tendo
feito que cumprir a lei, porque Martim fora nomeado por ato da Autoridade Real, único poder competente para conceder-lhe exoneração.
***
As qualidades
intelectuais de Martim Francisco
Da produção original de Martim Francisco, no início de sua carreira no Brasil, só se
conhecem, por terem sido publicadas, as descrições, que acabamos de resumir palidamente, de suas viagens mineralógicas na Capitania de S. Paulo. Em
Portugal, traduzira do francês, por ordem do príncipe do Brasil, um Tratado sobre o cânhamo, da lavra de Marcandier. Editou-o em 1799 frei
José Marianno da Conceição Velloso.
Também editado pelo mesmo frade e por ordem do mesmo príncipe, traduziu da
mesma língua o Manual do Mineralógico ou Esboço do Reino Mineral, de que é autor o professor de química em Mittaw, Ferber. São obras
raríssimas. Da segunda existe um exemplar na biblioteca da Faculdade de Direito de S. Paulo, segundo informa a Bibliographia Andradina
[25]. Não se tratando de obra original, nem capaz de dar à personalidade do ilustre
paulista nenhum especial relevo técnico ou literário, achamos que não valia a pena procurá-la naquela biblioteca.
Os campos de Guarapuava e seu descobridor
Escreveu mais as seguintes Memórias, que foram apresentadas ao Governo, mas não
publicadas até 1822, segundo se lê numa carta desse ano escrita pelo autor a Vasconcellos de Drummond, o grande e inquebrantável amigo dos irmãos
Andradas:
1º) Memória sobre as minas de ferro de Sorocaba, da qual nasceu a reforma da
Fábrica de Ferro do Ipanema;
2º) Memória sobre os meios de civilizar os índios dos campos de
Guarapuava[26], na província de S. Paulo;
3º) Memória sobre o aproveitamento das matas naturaes da mesma
província, à borda d'água, e seu melhoramento, e sobre a possibilidade e utilidade do estabelecimento de construções navais ao pé das ditas matas
[27].
Não encontramos em nenhum dos seus biógrafos conhecidos referência alguma a esses
trabalhos; nem sabemos que fim teriam levado tão preciosos manuscritos.
No Arquivo de S. Paulo encontramos também, trasladado para o livro de registro de
correspondência do governador Franca e Horta, um longo e erudito parecer escrito por Martim, a mando do mesmo governador, e para atender a uma ordem
do visconde de Anadia, sobre o salitre fabricado na Capitania e a existência de nitreiras naturais para os lados do rio Cipó, do S. Francisco e do
Caminho dos Gerais para o sertão da Bahia; sobre a extração do enxofre em Taubaté; sobre um processo especial que tinha o autor para obter pedra
ume, e do qual faz clara e ampla descrição; sobre o curtimento dos couros de boi e outros interessantes assuntos. No terceiro volume transcreveremos
na íntegra esse valioso trabalho.
O mais de sua produção intelectual, que não foi de reduzido volume, consiste nos seus
eloqüentes discursos parlamentares, a que teremos de nos referir no segundo volume desta obra. Teria sido escassa, deficiente, pouco brilhante,
apagada, a sua contribuição para a o patrimônio mental de nossa Pátria? Achamos positivamente que não.
Entretanto, um grande poeta e prosador de consagrada fama
[28], estudando, em resenha, a evolução da literatura paulista desde a nossa formação
inicial até a idade contemporânea, entende que Martim Francisco foi uma figura intelectual apagada. Se se quis dizer que ele não brilhou na
literatura propriamente de ficção e fantasia, como o verso, o romance, o folhetim, o teatro - estamos inteiramente de acordo com a opinião baixada
de tão alto. A tendência espiritual do grande paulista era antes para o estudo dos problemas práticos ligados à economia das nações do que para os
meros devaneios e passatempos artísticos.
Às preocupações de ordem puramente estética preferia os assuntos econômicos, a
estatística, a metalúrgica, a política, a administração. Não tinha, como José Bonifácio, a formidável capacidade enciclopédica que abrangia todos os
conhecimentos de seu tempo, habilitando-o a interessar-se por toda a espécie de questões tanto especulativas como práticas, a estudá-las
meditadamente, a resolvê-las, enfim, quando preciso, com incomparável proficiência ou sabedoria, isto é, melhor do que qualquer outro.
Mas José Bonifácio foi e continua a ser único em Portugal e Brasil; do seu advento
para cá nenhum vulto apareceu em qualquer dos dois países que se possa defrontar e medir forças com o estadista da Independência, em cuja cerebração
privilegiada se aliavam o saber teórico e o senso prático das coisas num grau que dificilmente, raramente, se encontram reunidos numa só
individualidade.
Mas Vicente de Carvalho não se referia somente
aos tipos estritamente literários, na restritiva acepção desse vocábulo, e tanto assim que na sua resenha inclui Bartholomeu de Gusmão, que não foi
senão um expoente do progresso industrial moderno como inventor dos aeróstatos e precursor da navegação aérea, e nunca um ameno cultor das
belas-letras. Em tal caso divergimos inteiramente de sua opinião, por ser injusta.
Não se pode considerar intelectualmente apagada a figura daquele que, como ministro da
Fazenda em tempo anormal e em meio anárquico e mal esclarecido, reorganizou de plano as finanças públicas, reformou as respectivas repartições,
criou departamentos e serviços vários, postos a funcionar pela primeira vez; regularizou a arrecadação das rendas e imprimiu ordem à distribuição
das despesas, dantes sujeitas às inspirações do arbítrio caprichoso; obteve dinheiro suficiente para custear os gastos excessivos com a guerra da
Independência e ainda deixou nos cofres do Tesouro um respeitável saldo em moeda corrente e outros valores bastantes para fazerem face às dívidas
que daquela guerra acaso subsistissem.
É que o seu admirável talento, em vez de burilar cantatas ou escrever novelas,
empregava-se de preferência, numa época aliás pouco propícia a tais idealizações do pensamento, em contribuir para a sólida, a definitiva
organização da Pátria que se formava.
Pode-se com espírito de justiça taxar de apagada a individualidade do parlamentar
conspícuo que tão ilustremente se destacou em nossas assembléias legislativas, proferindo discursos que primavam pela eloqüência, pela imaginação,
pela sobriedade elegante, pela forma concisa, límpida e correta e que a alguns parecem talvez literariamente superiores aos de António Carlos, o
tribuno tão aplaudido e tão famoso?
Aliás, sua cultura filológica, que lhe permitia falar e escrever desembaraçadamente
cinco línguas, fora a materna, dá bem uma idéia da extensão de seus conhecimentos literários. Ninguém aprende bem um idioma estrangeiro sem conhecer
a fundo a literatura do respectivo país.
E como a corroborar sua extremada opinião, cita
Vicente de Carvalho na página seguinte [29] o trecho de um substitutivo
apresentado por Martim Francisco: "Em 1823 o deputado Fernandes Pinheiro (S. Leopoldo) propôs à
Assembléia Constituinte a criação de uma universidade, com sede na cidade de S. Paulo. A essa proposta apresentou o deputado Martim Francisco um
substitutivo, que dizia: '- Haverão (sic) duas universidades, uma em S. Paulo e
outra em Olinda'" [30].
Aquele verbo sublinhado intencionalmente e aquele sic latino entre
parêntesis, indicando que a cópia é textual, parece demonstrarem que o grande poeta dos Poemas e Canções estranhou e quis chamar a atenção de
seus leitores para esse erro gramatical, que de fato não existe, ou por outra, que naquela época não era erro. Camillo Castello Branco, em memorável
polêmica com o nosso Carlos de Laet, que o acusava de empregar o verbo haver no plural, quando, como sinônimo de existir, suceder,
acontecer, semelhante verbo é impessoal, e só se conjuga na terceira pessoa do singular - defende-se com a citação, em seu abono, da clássica
autoridade de monsenhor Ferreira Gordo, Dias Gomes e Filinto Elysio, que o usaram assim freqüentemente [31].
Martim Francisco foi contemporâneo dos dois últimos e, tendo feito os seus estudos
superiores em Coimbra, é natural que tivesse lido as obras, em prosa e verso, de tão formosos engenhos e os tivesse na justa conta de bons sabedores
da portuguesa língua.
Além disso, o emprego da malsinada locução foi usual nos melhores
periódicos e livros da Lusitânia até depois da primeira metade do século dezenove. Martim Francisco já tinha morrido e até 1860, aproximadamente,
continuaram no velho reino escritores e jornalistas de nota a usar no plural ou pessoalmente o verbo haver, nos casos em que, tomado nas
acepções que figuramos atrás, torna-se impessoal [32].
ARNALDO GAMA, o primoroso romancista da escola e
geração romântica, que é um dos maiores mestres do idioma português moderno, também assim o escreveu repetidas vezes no seu Gênio do Mal,
segundo nos informa o sr. ALBERTO PIMENTEL [33], e no romance Honra ou
Loucura publicado em 1858 [34] emprega-o da mesma forma em diferentes
passagens, conforme tivemos o cuidado de verificar diretamente, e provamo-lo nas transcrições que seguem: "...poucos
dias haviam ainda que eu tinha lutado com todos os horrores e com todas as torturas da morte" (pág. 51); "Que
embaraços haviam para isso?" (pág. 77); "... e conheceu desde logo que para aquilo
não haviam consolações". (Pág. 82); "...estava escondido entre os ramos de um dos
choupos que haviam ali..." (pág. 125).
O próprio Camillo, no prefácio da segunda edição das Memórias do Cárcere, revista
pelo autor (Porto, Casa da Viúva Moré, editora, 1864), escreveu: "Assim mesmo haviam relanços no livro em
que o propósito não lograra sopesar o espírito" (pág. V).
Estas frases foram escritas muitos anos depois de sepultado Martim Francisco e eram
ainda correntes e puras na melhor estilística portuguesa; por onde se vê que no ano em que o representante paulista redigiu o seu projeto ainda não
era tido como erro o emprego do sobredito verbo nos casos expostos, o que só aconteceu mais tarde, quando a fatal evolução dos fenômenos filológicos
tinha contribuído com seus novos e preciosos fatores para a remodelação e gradual aperfeiçoamento de nossa língua.
Não obstante, um célebre escritor de nossos dias - EÇA DE QUEIROZ -
escreveu no Crime do Padre Amaro: "Houveram risos"; e nas suas Cartas
familiares e bilhetes de Paris (publicação póstuma), lá vem repetido o solecismo a páginas 242 e 243
[35]: "Assim ele evitará o
afrontoso escândalo de haverem substantivos". É que a tradição ainda não desapareceu inteiramente. Há
construções idiomáticas abolidas, há vocábulos caídos em desuso, que são como velhas raízes que às vezes remanescem inextirpadas debaixo do solo; um
belo dia, sem que ninguém o espere, brotam, crescem tenazes, viçam acidentalmente ao lado das plantas novas.
Martim Francisco fez o seu aprendizado teórico em Portugal e como todos os brasileiros
de talento que lá se prepararam, aprendeu facilmente a manejar com perfeição o vernáculo, bastando-lhe para isso a prática habitual com seus lentes
e seus condiscípulos e a leitura dos livros escolares e das obras-primas da literatura do país.
Vicente de Carvalho mesmo observa, no trabalho a que nos estamos referindo, que a
geração brasílica dos poetas românticos vazava geralmente os seus versos em forma incorreta e desmanchada. Ora, isso se verifica, de fato, nos que
daqui não saíram, como Álvares de Azevedo e Fagundes Varella, primeiro, e Castro Alves logo depois; o mesmo, entretanto, já não acontece com
Gonçalves Dias, cuja linguagem, cujo estilo e cuja métrica são modelos de casticidade e de bom gosto e foram adquiridos no proveitoso convívio do
meio coimbrão, sob as pesadas abóbadas da velha universidade.
Seria, pois, Martim Francisco, o único brasileiro a não conseguir durante a sua
permanência na metrópole o que todos os outros sempre conseguiram - falar e escrever corretamente a língua respectiva? Isso, porém, ainda que se
tivesse dado, não serviria de base para fulminá-lo com a sentença de individualidade intelectual apagada, só porque não se dedicou a meros trabalhos
de composição literária.
Podemos afirmar com segurança que dos documentos originais que temos visto, quer de
Martim, quer de António Carlos, se verifica que ambos escreviam corretamente o português. No entanto, os discursos do último, estampados nos
Annaes da Constituinte, primam pelos erros, que têm de ser logicamente imputados à incapacidade dos revisores da época.
Não teria sido por erro de revisão que o verbo haver no projeto de Martim aparece
grafado em forma pessoal? É claro que sim, porquanto nos papéis redigidos do seu próprio punho, e existentes no Arquivo, encontra-se mais de uma vez
aquele verbo empregado acertadamente, isto é, de acordo com as modernas tendências da sintaxe portuguesa. Usando-o duma ou de outra forma naquela
quadra, ele, entretanto, escrevia como os bons escritores passados e contemporâneos.
Veremos no segundo volume como essa individualidade se revelou intelectualmente forte
na luta que, a par de seus dois grandes irmãos, empreendeu gigantescamente a prol da independência financeira e da estabilização definitiva da
Pátria que eles fundaram.
Casamento
A 15 de novembro de 1820 casou-se Martim Francisco na terra de seu
nascimento, com d. Gabriela, filha de José Bonifácio. Pôs-lhe esse nome seu pai, em homenagem à condessa de Linhares, de cujo esposo era ele grato e
dedicado amigo. "Faça-me V. Exa. a mercê de dizer à estimadíssima sra. d. Gabriela, que para dar um exemplo de imitação
de virtudes e boas qualidades, e não podendo tomá-la por comadre por estar de longo tempo engagé, pus o seu auspicioso nome à minha última
filha, que é muito linda e boa" [36].
Pela data da carta de que reproduzimos o período acima, vê-se que d. Gabriela era muito mais moça que seu marido.
O casamento se realizou às 8 horas da noite, em casa de José Bonifácio, sendo
celebrante o vigário da paróquia, reverendo José António da Silva Barbosa, que se esqueceu, aliás, de assentar no livro competente os nomes dos
padrinhos, apesar de dizer que os noivos se receberam solenemente em sua presença e das "testemunhas abaixo assinadas".
Cremos também que é equívoco do pároco quando afirma que o ato foi celebrado em casa
do pai da noiva, pois José Bonifácio, logo que se recolheu a Santos, foi residir no seu pitoresco sítio dos Outeirinhos,
lugar afastado do centro populoso, e, naqueles tempos, inacessível à noite pela falta de iluminação e pelo péssimo estado do caminho que levava até
lá por entre matas.
O local da cerimônia teria sido certamente a casa da Rua
Direita, da avó da desposada, d. Maria Bárbara, que, por ter mais de oitenta anos, não teria podido trasladar-se, mesmo por mar, até o sítio do
filho e desejaria, entretanto, estar presente às núpcias.
Assim, pois, por uma dessas curiosas contradições que não são raras nos propagandistas
obstinados, o ilustre varão que, com tanta e tão ardorosa eloqüência combatera, desde a mocidade, os perigos e os males do celibatismo, como fatores
do nosso atraso e decadência, quer social, quer econômica - só aos 45 anos de idade, quase ao transpor as raias da madureza para a velhice, é que
tratou de por as suas opiniões teóricas de acordo com a sua conduta prática. Por onde se vê que não foi ele dos primeiros que se converteram às
doutrinas de que se fez apóstolo e pregador entre os paulistas refratários ao casamento...
De sua prole nos ocuparemos na parte documental, onde estão
devidamente retificados e acrescidos, os Apontamentos Genealógicos, do dr. José Bonifácio.
***
NOTAS:
[23] A propósito desse
trabalho de Martim Francisco, o sr. REMIGIO DE BELLIDO (obra citada) faz mais uma de suas costumeiras trapalhices bibliográficas. À página 46
registra, sob nº 19, o Diário Mineralógico, de 1805, que foi publicado na Revista do Instituto Histórico Brasileiro, no volume
correspondente ao ano de 1847, página 527. Até aí está certo. Mas à página 47, sob nº 21, lá reaparece o mesmo Diário, com o título
modificado ligeiramente e com a nota de ter sido dado a lume naquela Revista, no volume 9º, correspondente ao ano de 1870. Aí é que está o
erro. Esses dois Diários resumem-se efetivamente num só - o que saiu no volume de 1847, que é o 9º. O volume de 1870 é o 32º e nele não saiu
trabalho algum de Martim Francisco.
[24] Documentos
interessantes, v. 37, página 315.
[25]
Página 43, nº 3.
[26] Estes campos foram
descobertos a 8 de setembro de 1771, pelo então tenente Cândido Xavier de Almeida e Sousa, mais tarde marechal-de-campo dos Reais Exércitos,
reformado no posto de tenente-general por decreto imperial de 8 de março de 1824. Por alvará de 1º de abril de 1809 criou-se neles uma aldeia de
índios e um presídio para criminosos.
O alvará de 11 de novembro de 1818 fundou ali uma paróquia, sob a invocação de Nossa Senhora
de Belém, e a lei provincial de 21 de março de 1849 elevou-a à categoria de vila. Com a elevação da comarca paulista de Paranaguá e Curitiba à
categoria de província (decreto nº 704 de 29 de agosto de 1853), sob a denominação de Paraná, Guarapuava passou a pertencer à nova província
(AZEVEDO MARQUES, obr. cit., vol. 1º, pág. 173, col. 1ª. J.J. RIBEIRO, obr. cit., v. 1º, pág. 6t56, col. 2ª. MOREIRA PINTO - Chorographia do
Brasil, pág. 203, col. 1ª). Guarapuava é hoje uma cidade importante, e em 1900 contava já 13.134 habitantes (Synopse do Recenseamento Federal
de 1900, pág. 61).
[27] Annaes da
Bibliotheca Nacional, v. XIV (Cartas Andradinas).
[28] VICENTE DE CARVALHO -
Literatura Paulista (Na Biblioteca Internacional de Obras Célebres, v. XXIX, página 9.232).
[29] Lugar citado, página
9.233.
[30] A indicação, e não
proposta, de Fernandes Pinheiro, apresentada a 12 de junho de 1823, foi à Comissão de Instrução Pública, da qual era relator Martim Francisco. Este,
depois de dar-lhe maior amplitude, converteu-a em projeto que submeteu à apreciação de seus pares a 19 de agosto. Longa e calorosamente debatido,
foi, afinal, aprovado na sessão de 4 de novembro, mas não logrou sanção, por ter o imperador dissolvido violentamente a Assembléia oito dias depois.
[31] Echos Humorísticos
do Minho, nº 3, 1880, páginas 14 a 17.
[32] ALBERTO PIMENTEL -
Notas sobre o "Amor de Perdição", páginas 82 a 84 e nota 1.
[33] Obr. cit.
[34] Edição da Casa Cruz
Coutinho, 1858, Porto.
[35] 1ª e 2ª edições.
[36] Carta escrita a 26 de
maio de 1806, da Quinta do lmegue, a d. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares (dr. SILVA MAIA, Biographia citada, apêndice). |