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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
Clique na imagem para ir à página principal desta sérieJosé Bonifácio (6)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, em seu capítulo III (José Bonifácio), com grafia atualizada (páginas 406 a 421):
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Sua atitude contra a escravidão moderna

A propósito de suas idéias abolicionistas, afirmadas ininterruptamente desde as memórias juvenis que escreveu, quando estudante da universidade, até o projeto legislativo elaborado nos fins da sua madureza cerebral, e que é um dos padrões por onde se pode aferir da sua capacidade como estadista, levantam-se-lhe também agora acusações que temos o dever de examinar, mormente quando se baseiam na exposição de fatos e na exibição de documentos que, à primeira vista, parece resultarem na condenação do nosso ilustre conterrâneo.

É realmente estranhável, para quem observa o assunto pela rama, que José Bonifácio, não obstante suas firmes convicções exaradas, publica e solenemente, em mais de uma circunstância memorável, possuísse dois ou três escravos destinados a seu serviço e os tivesse formalmente transmitido por herança à sua filha natural legitimada, d. Narcisa Cândida.

Basta, porém, refletir com um pouco de atenção sobre o conjunto da situação brasileira naquela época, no tocante sobretudo à constituição do regime doméstico, para que se compreenda e explique facilmente o caso, que ora serve de pretexto a um novo ataque à coerência política de José Bonifácio e à sinceridade moral dos princípios pelos quais pautava seus atos na vida pública.

Quando ele se estabeleceu definitivamente no Brasil, com a família que em Portugal formara, era difícil, ou antes, era totalmente impossível encontrar-se gente de condição livre para os trabalhos do lar. Estas humildes e grosseiras funções não atraíam os raros serviçais de tal origem, que preferiam empregar-se como artesãos nos diferentes ramos das atividades manuais. O pesado encargo dos serviços domésticos era, pois, uma função privativa da escravatura africana - circunstância que mais fazia avultar o desprezo e o nojo dos livres ou libertos pelos serviços de semelhante natureza.

Tinha, portanto, José Bonifácio de apelar forçosamente para os pobres cativos, por compra ou por aluguel. Ora, uma vez que era, no momento, irremediável a fatalidade das condições do meio, convinha-lhe muito mais adquirir os escravos que as necessidades domésticas reclamassem, do que alugá-los de outro senhorio, não só porque assim garantia melhor sua estabilidade nas funções, como também porque poderia ministrar-lhes, a par de um tratamento generoso, alguma instrução e educação adequada e conveniente a indivíduos que teriam de viver em prolongado, em permanente e familiar contato com as mulheres de que exclusivamente se compunha seu lar.

Os negros de aluguel, sujeitos a sair de seu emprego de um momento para outro, além das perturbações que, com sua retirada, ocasionariam numa casa bem organizada, não poderiam ser disciplinados com facilidade, como aqueles, nos princípios e hábitos morais de seus patrões.

De qualquer forma, teria José Bonifácio de transigir com a instituição que abominava. Estranha-se mais, estranha-se principalmente que, depois de ter proclamado que essa instituição nos "inoculava toda a sua imoralidade e todos os seus vícios", ele, em flagrante contradição com seu pensamento, comprasse escravos exatamente para viverem como serviçais ao lado de sua esposa e em promiscuidade com suas jovens filhas; mas bem se vê do que acima dissemos que a crítica não assenta em base muito segura.

Se, para ser coerente com suas opiniões anti-escravagistas, em vez de adquirir ou contratar escravos, recorresse a forros ou libertos - dado que abundassem então - não teria resolvido de forma alguma o aspecto moral do problema proposto às suas cogitações, porque tais indivíduos, oriundos da mesma camada social, dotados dos mesmos vícios, eivados das mesmas máculas, conspurcariam como os outros a virginal pureza das donzelas e a castidade austera das matronas.

O problema era geral e não individual ou doméstico puramente: exigia, portanto, uma solução geral; e essa deu-lha José Bonifácio no seu projeto a respeito. Preocupado com a abolição do elemento servil, durante os longos anos em que residiu na Europa, por lhe parecer que a escravidão era incompatível com o Direito e com a Religião, ao regressar à sua pátria teve novos e mais poderosos motivos para condená-la com a maior veemência.

Vivendo no próprio meio de que o escravo era o principal fator econômico, veio a conhecer de perto e mais profundamente os males sem conta a que a família brasileira estava exposta e com ela a própria nacionalidade em formação.

Pareceu-lhe, pois, que era dever imperioso seu intervir publicamente para a extirpação completa e rápida da imoral superfetação que crescia e se alimentava no nosso organismo coletivo, esgotando-lhe as forças renascentes.

Vemo-lo então incluir, nas Instruções que redigiu em S. Paulo para orientação dos deputados paulistas às Cortes Constituintes de Lisboa, um dispositivo reclamando a supressão da escravatura por meio de uma série gradual de medidas sistemáticas; e mais tarde voltar ao assunto com o seu notável projeto que, se fora adotado naquela época pela Assembléia Constituinte e Legislativa Brasileira, teria, dentro de poucos anos, e sem o menor abalo, resolvido peremptória e radicalmente a questão.

Muitas das idéias consignadas no projeto do Patriarca foram mais tarde incorporadas à chamada Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871. A ação de José Bonifácio, no sentido de banir da Pátria a infanda instituição, que não assentava em lei alguma que a legitimasse [95], fala bem alto em abono de suas convicções e generosos sentimentos cívicos.

O exemplo de fazendeiros paulistas que aboliram nas suas propriedades agrícolas o regime da escravidão, em tempos já bem próximos da libertação geral, decretada pela lei de 13 de maio de 1888, não pode ser posto em confronto nem servir de contraste com a atitude de José Bonifácio em situação política e social muito diversa.

Para S. Paulo estava já regularmente encaminhada uma forte corrente imigratória destinada a substituir o braço escravo, pois os previdentes lavradores de então haviam compreendido que o elemento servil estava prestes a desaparecer e era ele até certo ponto um obstáculo à vinda dos colonos europeus, que não queriam trabalhar conjuntamente com o negro sujeito ao cativeiro.

Suprimir a escravidão era, pois, suprimir um dos entraves que se opunham ao regular estabelecimento dos trabalhadores brancos nas fazendas. Não era preciso que o altruísmo tocasse o coração do agricultor escravocrata, era bastante que à sua razão falassem os seus próprios interesses econômicos.

Libertada em massa a escravatura empregada no plantio do café, não faltaria quem a substituísse vantajosamente, no caso de um abandono geral dos serviços por parte dos negros alforriados. José Bonifácio, ao contrário, não possuía escravos como fatores de riqueza, não explorava os seus salários em vantagem própria, não tirava deles nenhuma espécie de lucro, ou proveito industrial. Tinha-os a seu serviço pessoal e doméstico, sob o imperioso influxo de circunstâncias que não podia remover.

Aliás, não seria o crioulo Anacleto, de 19 anos, que pouco tempo durou em sua companhia; nem a "criança cabrinha chamada Constança", ou o "preto de nação chamado Pedro" que, com a sua permanência em casa de José Bonifácio na qualidade de escravos, impediriam a abolição total do cativeiro, insistentemente reclamada dos poderes públicos pelo seu próprio senhor.

A essa reforma se opunham, e se opuseram até os nossos dias, os grandes proprietários rurais, em nome da riqueza particular que ela solapava inesperadamente, e os mais conceituados chefes políticos, em nome de certos e duvidosos princípios econômicos, da estabilidade da ordem material e da segurança das instituições em vigor - respeitáveis esteios sociais ameaçados em seus fundamentos pela adoção de quaisquer medidas radicais a tal respeito.

Singular, curioso escravagismo, o de José Bonifácio, que se comprazia em combater a servidão em todos os tons e propunha à Assembléia Legislativa um projeto para extirpá-la do Brasil dentro de poucos anos!

***

Imputação de falso plagiato

Não para aí, porém, o tremendo libelo infamatório. Não basta, para derrocar tão forte herói, apontá-lo unicamente à irreverência das novas gerações como um improbidoso desfrutador de empregos públicos lucrosos, cujas funções não exercia; é pouco, é insuficiente estigmatizá-lo de professor incapaz; de escravocrata que iludia hipocritamente seus contemporâneos com as aparentes manifestações de refalsados ideais libertatórios.

É que, perante a luta acirrada e sôfrega em que hoje se debatem ansiadamente os profissionais das letras, que enxameiam em nosso país, vindos de todas as partes e concorrentes a todos os postos, os escritores novéis que apenas repontam na arena, tomados do afã de conquistar depressa os louros triunfais, contam menos com o honrado e lento esforço de seus próprios méritos do que com a extravagância e a imposturice das atitudes mais charlatanescas.

Para atraírem à força a atenção do público que se move e remove indiferente sem percebê-los sequer, procuram suprir a deficiência das idéias e a insinceridade dos impulsos, com o arrojo dos conceitos, a bizarrice das proposições - paradoxos que são alarvidades - e lançam-se, afoitos e aventurosos, contra a grandeza das causas vencedoras e contra o prestígio dos homens consagrados.

Na faina iconoclasta que os anima, não os propele - é bem claro - nenhum estímulo franco de esclarecer e demonstrar verdades úteis, em geral proveito: só almejam pôr em foco sua personalidade e em evidência os primorosos talentos de que egolatricamente se proclamam possuidores no mais alto grau.

Não nos admiremos, portanto, de vê-los esfossar nos entulhos do passado uma odiosa calúnia assacada outrora em Portugal contra a honorabilidade literária de José Bonifácio. Reeditam-na agora, cônscios de que praticam, ostentosa e voluntariamente, uma incomportável infâmia, porque do próprio documento que serviu de base à acusação, transverbera-se limpidamente a defesa do acusado pela prova cabal de sua lisa conduta.

Para se ter antecipada e plena convicção de que se trata de uma torpeza, basta citarmos o nome do acusante, que, segundo lemos no libelo, pois diretamente nada averiguamos - é o famigerado padre José Agostinho de Macedo, o incorrigível clérigo devasso, cuja fisionomia retraçamos com amplitude na parte introdutória deste trabalho, mostrando que só dois pendores - e da pior espécie - o orientaram nas lutas aspérrimas em que se empenhou - o ódio, ditado pela inveja, aos que tinham mais valor que ele; e o excessivo amor do ganho material, que transmutou sua pena resplandecente de facetas várias, em venal objeto mercatório, posto à franca disposição de quem melhor e mais generosamente pagasse. E para satisfazer essas degenerescentes inclinações de sua alma, não olhava meios nem respeitava pessoas.

O Périplo de Hannon

José Bonifácio, que nos raros lazeres que lhe deixavam as suas multíplices funções de natureza oficial - na Administração, na cátedra e nos tribunais - cultivava com predileção o estudo da Geografia antiga, trasladara do grego clássico ao português moderno o famoso Périplo, de Hannon, rei dos cartagineses e seu general.

Desse velho roteiro, onde se descrevem as duas viagens feitas pelo soberano ao longo das regiões da Líbia, para além das colunas de Hércules, já havia em Portugal duas traduções anteriores, uma das quais cuidadosamente realizada por Thomé Barbosa, helenista e filólogo de fama.

José Agostinho e Macedo, usando insidiosamente de seus indignos processos habituais, saiu a campo com bulhoso e frenético prazer para acusar José Bonifácio de ter plagiado a tradução de Thomé.

Sabe-se perfeitamente o como é tarefa relativamente fácil imputar a autoria de um plágio a um escritor qualquer, por mais notável que seja e por maior conceito que goze, porque nós não levamos senão a reproduzir, com variantes de forma, a elaboração gigantesca dos filósofos, dos poetas, dos moralistas, dos insignes mestres que nos precederam no evoluir dos séculos transpostos; e mais fácil é a tarefa quando se trata, no caso presente, de uma tradução que, justamente por ser tradução, havia de apresentar forçosamente numerosos traços de semelhança e pontos de estreito contato com as outras traduções do mesmo original.

Em tais condições, basta não ter escrúpulos de consciência ou delicadezas d'alma, para que um escritor tente por esse meio o descrédito do rival, cuja glória é a tortura quotidiana, a incurável obsessão de sua vida.

Com relação a José Bonifácio, o ataque malogrou-se por completo, em razão mesmo de sua origem e do alvo que objetivava, porque ao padre Agostinho de Macedo faltava qualquer parcela de imputabilidade moral para, com sua palavra em absoluto grau de desprestígio, macular a pureza de um brilhante nome encastoado na permanente admiração dos povos cultos.

Efetivamente, a acusação era fantástica; não havia plágio. Com a austeridade própria de seu elevado caráter, José Bonifácio, reconhecendo espontaneamente os inegáveis méritos da versão devida a seu confrade, não se quis dar, inútil e pedantescamente, ao supérfluo trabalho de fazer outra; e dela adotou confessadamente tudo quanto lhe pareceu preferível à sua própria tradução.

É a esse ato de suma e rara modéstia, de respeito à competência alheia, e de lealdade e clareza de conduta, que o ex-frade José de Santo Agostinho - outrora solenemente expulso, por sentença conventual, da Ordem a que pertencia, em punição de seus costumes relaxados e das ações repreensíveis praticadas com escândalo público e infração da disciplina monacal - teve o desplante de capitular de crime!

Mas é tempo de ouvirmos as palavras do próprio tradutor, na concisa Prefação de seu trabalho. Depois de prodigalizar a Thomé Barbosa rasgados elogios, chamando-lhe "um dos nossos melhores helenistas e filólogos, homem muito douto", assim se exprime textualmente, salvo os grifos e os caracteres em versal, que são empregados por nós: "Adotei, na presente tradução, quanto me foi possível, a do HELENISTA PORTUGUÊS, por ser MUITO FIEL E EXATA, e só dela me afastei quando o texto original assim o exigia ou a melhor inteligência do assunto; por isso em alguns lugares segui outra pontuação e em dois adotei diferente lição proposta por hábeis comentadores, porque assim me pareceu que exigiam as leis da crítica e a pureza do texto".

Eis aí em que consistiu o pretendido plágio: - em adotar, exceto duas únicas passagens e uma ou outra mudança de pontuação, o trabalho de Thomé Barbosa, e declarar francamente ao público que assim procedia porque esse trabalho era exato e fiel na tradução do original!

De maneira que: transcrever trechos integrais de um determinado autor, citar a obra de onde os transcreveu, elogiá-la sem hesitação nem reservas, dar nobremente a conhecer os motivos por que prefere a alheia tradução à sua própria - é praticar um latrocínio indecoroso, digno e passível da mais severa punição!

E não é tudo. José Bonifácio foi ainda mais longe no respeito à produção de seu insigne colega - submetendo previamente a sua versão ao critério, ao julgamento e à competência dele. É Felix Pacheco quem nos conta este detalhe, nos eruditíssimos comentários com que acompanhou e esclareceu as notas manuscritas deixadas por José Bonifácio a respeito do Périplo e conservadas na seção de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro [96].

E essa impudente calúnia, morta de inviabilidade ao nascer há mais de um século, querem-na reviver de novo insensatos rapazes brasileiros, que se esforçam na triste e vaníssima empreitada de obscurecer a glória refulgente e imarcessível de um dos mais notáveis cidadãos da América! A tal ponto a preocupação vangloriosa de conquistar um posto saliente na república das letras se apoderou do coração e do espírito desses desatinados rapazes, que neles extinguiu os últimos bruxuleantes reflexos da veneração devida ao compatriota prestadio e ilustre, cuja robustidão mental, nutrida por enciclopédico preparo, dilatou o nome do Brasil por todos os recantos do mundo ocidental!

E para reforçarem de novas energias o nenhum valimento da calúnia, tão imbecil quanto ousada, usam também de recursos e processos equivalentes aos que notabilizaram o irresponsável masmarro augustiniano nos anais crimnalógicos de Portugal, onde figura até como ladrão. É assim que, faltando completamente à verdade, com o mais insólito desplante, escrevem que, na sua Prefação, José Bonifácio apenas diz "que lera num jornal de Coimbra uma tradução de um dos nossos melhores helenistas e filólogos, homem muito douto". É falso que ele apenas dissesse isso: ele disse mais, disse muito mais, porque disse tudo quanto devia honestamente dizer no trecho que atrás reproduzimos e no qual confessa e explica as cândidas razões que o induziram a adotar a correta versão de seu confrade.

O fato de ter o Patriarca citado essa tradução e elogiado os méritos do tradutor, sem ao menos lhe mencionar o nome, é outro grave elemento de acusação que vibram contra ele. Porque é que não se refere ao autor, quando lhe cita a obra, se não propositalmente para ocultar o nome da vítima a cuja custa se locupletou?

Uma alma boa e sã, um reto coração tenderia logo a formular espontaneamente a hipótese mais simples e mais simpática, de acordo com o documento apresentado. Examinando-se esse documento, qual a hipótese que devemos adotar, em face dele, uma vez que José Bonifácio gabou a tradução de Thomé Barbosa e elogiou incondicionalmente e sem rebuços o respectivo autor, sem todavia lhe citar o nome? Ou que houvera de sua parte um mero e involuntário esquecimento, possível e admissível em homem tão sobrecarregado de funções; ou então parecera-lhe que seria indelicado fazer nominal referência a um especialista de tamanho porte, a propósito de uma obra que acabava de surgir dos prelos, aumentando, acrescentando a sua fama.

Assim como escrevemos - o épico dos Lusíadas, o cisne de Mântua, o impressionista dos Sertões, o lírico da Rosa, Rosa de amor... o poeta dos Escravos, sem o desnecessário acrescentamento de nomes que todos têm obrigação de conhecer, José Bonifácio, escrevendo apenas - o douto helenista e filólogo tradutor do Périplo, poderia estar na plena convicção de que os seus contemporâneos sabiam perfeitamente a quem é que ele se dirigia.

Isto, porém, que ora aqui traçamos é apenas para mostrar de que péssima composição moral é formada a alma dessa gente. São hipóteses que os espíritos generosos levantariam sem hesitação para explicar um caso tal. Mas para desfazer a acusação ineptamente argüida contra José Bonifácio não se faz mister arquitetar nenhuma hipótese: os fatos defendem-no estrondosamente.

Ele, na sua Prefação, não mencionou o nome de Thomé Barbosa porque a tradução deste fora estampada anonimamente no Jornal de Coimbra. Com que direito iria pois desvendar ao público o mistério em que o tradutor se acobertara? Daí a razão pela qual se refere discretamente a essa tradução, publicada naquele jornal, nº 21, "por um dos nossos melhores helenistas, homem muito douto".

E não se diga que os acusadores ignoravam tal circunstância, porquanto Felix Pacheco, em seu magnífico estudo já citado, deixa-a muito claramente assinalada; e foi ao seu trabalho que os meliantes exclusivamente recorreram para proclamar, com ignóbil desfaçatez dobrada de má-fé, que José Bonifácio plagiara despejadamente a tradução portuguesa de Barbosa.

No entanto, reproduziram eles do referido trabalho o texto grego do Périplo, sem lhe declararem a legítima procedência. Passariam assim por helenistas consumados aos olhos dos crédulos e dos basbaques. A frase que vem no alto do texto reproduzido - "Eis o texto grego do Périplo hoje bem raro" é cópia literal da que usou Felix Pacheco, precedendo a transcrição do mesmo texto no Jornal do Commércio, há 21 anos passados - ligeireza que muito compromete os créditos literários e a honorabilidade moral dos detratores do famoso Andrada.

Mas - pressuroso indagará um dos sequazes, esboçando na cretinice do rosto um sorriso velhacaz - se já havia uma exata e fiel tradução do antigo Roteiro do cartaginês, que necessidade tinha José Bonifácio de publicar outra, que não é senão a mesma de Thomé Barbosa, retocada, emendada aqui e ali?

É que era seu intuito anotar e comentar, como o fez com grande êxito, esse raro e instrutivo documento, não apenas por simples curiosidade filológica e erudita, mas para esclarecer pontos obscuros e controvertidos da Geografia antiga do Oriente e, sobretudo, para demonstrar que os ousados marinheiros de Cartago, precedendo de muitos séculos os arrojados nautas portugueses da era dos descobrimentos, já tinham percorrido e conheciam uma grande extensão da África ocidental.

Dominado por esse pensamento, na Alemanha traduzira o Périplo, e tinha começado a estudá-lo cautelosamente, quando outros e mais urgentes afazeres obrigaram-no a abandonar sua tarefa. Anos depois de novamente estabelecido em Portugal, teve oportunidade de conhecer a tradução de Thomé, a qual acabava de sair a lume; e este acontecimento o leva a prosseguir nos estudos que houvera interrompido. Verificando nesse momento que a tradução publicada transcendia em méritos à sua, adotou-a como base para suas anotações e comentários. Haverá nada neste mundo mais digno, mais hombridoso, mais honesto?

Aliás, aos seus façanhosos demolidores brasileiros, não lhes causou surpresa alguma o pretendido plágio que lhe imputam. E porquê? Porque José Bonifácio, curto de inteligência como era, e mal preparado, como todos sabem, não possuía do grego o cabedal suficiente para fazer uma tradução prestável. Não são eles que o dizem: é o próprio tradutor quem o confessa...

E, ufanos, transcrevem da Prefação do Périplo: "Sairia ela (a tradução) mais alinhada e completa, se me não faltassem conhecimentos mais profundos da língua grega...".

A modéstia, que é o mais belo ornato natural dos espíritos realmente sábios, era, por isso mesmo, um dos característicos fundamentais da personalidade de José Bonifácio. Foi ela que lhe ditou à recatada pena aquelas memoráveis expressões - admirável exemplo dado, por um pensador gloriosamente encanecido nas lutas da inteligência, às obscuras mediocridades de agora que, habituadas, em não pequena parte, a auto-elogiarem-se impudicamente nos livros que publicam e nos reclames que escrevem para os jornais, gabando seus próprios méritos - são incapazes de compreender e sentir o desprendimento de tão belo gesto.

É por essa razão que eles confundem um impulso de modéstia com uma confissão de incompetência. Introvertidos, que se reconcentram dentro de si mesmos, não vêem cá fora mais do que a projeção do que lá dentro existe.

Acusação de aulicismo

Assim inteiramente destituídos de veneração, como poderiam qualificar senão de aulicismo a respeitosa conduta de José Bonifácio para com os reis portugueses e seus primeiros-ministros? Dona Maria Primeira manda-o percorrer a Europa, à custa do Real Erário, em longa viagem de instrução; o príncipe regente, depois rei d. João VI, acolhe-o com a maior simpatia e benevolência, enche-o de mercês, cobre-o de distinções, cria cargos honrosos para lhe confiar, nomeia-o para as mais variadas funções - no Magistério, na Magistratura e na Administração; cumula-o de favores pessoais de toda a sorte, e embora se esqueça de transmitir ao Tesouro as ordens necessárias para pagar ao seu protegido os vencimentos próprios dos empregos em que o colocou - o certo é que lhe dispensa maior estima que a qualquer outro vulto de representação intelectual em sua Corte.

O sensível coração de José Bonifácio correspondia a tais demonstrações de apreço por parte de seus soberanos, com outras tantas demonstrações de afeto e comovida gratidão. Isso é humano, isso é de quem tem coração, e coração batendo normalmente. Mas os acárdicos morais que pontificam nas Letras, na História e na Crítica, discordam de nós: entendem que isso é aulicismo, é servilismo, é bajulação. Como quereriam, pois, que José Bonifácio procedesse? Retribuindo mercês com desaforos? Repelindo com insólita e agressiva indignação os preciosos testemunhos do real afeto? Deixando de aceitar os cargos que lhe ofereciam, só para que um século depois os ingratos filhos da mesma terra o não apodassem de bajulador e áulico? Que correspondesse enfim ao bem com o mal, à generosidade com a ingratidão?

Ao desnaturado humano ser que assim pensasse, que entendesse de retribuir com discursos objurgatórios atos de afetuosa consideração, mostrando-se incapaz do sentimento forte da amizade, a esse infeliz calharia aplicar-se com justiça a dura imprecação que na tragédia de Alfieri [97] dirige ao rei Felipe o simpático príncipe dom Carlos:

Tu, di pietá che d'invidia degno,
Santa amistá non conoscesti piú!

E por falar em versos, lembramo-nos de que nem mesmo em sua reputação de poeta foi José Bonifácio poupado pelos seus implacáveis detratores. Pois um homem que não fez a Independência do Brasil, podia lá fazer versos que prestassem? E para prova imediata de que o velho arcádico filintista é um versejador medíocre, imputam-lhe sem a menor cerimônia a autoria de um soneto escrito quarenta anos depois pelo segundo José Bonifácio - belo soneto, aliás; um delicado e artístico lavor que as gerações brasílicas vêm admirando nas palestras dos salões, nas páginas dos livros e nas colunas dos jornais, desde o segundo Império até hoje.

Mas, em vez de provarem quanto se propunham, revelaram, com a prática de tamanho disparate, a cabal incompetência de que se reveste sua crítica por incapaz de distinguir entre dois temperamentos literários tão divergentes, tão dessemelhantes! Na sua faina demolitória, não argumentam - afirmam; pois bem sabem que uma afirmativa pesa na consciência pública mais que o argumento mais forte, não porque o argumento suscite a dúvida ou a desconfiança, conforme pretendia Nietzsche [98], mas tão somente porque obriga a pensar - e a maioria dos homens, até mesmo letrados, preferem sempre eximir-se a tão penosa tarefa.

***

A política da Metrópole e a volta de José Bonifácio ao Brasil

O que é fora de dúvida é que o governo português timbrou em distinguir José Bonifácio com as mais francas demonstrações de público apreço, confiando-lhe a gestão de cargos efetivos e comissionando-o em posições oficiais de relevante responsabilidade; e não é tarefa mui fácil apreender agora as verdadeiras razões dessa conduta.

MELLO MORAES conta-nos que ainda ao tempo de dona Maria Primeira, o ministro da Marinha e Ultramar, Martinho de Mello e Castro, "não consentiu que José Bonifácio voltasse para o Brasil senão depois de acabar os seus estudos em Coimbra e o mandou viajar e estudar à custa do Estado" [99].

Não compartilhamos desse modo de pensar do velho cronista e pesquisador infatigável. Em primeiro lugar, porque é fato bem averiguado que só à incontestável, à decisiva influência do duque de Lafões, que muito lhe queria e verdadeiramente o admirava, é que deveu ele a ventura de poder concluir nos países estrangeiros, por conta do Estado, os estudos que com brilho excepcional fizera nas aulas universitárias de Coimbra. Os interesses eventuais da política e o poder pessoal do soberano participação alguma tiveram na iniciativa dessa deliberação.

Em segundo lugar, se pensarmos que José Bonifácio era então apenas um esperançoso estudante cheio de talento - e nada mais, não dispondo do indispensável prestígio para conduzir seu país natal ao extremo de uma separação, acharemos sem dúvida absurdo que a Metrópole espavorida tremesse de vãos receios diante dele.

Já não pensamos assim em relação à época de seu regresso a Portugal, como um triunfador. Não era mais o ardente jovem que se exulara [*] da Pátria para poder melhor servi-la depois; era o austero varão quase quadragenário que voltava empunhando a palma da vitória, conquistada nas lutas do saber; era o herói consagrado pela Fama; era a personalidade que aos olhos do pensamento ocidental mais condignamente avultava como representante da mentalidade e do nome português naquela quadra.

Compreende-se então que o governo principie a inquietar-se com a presença, com as palavras e com a conduta desse eminente português nascido no Brasil e procure cativá-lo, seduzi-lo, atraí-lo, dispensando-lhe as maiores deferências, nomeando-o para os melhores cargos, elevando-o às mais altas posições, para que ele, absorvido nos seus complexos deveres profissionais e sociais, não cogite num prematuro regresso ao seu amado torrão americano, com o fim de repartir entre os seus compatriotas, abandonados à ignorância, à miséria e à escravidão, um pouco daqueles úteis conhecimentos que na Europa recebera e que servem para reslumbrar aos indivíduos e aos povos os caminhos que os conduzem à razão, ao progresso e à liberdade. E toda a preocupação governamental cinge-se em trazê-lo preso por seus compromissos à Metrópole, sem poder cuidar do seu país de origem e das obrigações para com ele naturalmente contraídas pelo próprio fato de aí ter nascido.

Os acontecimentos europeus forçam o regente e sua Corte a refugiar-se no Brasil. José Bonifácio, que lá ficara e lá se batera com ardor extremo para expulsar do solo pátrio o exército invasor, pede, pouco depois, que lhe seja dada a aposentadoria legal a que fizera jus e a necessária permissão para terminar descansadamente sua longa e trabalhosa carreira na encantadora e pequenina terra em que tivera o berço.

A sua petição, renovada e longamente fundamentada em 1816, não teve despacho. Em princípios de 1818, Thomás António de Villa-Nova Portugal, que a 24 de junho do ano anterior formara ministério, ocupando a Pasta do Reino, aconselha d. João VI, já então rei, que chamasse para ministro ao menos um brasileiro, porque, explicava ele com simplicidade e franqueza, "os brasileiros já estão muito esclarecidos para serem exclusivamente governados pelos portugueses".

O monarca achou bom o alvitre e aceitou-o sem objeção, para daí a pouco repudiá-lo, hesitante e acovardado em face da tremenda oposição que lhe faziam os reinícolas mais intransigentes. O ministro, porém, sustentou com singular teimosia sua idéia e foi preciso concordarem com ele, embora a título precário e de experiência.

Resolveu-se, pois, criar o cargo de Ajudante do Primeiro-Ministro, ao qual, só depois de ter dado provas cabais de suas habilitações e fidelidade, seria confiada uma das pastas do governo.

Thomás António escolheu José Bonifácio, que ainda se achava em Coimbra, regendo sua cadeira na Faculdade de Filosofia, para ocupar o novo cargo, e expediu ordens à regência, em Lisboa, a fim de fazê-lo embarcar sem mais demora com destino ao Rio.

Apesar de não ter o cauteloso ministro declarado qual o motivo por que reclamava a urgente vinda do ilustre brasileiro, a regência entendeu que devia desobedecer à ordem recebida e representou prontamente ao rei, apontando-lhe os graves perigos a que a paz pública ficaria exposta se José Bonifácio viesse para o Brasil.

Só depois de transmitidas novas ordens, severas e terminantes, é que ele partiu de Portugal, desembarcando no Rio de Janeiro em fins de 1819. Aqui chegando, recebeu do primeiro-ministro, de quem era amigo pessoal, o convite que recusou categoricamente, porque o único favor que esperava merecer era que "o deixassem viver e morrer como simples roceiro" na sua vila natal.

As considerações amistosas do ministro e as demonstrações de estima que lhe prodigalizara o rei não o demoveram de seus enérgicos propósitos - e fez-se de vela para Santos [100].

Dos fatos expostos se verifica que era em José Bonifácio que os portugueses viam o homem talhado para chefiar o movimento separatista com êxito. As tentativas anteriores tinham abortado, não por sua discutível prematuridade, mas porque faltou quem lhes imprimisse, além de uma orientação esclarecida e firme, a indispensável unidade de objetivo e de ação.

Pelos seus talentos e pelo seu preparo acima do de todos os seus contemporâneos de aquém e de além mar, era ele, sem dúvida, o herói predestinado a converter em realidade perdurável as aspirações de seus compatriotas. Daí, o empenho com que todos porfiavam em afastá-lo da pátria de seu nascimento, embora não vissem com bons olhos a carreira feliz que ele ia fazendo na Metrópole, cercado do geral respeito e de prestígio real.


NOTAS:

O instituto da escravidão moderna

[95] A propriedade escrava em nosso país não tinha existência legitimada em lei alguma. Ao contrário: todos os dispositivos da legislação civil brasileira a esse respeito, legislação que herdamos da Metrópole - negaram-lhe o direito de existência, desde a Ordenação (Livro I, IV, Tít. 82), desde o alvará de 30 de julho de 1608, até a lei de 6 de junho de 1755, até a de 8 de março de 1758, até finalmente o alvará de 1º de setembro do mesmo ano, como ficou exuberantemente provado na exaustiva discussão havida no Parlamento do Império, por ocasião do projeto Rio Branco, e na qual tomaram parte gigantes de saber jurídico, tais como Rui Barbosa, Perdigão Malheiros e o velho Nabuco de Araújo.

O direito de propriedade - reconheceu-se então - só pode recair sobre coisas, nunca sobre pessoas, como judiciosamente obtemperava monsenhor Pinto de Campos, relator do parecer ao dito projeto, parecer que, aliás, fora escrito pelo conhecido literato português José Feliciano de Castilho, então morador no Rio de Janeiro, e revisto cuidadosamente pelo visconde do Rio Branco.

O abusivo privilégio que se arrogou uma raça de reduzir à escravidão outra raça, mesmo sem que entre elas jamais tivesse havido guerras ditadas por justa razão, não podia constituir perante o Direito, a Religião e a Moral, título legítimo de propriedade (EVARISTO DE MORAES - A Lei do Ventre Livre, na Revista Americana, do Rio, V. VI, nº 4, págs. 39-40 e 59-60. Janeiro de 1917).

[96] Jornal do Commércio, do Rio de Janeiro, nº 122, edição matutina, de 3 de maio de 1900, 2ª página (3ª coluna).

[97] Fillipo - Ato I, cena IV, pág. 9, edição de Florença, 1817.

[98] Le voyageur et son ombre, traduit par Henri Albert, 2me. partie, page 166 (6me. édition).

[99] História das Constituições Políticas do Brasil, pág. 193, Col. 2ª.

[100] MELLO MORAES - História das Constituições - Tomo I, páginas 188 (2ª col.), 189 (1ª col.) e 193 (1ª col. e 2ª).

N.E.:
[*] exulara - vivera fora da pátria, expatriara-se.

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