Reprodução fac-similar das Memórias Econômicas da Academia de Ciências, de
Lisboa
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Seu gênio poético
Sua incansável atividade intelectual não se limitou,
porém, às meras se bem que elevadas cogitações de ordem especulativa, ao culto e à observação da Natureza. Todas as aptidões teóricas, tanto
filosóficas e científicas, como estéticas, germinavam reunidas naquela cabeça portentosamente enciclopédica; era bastante dar-lhes no momento
propício o trato necessário para que se elas desatassem em flores mimosas, da mais peregrina e deleitável espiritualidade.
A vocação artística reponta nele tão espontânea como a tendência natural para os
estudos positivos e é tão viva essa espontaneidade que ele encerra sua gloriosa carreira nas letras, depois dos sessenta anos, exatamente como a
iniciara aos catorze na capital de S. Paulo - rendendo às Musas desvelado preito.
O longo período de mais de quarenta anos consagrados às penosas elucubrações da
ciência, aos arroubos do pensamento filosófico, ao árduo mister universitário, à ingrata faina política, à obra gigântea da independência e
organização de seu país natal - esse longo período de lutas esforçadas não lhe extinguira a chama do Ideal, que lucilara no seu terno coração de
adolescente e que iluminou poeticamente, como um grato luar, a tempestuosa noite de sua martirizada velhice.
Foi em S. Paulo que tentou suas primeiras composições, ligeiros ensaios líricos,
elaborados nos lazeres do curso de propedêutica que seguia nas aulas mantidas pelo bispo d. Manuel da Ressurreição, a quem dedicou, em trabalho de
mais fôlego, um elogio em versos, segundo os estilos da época. A terra santista, não obstante a atual vertigem de seu crescente progresso material,
pouco adequado aos altos surtos da imaginação, predispõe o gênio de seus naturais dotados de talento aos encantos e fascinações da Poesia.
Uma paisagem do litoral santista
A paisagem de seus arredores compensa a excessiva materialidade do ambiente urbano. Os
ondejantes mares que contornam as suas praias de incomparável alvura; os rios que pitorescamente a recortam; as cachoeiras que rolam pelas quebradas
dos morros cobertos de matagais; as gaivotas que lépidas adejam, roçando as asas e atufando os bicos na franja multicor das irisadas espumas; o
soberbo espetáculo do ressurgir da manhã, olhado do pico duma ilhota afastada, emergindo do meio do Oceano, coroada de murmurativas palmeiras e
assaltada de todos os lados pelos tremendos vagalhões que rugem, tentando a escalada das rochas inacessíveis - são aspectos que surpreendem e para
sempre empolgam as almas contemplativas predestinadas a cantar o que há de belo nas manifestações vitais da Natureza.
Se isto é assim ainda hoje, imagine-se o que não seria na infância e na adolescência
de José Bonifácio, há mais de um século, quando os caprichos despóticos da civilização não tinham demudado a primitiva feição de nossas praias,
engalanando-as com a frontaria monumental de seus modernos hotéis, com a tumultuária alacridade de seus cassinos, com o seu luxo escandaloso pautado
por alheias regras, com a heterogênea e sarapintada multidão de forasteiros de toda a parte, que as invadem, impondo-lhes novos costumes e novos
gostos; com os seus carris elétricos, os seus automóveis, as suas lanchas a vapor, os catorze trens diários que as põem em permanente contato com S.
Paulo...
José Bonifácio gostava de percorrer os deliciosos recantos do litoral onde nascera. Às
vezes é para as bandas da ilha de Santo Amaro, talvez para o solitário Guarujá de outrora, que ele se encaminha à aproximação do crepúsculo, a
contemplar de perto a agonia apoteótica do sol, resvalando por detrás das altas serras, cujos cabeços as tintas do arrebol colorem com as inexaustas
opulências de seus matizes e combinações.
E tamanha impressão de tais passeios lhe fica estampada na retina e n'alma que,
transcorridos muitos anos, em plena Paris revolucionária e conflagrada, e em meio de seus assíduos estudos e absorventes preocupações, a melancolia
o assalta, vaga inquietação nostálgica o domina, recorda-se de uma dessas tardes de sua triste vilota natal e dedica-lhe algumas suaves estrofes,
repassadas de tocante inspiração. É o poemeto Uma tarde, composto em 1790 e que reproduzimos no último volume desta obra.
Outras vezes, outro é o painel que deslumbrará sua visão. É a Bertioga, é o seu longo
rio sinuoso, com as raras choupanas de pescadores, aqui e acolá suspensas da ribanceira; são os verdes canaviais arfando levemente ao sopro da
viração matutinal; é, mais adiante, a extensa curva da praia que se desdobra sob o infinito esplendor do céu azul.
Sentado à popa de canoa esguia, ora ao impulso dos remos compassados, ora ao sabor da
aragem sobre a vela, ei-lo que vai sulcando as negras águas salobras, que varam de mar a mar, por entre mangues e brejais atoladiços, de cujas
margens os caranguejos, com a dura crosta imersa no lameirão, espreitam, através de seus pequeninos olhos espipados, se acaso lhes passam ao alcance
das pinças as incautas rãs e os vermes de que se nutrem.
Se a primavera é revinda ou o estio voltou, a mata virgem exala um acre, um penetrante
perfume de folhagens, de pomos e de flores; e dela se levantam, ao pino do sol ou por entre as sombras da noite, as notas e tonalidades de uma
confusa e original orquestra zoofônica, sons discordantes e disparatados, zumbidos de insetos, cantos estrepitosos de cigarras, gritos metálicos de
arapongas, papeios gentilíssimos de pássaros, arrulhos, pios, silvos, uivos, roncos, urros, toda uma fauna alvoroçada que ama, e pula, e corre, e
canta, e vive, agitando e animando aquele agreste cenário desde a chã da várzea às grotas da cordilheira.
É justamente aí, nesse belo pedaço de natureza santista, que ele coloca idealmente a
sepultura de um poeta bucólico, seu amigo, como se vê da Ode que também vai trasladada na seção respectiva do terceiro volume desta obra.
Primeiras manifestações líricas
Foi o amor - o amor pelas mulheres - o ativo sentimento que agitou seu estro na
primeira mocidade, segundo ele mesmo rotamente o confessa nos fragmentos esparsos que colhemos entre os seus preciosos autógrafos doados ao
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pelo atual dr. Martim Francisco, advogado e publicista, residente em Santos.
Mas as mulheres - ainda é ele quem aí o confessa, punido por alguma atroz desilusão em
afeto nascido na quadra da viuvez - "têm sido a perda da minha vida. Amo-as, mas não as estimo".
Mais tarde, foi "a vista e contemplação das grandes
belezas naturais" que o inspiraram. Seu espírito, já adulto, tonificado pelos estudos de gabinete e pela direta
observação do mundo, pouco a pouco se esquece dos passados devaneios amorosos para todo se inflamar no culto e no amor profundo da natureza e da
ciência.
E ainda muito depois, não já na madureza, mas em plena velhice gloriosa, a sua Musa se
arrebata nos mais nobres transportes de paixão cívica, de estremecido amor pela Pátria que ele fundara e cujas desditas chora no seu penoso e
prolongado exílio de Talence, ao lado de alguns amigos fiéis e de um punhado de livros escolhidos.
São dessa época, e desse gênero, as suas melhores e mais aplaudidas composições
poéticas. Aliás, poucos anos antes do seu regresso da Metrópole, já se inspirara com êxito completo em assuntos respeitantes à ordem social, como se
vê de sua Ode a D. João VI, na qual, mais uma vez preocupado com a dura sorte dos índios e a terrível condição dos escravos, invoca em favor
deles a benevolência majestática, os sentimentos magnânimos do rei:
Ilumina teus povos: dá socorro
Pronto e seguro ao índio tosco, ao negro,
Ao pobre desvalido; então riqueza
Teus cofres encherá...
Na Ode aos Gregos, na Ode aos Baianos e no Poeta Desterrado, o
culto da liberdade e o amor da Pátria palpitam e exalçam-se na radiação das imagens, na nitente precisão vocabular, na perfeita cadência dos versos
magníficos.
Ali, as palavras esclarecem as idéias e estas, reagindo, tornam por sua vez mais
expressivas as palavras; e o que constitui exatamente uma obra-prima é essa reciprocidade contínua de relações entre a concepção de um trabalho e a
sua respectiva execução. Quando estamos senhores do assunto, os vocábulos afluem espontaneamente para exprimi-lo bem, segundo já observava com
sapiência antiga o velho Horácio na sua Arte Poética, v. 311:
Verbaque provisam rem non invia sequentur.
Na mesma ocasião, cultivou ele a poesia satírica a que se entregara com
sucesso nos tempos escolarescos de Coimbra, onde, em colaboração com seu compatriota e condiscípulo Francisco de Mello Franco, que haveria de
celebrizar-se mais tarde pelos seus infortúnios, escreveu O Reino da Estupidez [68],
poema heroi-cômico, que circulou em cópias manuscritas ao princípio e de que depois se imprimiram quatro edições rapidamente esgotadas.
Esta peça, cuja autoria se conservou rigorosamente anônima durante muitos
anos e que era sobretudo tremendo ataque contra o reitor e os lentes da universidade, parece que é devida principalmente ao estro de Mello Franco,
tendo sido pequena ou quase nenhuma a participação de José Bonifácio nela. Há mesmo quem a atribua exclusivamente ao primeiro, atribuindo ao segundo
unicamente o conhecimento em que se achava do nome do verdadeiro autor [69].
O certo é, porém, que no seu exílio de Talence, perto de Bordéus, compôs
um poema em oito cantos, em versos soltos, que eram os que preferia, tendo por assunto a dissolução da Assembléia Constituinte; e várias poesias de
sátira política sobre os acontecimentos que no triste cenário de sua pátria se desenrolavam [70].
Infelizmente, todos esses originais se extraviaram para sempre das mãos de
Vasconcellos de Drummond, seu depositário. Por algumas estrofes que, já na extrema velhice e atacado de cegueira incurável, reconstituiu
carinhosamente o velho amigo do Patriarca, julgamos que não podem, quando à forma em que foram escritas nem quanto aos sentimentos que as ditaram,
equiparar-se às suas Odes, cujo vigor de expressão e potencialidade artística rivalizam com o que de melhor se produziu no idioma português,
naqueles tempos.
Estro satírico
Mesmo assim, o seu gênio poético evidencia-se na graça das descrições e na destreza
com que vibra os golpes da sátira contra os seus indignos adversários. Uma dessas poesias é um sonho em que lhe parece estar assistindo a uma festa
que os monges beneditinos davam, no Rio de Janeiro, em honra do Sultão.
Alguns versos aí estão quebrados, o que se deve imputar ao enfraquecimento da memória
e dos órgãos auditivos em Vasconcellos Drummond, que os ditava de cor, sem poder depois revê-los diretamente por falta de vista.
Ousamos corrigir o que indubitavelmente se acha errado, sem que a nossa coreção, como
se verá, toque sequer de leve na originalidade da concepção. Eis com que tintas expressivas descreve José Bonifácio o jantar dos frades:
Tinham postas as mesas, e sentados
Vi cônegos e frades,
Irmãos e camaradas
[71],
Que se vednem por fitas e chocalhos,
Devotos esperarem a pitança.
Agigantados mulatões robustos,
Cabeça erguida, ombros arqueados,
Fumantes tabuleiros conduziam
Atulhados de postas e tassalhos
Do fresco lombo, de perus e patos,
E dos quitutes que as Marfisas mandam.
O Dom Abade um cântico entoava
Em som nasal desconcertado e alto,
Que na vida fradesca e nos palácios
Comilão que mais berra, mais digere.
E noutra estrofe, aponta-nos o Despotismo, cercado de militares e frades cortejando
orgulhosamene a Domitilla no mesmo dia em que atentava contra a liberdade do nascente regime, dissolvendo a Assembléia Geral dos Representantes da
Nação:
No mesmo dia em que se dissolvera,
Com autômatos azuis postos em fila,
A Assembléia Geral, inepta e fraca,
Eu vi sobre um andor [72]
que fatigava
Becas e fardas e os outiços gordos
De cônegos e frades,
O fero Despotismo [73],
Carregado de fachas e veneras
E das ventas fumando orgulho e sanha
Para fazer alarte às Domitillas
E as Fendingas réles... [74]
É pena que tão preciosos manuscritos se tivessem perdido para sempre. Através da
dicacidade de seus poemas, apesar mesmo da fatal injustiça de algumas de suas apreciações relativas aos homens públicos que combateu e que por sua
vez o não pouparam, teríamos uma pintura exata dos costumes da Corte brasileira e do caráter de seus vultos principais, embora a própria índole
satírica das obras devesse forçosamente exagerar pelo ridículo a exatidão dessa pintura, cujas tintas a imparcialidade do critério histórico se
encarregaria de atenuar devidamente.
De Luís José de Carvalho e Mello [75],
que foi ministro dos Estrangeiros do Gabinete reorganizado a 14 de novembro de 1823 após a dissolução da Assembléia, descreve ele em versos
candentes a cômica postura bajulatória, na cerimônia do beija-mão imperial, que foi parte importante da festividade oferecida pelos monges
beneditinos ao Sultão.
Mas não transcreveremos esses versos, já porque nada acrescentam às glórias de seu
autor, já porque rivalizam, quanto à liberdade pornográficas das expressões, com as estrofes de José Agostinho de Macedo, em Os Burros;
justificando assim o juízo que formulamos à página 56 deste volume, quanto à contradição observada entre a educação sentimental do povo português e
a linguagem grosseira em que os mais ilustres cidadãos daqueles tempos se exprimiam, não só no recesso das palestras íntimas, como nas públicas
manifestações do pensamento.
José Bonifácio, apesar de sua eminência a todos os respeitos, não pôde escapar às
influências do meio. Quem quiser conhecer os versos que aqui suprimimos, recorra ao volume XIII dos Annaes da Bibliotheca Nacional.
Ao velho e infatigável José da Silva Lisboa, futuro visconde de Cairu, orador de pulso
e publicista de mérito, versado teórica e praticamente em numerosas línguas estrangeiras, quer européias como asiáticas, tendo ocupado, logo depois
de sua formatura em Coimbra, e por nomeação do governo, a cadeira de grego criada então na respectiva universidade, chama, com agudo espírito mas
com igual injustiça,
Fração de gente, charlatão idoso.
Ao ilustre Manuel Jacintho Nogueira da Gama, depois marquês de Baependi, que fora seu
ajudante no curso de docimásia criado pelo Governo Português, em 1801, na Casa da Moeda de Lisboa, e que agora, como substituto de Martim Francisco
na pasta da Fazenda, entrou para o gabinete de 17 de julho de 1823, formado logo após a demissão do gabinete que José Bonifácio presidira - a esse
não poupou nem mesmo os defeitos físicos com que o nascimento ou as enfermidades o tinham assinalado:
Em cujo ético rosto as feições cavas...
Vê-se bem o quanto as injustiças dos contemporâneos, que menoscabavam de seu valor e
deprimiram seus imorredouros serviços à causa da independência e da constituição política da Pátria, tinham agravado profundamente o sensível
pundonor de sua grande alma, a ponto de sopitarem nela os generosos impulsos que sempre a enobrecem na vida privada como na carreira pública.
Suas opiniões sobre a Poesia
Para ser poeta - afirmava ele nos seus pensamentos a que atrás nos referimos - é
preciso ser namorado ou infeliz. Tal é, na verdade, a condição fundamental da verdadeira poesia, que não pode existir duradouramente onde não haja
sentimento verdadeiro.
Assim já pensava Quintiliano, quando, na decadência da latinidade, e a
propósito da oratória, arte que era tão grata aos romanos de seu tempo, dizia que é do coração que toda a eloqüência provém; conceito que o
moralista francês Vauvenargues generalizou e ampliou séculos depois, preceituando que os grandes pensamentos nascem do coração; e que Barthez
[76], com o seu largo e penetrante senso crítico e estético, adotou e justificou, estabelecendo que só
pode ser artista de fato quem, nas linhas principais de seu caráter, trouxer estampadas as inspirações austeras da virtude.
Embora as contingências da vida, as vicissitudes sociais inevitáveis, quaisquer
imperiosas circunstâncias adventícias possam desviá-lo acidentalmente das regras inflexíveis de uma conduta moral uniformemente rigorosa e severa, o
indispensável é que o conjunto de seus atributos afetivos, intelectuais e práticos se exerça dentro daqueles rígidos princípios, que são os únicos
realmente capazes de imprimir à obra de arte um nobre cunho de sinceridade e de
verdade.
Sua potencialidade estética
José Bonifácio preencheu cabal e honestamente essas condições essenciais. Na sua
ardorosa juventude, foi um enamorado que à dama de seus enlevos dedicou as mais enternecidas vibrações de seu estro. É a fase crítica da afetividade
pessoal.
As suas poesias, embora de caráter fortuito e passageiro como as fugidiças paixões que
as inspiraram, servem para patentear com exuberante vigor a excelência de seus dotes e predicados artísticos, porque foram também, como as da
madureza e as da velhice, geradas nos sentimentos sinceros que lhe empolgaram o coração na ridente quadra de sua existência de rapaz.
Soneto que lhe é erroneamente atribuído. Soneto
erradamente atribuído a Feijó [NOTA SUPLEMENTAR]
Daí, a vida, a emoção que se lhes notam e que, como bem observa um
conhecido criticista brasileiro, "não obstante o ressaibo arcádico de que se ressentem, não se encontram em nenhum dos
poetas seus patrícios e contemporâneos e que fazem dele acaso o único que tem personalidade e que, por isso, possamos ouvir com agrado ainda hoje"
[77].
Depois, ao transpor o limiar da idade provecta, malgrado sua universal reputação de
sábio e sua glória eterna de agente principal e direto da Independência do Brasil, tornaram-no infeliz, porque a inveja, a rivalidade, a ingratidão
e as ambições monstruosas conjuraram-se contra o seu valor, contra os seus eminentíssimos serviços, prestados, com notável desprendimento e notória
abnegação, ao País e à Humanidade; contra a sua indiscutível e irrefutável integridade moral; e perseguiram-no encarniçadamente até expulsarem-no da
Pátria que a sua indômita energia fundara, organizara e intrepidamente defendera.
É então que a grave Musa das cívicas meditações, embora de vez em quando floreje em
recordações episódicas de amores passados - vem substituir a lira juvenil dos anos púberes. É a fase orgânica da afetividade social.
Em qualquer dos casos, porém, amando sua Dama ou servindo sua Pátria, é sempre um
sincero e espontâneo estímulo partido do coração que o propele a escrever seus versos eloqüentes. Essa é a razão primacial, se não exclusiva, por
que ainda hoje - quando novas correntes literárias, novas escolas, novos processos, novos ritmos, novas teses dominam com impudente desvario as
manifestações da estética moderna - as suas produções, tanto as da fase inicial como as do período terminal de sua carreira, emocionam e agradam à
generalidade dos espíritos cultos e elegantes.
No próprio meio atual, quando os artistas assumem corajosamente as mais cínicas atitudes
revolucionárias, em defesa da forma contra o sentimento, esse é ainda o ponto de vista que superiormente prevalece entre os mais acatados
escritores, como, por exemplo, Anatole France, cujos numerosos trabalhos correm de mão em mão, sob ininterruptos aplausos, provocando a
incondicional admiração de toda a gente. Para ele, se bem que a beleza dependa da geometria, é só pelo sentimento que podemos obter seus delicados
contornos [78].
Em contraposição, um dos chefes de uma das mais recentes escolas francesas
de renovamento social, prega, na sua obra - La lueur dans l'abîme, a necessidade de o homem agir somente pelos ditames da razão, e não pelos
impulsos do sentimento, para vencer na luta que trava contra a organização capitalista do mundo. O sentimento deve subordinar-se à idéia e não esta
àquele - é o princípio básico em que a nova doutrina se alicerça [79].
Mas se o homem não sentir primeiramente a necessidade de subordinar o
sentimento à inteligência, como poderá obrar com sucesso em tal sentido? E desde que para adotar e praticar esse princípio capital da doutrina,
precisa primeiro sentir sua conveniência a todos os respeitos, o homem inteligente percebe logo que tal doutrina está em evidente desacordo
com as teorias que propaga.
No campo da abstração filosófica - o pensamento sobrepujando o sentimento na esfera da
divagação literária - a expressão verbal sobrepondo-se ao conjunto das emoções e das idéias: eis a dupla tendência viciosa que se observa na
agitação intelectual da vida contemporânea.
José Bonifácio, ao poder da emotividade e da idealização, acrescentava, realçando-as,
colorindo-as, vitalizando-as, o relevo exterior das linhas caprichosas, a graça, o esmero, o cuidado da frase bem polida. Possuía, pois, a
integralidade dos predicados artísticos.
É certo que a sua poesia, como judiciosamente nota o crítico brasileiro que há pouco
citamos, ressente-se do sabor arcádico em voga, sob a influência dos gostos literários então reinantes em Portugal. Todavia, semelhante influência
já se revela nele assaz atenuada, porque a Arcádia Lusitana estrebuchava nos seus últimos arquejos.
Se há na obra poética do Patriarca uma influência alheia decisiva, é antes a de um
indivíduo que a de uma escola - é a influência de Filinto Elysio, e essa mesma limitada à forma. As letras portuguesas agonizavam com a própria
Nação, que parecia prestes a morrer, e os seus vultos mais notáveis procuravam, dentro do círculo de sua atividade e condição, achar os meios
capazes de determinar uma reação vital no organismo da Pátria, cuja aliança política, a Inglaterra e a França disputavam à força, assestando contra
ela os canhões de seus navios e os sabres de seus soldados.
Já vimos, na parte introdutória deste trabalho, como o padre José Agostinho de Macedo
pretendia operar milagrosamente a revivificação do pensamento e dos costumes portugueses, assim procedendo mais por amor de sua personalidade e de
sua glória do que realmente pelo interesse, pelo nome e pelo futuro social de seu país.
Para conseguir a realização de seu delirante projeto, começou por destruir tudo quanto
existia no passado como no presente - desde Camões, que marca o apogeu da grandeza lusitana, até Bocage, que lhe assinala a decadência final.
Em meio do acérrimo combate que lavrava aceso entre Bocage e o padre José Agostinho,
alevantara-se Francisco Manuel do Nascimento - Filinto Elysio de seu nome arcádico, - vulto que chegou a se ver cercado de simpática auréola
popular, e que se dispunha também quimericamente a remoçar o exaurido vigor das letras pátrias.
Nasceu então a chamada escola filintista, que preconizava a urgente necessidade da
remodelação da língua vernácula, esmoitando-a de neologismos inúteis e espúrios galicismos, pelo manuseio dos clássicos quinhentistas, ingrata e
injustamente olvidados; e da completa e audaz supressão da rima, cujo forçado e habitual emprego não só oprime e tiraniza a liberdade das idéias,
amarradas à ferropéia das normas fixas, mas também, graças aos encantos e às belezas da sua própria sonoridade, contribui para dar um aparente valor
a produções efetivamente medíocres, por secas de sentimentos e vazias de idéias e imaginação.
O velho representante luso da última fase da evolução arcádica se enganava contudo,
quando supunha que da supressão proposta resultasse a almejada regeneração da Poesia. É claro que tal supressão exige que concorram simultaneamente
no poeta qualidades fora do comum - tornando a arte apenas acessível às vocações privilegiadas, o que seria realmente um grande bem.
Sabe-se, de fato, o quanto é difícil a composição do verso solto, o esforço que é
preciso despender para neutralizar sua monotonia ou atenuar sua insipidez, para torná-lo belo, para fazê-lo atraente, apetecido e estimado,
porquanto a ausência da rima imperiosamente reclama uma larga compensação representada pelas variações do ritmo, pela pompa do vocabulário, pela
correta, vernácula construção da frase, sem o que de nada ou quase nada valeria, em produções daquele naipe, a espontaneidade das idéias, a
fulguração das imagens e a ternura das paixões.
Ora, essas tremendas dificuldades, que o artista cônscio de suas responsabilidades tem
que subjugar e vencer, obrigam-no fatalmente a prestar mais demorada atenção aos artifícios da forma do que à alma da composição, fazendo-o esbarrar
no mesmo escolho que o reformador quis evitar-lhe.i
De fato, no verso rimado, a influência da rima disfarça às vezes a carência de
objetivo; mas no verso branco ou solto, que Filinto propôs como o supremo ideal da perfeição, requerem-se qualidades tais de execução que os
cuidados da forma absorveriam quase totalmente a atividade intelectual do poeta, sujeitando-o a circunscrever suas concepções aos prévios limites
impostos pelas exigências da técnica.
A escolha racional das expressões brilhantes e apropriadas ao assunto, a variabilidade
artística da cadência métrica, o emprego judicioso das vogais, o efeito a obter das consonâncias - são condições que prendem o esforço do compositor
mais à execução do que à concepção da obra.
Se a rima dissimula com suas belas roupagens a vacuidade sonora das idéias, a sua
supressão, acarretando dificuldades maiores para a confecção do verso, embaraça o livre surto do pensamento poético.
Chegaríamos pois, inquestionavelmente, ao mesmo resultado anterior, com a diferença,
porém, de que a rima é um elemento que concorre poderosamente para realçar, pela repetição harmônica dos sons, os conceitos e opiniões do discurso e
as próprias palavras que o revestem.
Seria, por conseguinte, vã qualquer tentativa de reformar os moldes poéticos pelo
excessivo apego às exterioridades do verso. Com rima ou sem ela, a obra de arte, para atingir a uma equilibrada perfeição relativa, deve enlaçar o
primor da feitura à magnificência da imaginação e à alteza máxima do pensamento.
Inúteis e inanes se tornavam tamanhos esforços para dar a cada aberração particular
uma solução que teria se ser fatalmente parcial. A crise não era portuguesa - era ocidental, e não se manifestava por fenômenos isolados, surgindo
na ordem econômica, ou política, ou moral, ou filosófica, ou puramente literária, mas abrangia complexamente a totalidade das funções do organismo
social, gravemente achacado de perturbações profundas que se revestiam de caráter crônico.
Em uma palavra - a crise era de natureza eminentemente cerebral, e portanto, geral nos
seus efeitos e manifestações, só comportando, pois, uma solução de ordem geral, que ainda não foi encontrada, não obstante os generosos esforços em
que se vêm empenhando há séculos os mais ilustres pensadores que a Humanidade tem produzido a partir da dissolução política do regime católico.
Aliás, convém não nos esquecermos de que a Poesia, por ser a mais geral das artes,
servindo de base às outras, é justamente por isso a menos técnica de todas elas. Tendo como instrumento de comunicação a linguagem usual, é ela
facilmente acessível a todos os entendimentos e pode abordar desde os mais simples temas idílicos até as mais altas cogitações da especulação
abstrata.
Pode o poeta pôr em verso, não somente os seus mais íntimos sentimentos pessoais e as
suas preocupações de natureza cívica e social, como também os mais áridos problemas científicos - o que não acontece às demais artes, cujos meios de
manifestação têm menos amplitude, são mais restritos, embora impressionem mais vivamente certos indivíduos, como se observa, por exemplo, em relação
à música.
Daí a universalidade da Poesia e, por conseguinte, a sua popularidade. E como, pelos
variados recursos de que dispõe, é mais apta que as outras para idealizar os fenômenos da Natureza e da Vida, não exige como elas os mesmos cuidados
de forma, o que contribui ainda mais para aumentar o seu crédito e estima junto do público.
Os autores que se extenuam em polir e repolir com extremos requintes os seus trabalhos
poéticos não serão nunca verdadeiramente populares, porque nada mais terão feito que complicar inutilmente uma arte que é naturalmente simples. As
suas obras só conseguirão perpetuar-se nas páginas das seletas escolares, como exemplos didáticos de correção de linguagem e de excelência e
limpidez de estilo.
As artes, igualmente que as ciências, decrescem em generalidade à medida que crescem
em complexidade; e a poesia é a mais genérica e a mais simples das artes. É a mais genérica porque é a única que se estende à totalidade de nossa
existência afetiva, mental e prática; e é a mais simples porque joga com os multiplicados elementos da linguagem comum que todos entendem sem
esforço e sem necessidade alguma de conhecimentos técnicos previamente adquiridos.
Por essa mesma razão, é a arquitetura a mais restrita e complicada das artes. É a mais
restrita, porque, dispondo de meios de comunicação escassos e de quase nenhuma parcela de faculdade idealizadora, limita-se quase exclusivamente à
pura representação da beleza material; e é a mais complicada porque, para conseguir efeitos artísticos, tem que operar prodígios de forma, como nos
edifícios públicos monumentais, e socorrer-se do auxílio das artes que a antecedem, como, por exemplo, a escultura e a pintura, o que sobreposse
aumenta a sua complicação por exigir conhecimentos especiais dessas artes.
Assim, pois, a preocupação de trabalhar uma estrofe como se trabalha uma peça de
estatuária, é um sintoma característico de decadência do meio que comporta semelhante aberração, porque isso equivale a executar uma obra de arte
mais nobre com o emprego e o uso de materiais e instrumentos apropriados e destinados à execução de uma obra de arte mais inferior.
Só se compreende e admite uma preocupação de tal ordem quando se trata das artes
colocadas racionavelmente nos últimos degraus da hierarquia estética, tais como a escultura e a arquitetura, às quais faltam os motivos de
emotividade e idealidade que abundam nas outras à proporção que sobem a respectiva escala.
O resultado é que enquanto o poeta se transforma em ourives e faz da estrofe uma pedra
preciosa e rara onde vai gravar delicadas filigranas, o seu talento, absorvido, enlevado nesse trabalho de laboriosa aplicação, deixa de
exercitar-se na observação direta do mundo, do homem e da sociedade, pede aos poucos a faculdade de imitar a natureza e de idealizar por meio de
imagens precisas e vigorosas aquilo que observou e imitou, deixa de sentir e de amar a realidade, que é a emoção, que é o sentimento, que é a vida
com todos os seus sofrimentos e todos os seus impulsos.
Na poesia, a expressão acha-se imperatoriamente subordinada aos outros
fatores que entram na sua elaboração definitiva [80]: mais vai-se tornando
cada vez mais preponderante, segundo as artes vão também descendo na ordem lógica de sua classificação sistemática.
José Bonifácio, nas suas numerosas produções de maior vulto, que são exatamente
as do último quartel de sua grande vida, seguiu escrupulosamente os preceitos fundamentais da chamada escola filintista, que, afinal, de escola só
logrou o nome, porque não fez prosélitos.
Nos seus Fragmentos [81],
nos quais se cristaliza a sua alma de pensador, nota ele, com rigorosa justeza, o quanto são imensas as dificuldades inerentes à elaboração da boa
poesia, dificuldades que, "se dão merecimento ao artífice eminente, não podem desculpar a
ousadia da mediocridade".
Tais dificuldades, relativas sobretudo à forma, não excluem de modo algum a
necessidade das "idéias e imagens novas e atrevidas, da frase própria e escolhida, a arte de dar mais nobreza ou mais
graça ao velho e trivial".
Já na magnífica Dedicatória aos Brasileiros, posta em 1825 à
frente de seu volume de versos impressos em Bordéus [82], escrevera ele: "...fui
assaz parco em rimas; porque nossa língua, bem como a espanhola e a italiana, não precisa, absolutamente falando, do zum-zum das
consoantes para fixar a atenção e deleitar o ouvido. Quanto à monotônica regularidade das Estrofes ou Estâncias, que seguem os italianos e
franceses, dela às vezes me apartei, usando da mesma soltura e liberdade que depois vi abraçadas por um Scott e um Byron, cisne da Inglaterra".
É, como se está vendo, todo o programa elaborado por Filinto Elysio, que se propunha a
eliminar do cenáculo das Musas, como organizações inferiores, os talentos dotados de meras aptidões retóricas, afeitas a suprir pela pomposidade das
expressões brilhantes e sonoras a insuficiência do espírito criador. E, como para tornar mais patente sua total adesão aos princípios propostos,
José Bonifácio batizou-se literariamente com o nome arcádico de Américo Elysio, em homenagem, por certo, ao fundador da nova escola.
Sua paixão pela Música e suas opiniões a respeito
O curioso, porém, é que ele não mantém relativamente à arte musical, de
que "era apaixonadíssimo"
[83], as mesmas opiniões que esposa e defende em relação à Poesia. os conceitos filintistas são postos
inteiramente de lado. Na Música exige ele que a melodia se contraponha vitoriosamente à harmonia, isto é, que a expressão fique inteiramente
subordinada ao sentimento.
Na Poesia, como acabamos de ver, dá ele a forma uma preponderante função no conjunto
da obra, embora não haja exclusão e sim concurso dos demais fatores que a constituem. Contudo, a Música, por dispor de menos capacidade conceptiva,
se quiser alcançar a maior soma possível de efeitos estéticos, impressionando agradavelmente os corações delicados, tem que jogar, ao que pensamos,
com recursos técnicos mais difíceis que os que a verdadeira Poesia reclama.
Ouçamos, porém, textualmente, o que disse José Bonifácio a esse respeito, apreciando,
em sessão pública da Academia Real de Ciências de Lisboa, a importância e o mérito de uma obrinha de Rodrigo Ferreira da Costa sobre os
Principios de Música e Contraponto, publicada entre os anos de 1817 e 1818.
Depois de uma erudita dissertação largamente empreendida através dos mais antigos
povos que cultivaram a arte dos sons, e lhe acrescentaram sucessivos aperfeiçoamentos; depois de salientar o quanto ela contribui para abrandar os
costumes de cada indivíduo e de cada nação, tornando a vida mais leve e suportável a todos, entra no estudo das suas condições e tendências,
concluindo por encontrá-la em situação mesmo inferior à do passado grego.
"É bem triste, porém, ver que
comumente a música ... esteja hoje em dia .. por caprichos vaidosos dos grandes compositores, ou por nímio amor de novidades, transformada em
afetada dona, carregada dos arrebique e ouropéis de harmonias extravagantes e forçadas. Sei que o nosso sistema harmônico difere dos motos e ritmos
dos gregos, mas não julgo impossível que se possam aqueles transportar de algum modo para a Música moderna, principalmente se os grandes
compositores estudarem e analisarem melhor a natureza da antiga Música, cujos vestígios ainda se conservam nos hinos e trenos
[*] do canto Ambrosiano e Gregoriano. Mas quando aparecerá
na Europa moderna um novo Gionelli, um novo Gluck que, instruídos a fundo no sistema dos gregos, e estudando ao mesmo tempo o dos povos cultos da
Ásia, quais os indus, persianos, árabes e chins, se atreva a tentar uma nova revolução musical, preferindo a melodia imitativa e natural às ruidosas
sutilezas e caprichos da nossa atual harmonia, que pelo menos me parece assaz estéril em expressão e afeto?"
Dessas notáveis palavras se verifica que as suas opiniões concernentes à arte poética
não são aplicáveis à arte musical, o que não deixa de surpreender em espírito dotado de tão grande poder de lógica e tão ponderado.
A Música, é sempre conveniente repetir mais uma vez, necessita de maiores elementos
técnicos do que a Poesia, justamente por ser mais pobre do que esta em elementos emotivos e idealísticos. Os cuidados especiais da forma lhe são
indispensáveis, portanto, para mais nitidamente realçarem no conjunto da obra os sentimentos e as idéias capitais que ela procura representar -
cuidados esses que não são imprescindíveis na Poesia porque a esta, para gerar agradáveis impressões, basta que a emoção rompa espontânea e a
inspiração brote límpida, cantante e fresca de cada verso, de cada imagem, ou de cada estrofe.
A harmonia dá relevo, dá vigor, dá expressão aos afetos e
pensamentos que a simples melodia não pode enunciar com perfeição, por escassez de meios adequados. "Que é a melodia,
sem a harmonia completa? Uma limitada coleção de simples canções"
[84]. O emprego habitual e constante dos sons sucessivos, próprios dela, torna a música assaz cansativa
e monótona; ao passo que a simultaneidade dos tons consoantes ou dissonantes, que caracteriza a harmonia, concorre para que sobressaiam devidamente
na obra os seus valores melódicos.
É indubitável que os gregos, cujos modos e ritmos tecnológicos queria José
Bonifácio ver transportados para a música moderna, tiveram seu tal ou qual conhecimento da harmonia até certo grau. Eles, porém, só empregavam os
acordes consonantes da oitava, da quinta e da quarta, desprezando os acordes dissonantes que são a própria alma da harmonia
[85].
Não nos parece, pois, que esse apelo anacrônico à antiguidade
helênica pudesse produzir na prática resultados aceitáveis, e a prova é que não foi atendido por nenhum dos gênios musicais que floresceram ao tempo
de José Bonifácio ou que surgiram posteriormente a ele. A arte insigne de Mozart, "o mais maravilhoso de todos os
reformadores, aquele que não tem rival para os que amam a melodia tanto como para os que preferem a harmonia complicada"
[86] - não teria então atuado no espírito do eminente secretário perpétuo da Academia de Lisboa tão
fortemente como atuou na generalidade dos maiores espíritos de sua geração?
O que pensamos é que o seu veemente desabafo acadêmico foi antes de tudo um grito de
revolta contra o abuso dos compositores no manejo da harmonia, contra o pernicioso exagero a que levaram o seu cultivo, com acintoso descaso dos
outros elementos constituintes do trabalho de arte. Estava-se em plena Revolução, tinha José Bonifácio visto e observado de perto os excessos a que
o entusiasmo renovador arrastara o povo parisiense, a derrocada total de todos os pensamentos e instituições do Passado. Era natural que visse
refletido nesse movimento de renovação musical, baseada na preponderância da harmonia, os mesmos condenáveis excessos que tinham impopularizado a
Revolução a outros respeitos.
De fato, a reação intentada contra a influência tradicional da escola italiana que,
por seus mais legítimos representantes, excedia-se no emprego da melodia, com desprezo quase completo dos recursos da harmonia - conduzira notáveis
compositores modernos ao exagero contrário.
Diante disso, José Bonifácio, não entrevendo talvez que ambos os elementos poderiam
coexistir equilibrados e estáveis na obra musical, com excelente proveito dela, voltou-se aflito para os mortos processos rudimentares da antiga
música grega, em cuja composição a simples melodia primava, porque o estado da cultura helênica ainda lhe não permitia perceber a importância
decisiva dos outros fatores - então apenas imperfeitamente esboçados -, na elaboração artística do conjunto.
O que para nós continua sendo obscuro, e de explicação difícil, é que ele isentasse a
Música dos requisitos essenciais da técnica, que lhe são indispensáveis, e os exigisse da Poesia, que deles pode prescindir até mesmo inteiramente,
como se vê nas trovas de origem popular e nos poetas que contam apenas com a espontaneidade da inspiração, estimulada pelos instintos simpáticos, e
nada mais - e que gozam, quem sabe se por isso mesmo, de uma celebridade verdadeiramente imorredoura, contra a qual de nada vale o camartelo dos
juízos pósteros irreverentes.
E nem se nos objete que o fato de ele recusar, por sua origem revolucionária, os
exorbitantes progressos da harmonia na técnica musical, contradiz flagrantemente a sua atitude, como propugnador e apologista do sistema métrico
decimal, proveniente também da Revolução, porquanto, no primeiro caso, tratava-se de uma simples questão de gosto estético, subordinado a preceitos
inovatórios, que ele reputava prejudiciais à beleza natural da arte, ao passo que o segundo era uma útil resultante prática do desenvolvimento
científico para o qual os seus estudos e as suas aplicações tinham contribuído eficaz e diretamente.
O velho Reino resistia, por um justificável sentimento de orgulho nacional, a essa
reforma que vinha da França republicana, justamente na época em que os seus exércitos tinham espezinhado tão duramente a soberania lusitana; e
porque a Inglaterra, a cuja aliança política estava forçosamente submetido, repelira a inovação de modo peremptório e definitivo, Portugal mais se
obstinava em não aceitá-la, para não incorrer, ainda uma vez, no desagrado de sua onipotente aliada.
Entretanto, José Bonifácio, com a serenidade de quem cumpre o seu dever, em ocasião
memorável, ergue a sua autorizada voz, na sessão pública da Academia de Ciências de Lisboa, de 24 de junho de 1813, para defender o sistema que se
propunha à universalidade das nações civilizadas, como o que melhor convinha aos interesses de cada uma delas, e, por conseguinte, de todas.
Na Metrópole portuguesa e nas suas diferentes colônias, as medidas,
principalmente de capacidade, variavam muito de província para província, o que tornava de grande urgência a uniformização visada pelo sistema que o
gênio francês elaborara em meio de suas lutas formidáveis.
NOTAS:
[68] J. C. FERNANDES
PINHEIRO - Curso elementar de literatura nacional, pág. 383.
[69]/[70]
VASCONCELLOS DE DRUMMOND (António de Menezes) Annotações á sua biographia publicada em 1836 na Biographie Universelle et Portative des
Contemporains (Rio de Janeiro, 1890, págs. 112 e seguintes).
[71] No original do autor
das Annotações, existentes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e estampado no V. XIII dos respectivos Annaes, em vez desses dois
versos, lê-se o seguinte, completamente errado:
Vi cônegos e frades, irmãos e camaradas
Resolvemos dividi-lo em dois versos de seis sílabas cada um, alternando-os com os
decassílabos da composição, de modo a não perder elemento algum e a ganhar o ritmo que lhe faltava. O pensamento do autor não foi alterado em coisa
alguma - como se pode verificar do cotejo que fazemos.
[72] O original reza
andar, mas deve ser andor, onde ia o Despotismo, fatigando os áulicos que o conduziam. Ao contrário o pensamento resta obscuro.
[73] Estes dois versos
formam no original um só, evidentemente quebrado:
De cônegos e frades, o Despotismo
Dividimo-lo em dois, antepondo ao vocábulo despotismo o adjetivo fero para lhe
dar o necessário ritmo.
[74] Esta estrofe é
alusiva à passeata que o Imperador e respectivos sequazes, com os chapéus ornados de ramos de cafeeiro, fizeram acintosamente pelas ruas da Capital,
após a dissolução da Constituinte.
[75] Mais tarde visconde
da Cachoeira.
[76] Théorie du beau
dans la nature et les arts (5.me discours, section III, deuxiéme édition, pages 110-111).
[77] JOSÉ VERISSIMO -
História da Literatura Brasileira, pág. 176. Na sua bela conferência do Colégio Batista do Rio de Janeiro, à qual já nos havemos referido por
mais de uma vez, o sr. DALTRO SANTOS atribui inadvertidamente ao Patriarca o soneto que por este esplêndido verso principia:
Se te procuro, fujo de avistar-te,
e cuja autoria é de José Bonifácio, o moço. Foi o nosso ilustre compatriota levado a
essa inadvertência por um erro cometido há anos pelo sr. LAUDELINO FREIRE, na sua coletânea de sonetos brasileiros, que já tem tido numerosas
edições, em grande formato e em formato menor, sem que tal erro fosse retificado até hoje, o que é digno de lástima, principalmente se atendermos a
que a edição reduzida se destina ao uso de nossas escolas.
O sr. ASSIS CINTRA, em obra mais recente, e na qual pretende estudar e criticar em
todas as suas complexas modalidades a figura de José Bonifácio, também lhe dá a paternidade do soneto cuja autoria pertence ao neto - prova de que
este estudo não foi feito com o preciso critério e o necessário cuidado.
O mesmo aconteceu, há anos, a um soneto que corre mundo no Brasil como da lavra do
padre DIOGO ANTÓNIO FEIJÓ: é o Refugium pescatorum, do laureado poeta português ANTÓNIO FEIJÓ, que residiu largos anos em nosso país como
cônsul de sua nação no Rio Grande do Sul, e que é o festejado autor de outro soneto célebre, que todos conhecem:
Pálida e loira, muito loira e fria.
Quando se inaugurou na capital de S. Paulo a estátua do Regente Feijó, no Largo da
Liberdade, o dr. ARMANDO PRADO, orador oficial, no seu discurso apologético, atribuiu àquele vulto político do passado o soneto de António Feijó.
Surpreendidos com isso, levamos ao brilhante orador a Ilha dos Amores, para
dissuadi-lo do engano em que laborava. ARMANDO PRADO, em artigo do Correio Paulistano, esclareceu-nos que a tal fora induzido pela
Biographia, recentemente publicada, do padre Feijó, ou antes, pela coleção de documentos e verificações de datas e fatos, organizada com
laboriosa paciência pelo dr. EUGÉNIO EGAS, obra em uma de cujas páginas figurava como do sacerdote paulista o soneto do vate lusitano.
A identidade do segundo nome e do sobrenome de ambos e o motivo poético, de caráter
místico, da composição, poderiam confundir o espírito das pessoas estranhas ao foro das letras, mas não dos que, por sua pressuposta cultura
literária e contínua aplicação aos estudos biográficos e à crítica histórica, deviam desde logo repelir a hipótese de que da personalidade seca,
áspera e árida do padre Feijó, e do seu nível mental abaixo do mediano, pudesse jamais emanar aquele jorro de lirismo e de ternura fluindo em versos
vazados na mais pura e cristalina forma portuguesa. Entretanto, na referida obra não se fez retificação alguma e há de continuar passando como do
enérgico e resoluto político da Regência a obra devida à inspiração delicada do elegante poeta de além-mar.
[NOTA SUPLEMENTAR].
[78] Le Jardin d'Epicure,
página 76.
[79] HENRI BARBUSSE -
La lueur dans l'abîme, págs. 65 e seguintes.
[80] ALBERTO SOUSA -
Amadeu Amaral e sua obra, pág. 29, edição de 1918.
[81] Originais existentes
no Arquivo do Instituto Histórico Brasileiro.
[82] AMÉRICO ELYSIO -
Poesias avulsas, 1825, Bordéus, in-16.
[83] VISCONDESSA DE
SEPETIBA, carta citada.
[84] GRÉTRY - Memoires
ou Essais sur la Musique, tome 3.me, p. 414.
[85] P. LAFFITTE - Les
grands types de l'Humanité, 6.me leçon, pág. 396-97.
[86]
FREDERIC HARRISON - The New Calendar of Great Men, London, 1892, page 492.
N.E.:
[*] treno - canto
plangente, elegia, lamentação.
NOTA SUPLEMENTAR
(N.E.: publicada no segundo volume, pág. 861)
O REGENTE FEIJÓ E O POETA ANTÓNIO FEIJÓ (página 380,
nota 1). - O padre Diogo António Feijó e o vate lusitano António Feijó (cujo primoroso soneto Refugium peccatorum o sr.
EUGÉNIO EGAS atribui àquele) eram parentes. No excelente trabalho que o poeta português ALBERTO DE OLIVEIRA leu perante a Academia Brasileira de
Letras, a 28 de junho de 1917, sobre António Feijó, o que morreu de amor, encontram-se as seguintes referências: "O
nome de um Feijó ilustrou já a História do Brasil na pessoa do padre-regente, que era porventura da família do poeta e até se parecia com ele no
porte da cabeça profundamente encravada entre os ombros"
[N1].
A suposição de ALBERTO DE OLIVEIRA assenta na verdade: o sr. Alberto Rodrigues, de Pelotas,
participou-nos, numa epístola de 4 de maio de 1923, que o próprio António Feijó certa vez lhe escrevera, afirmando o seu parentesco com o nosso
ilustre concidadão.
[N1]
ANTÓNIO FEIJÓ - Sol d'inverno, pág. LII. |