"O mês passado, quando o dr. Edgardo Boaventura, zeloso e íntegro prefeito municipal, nos convidou para que
viéssemos dizer hoje, neste augusto recinto, algumas palavras sobre Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, aceitamos desde logo o honroso encargo,
não só porque se buscava em nossa pessoa o presidente do Instituto Histórico e Geográfico desta cidade, senão também porque era mais um
agradável ensejo que se nos abria de prestar pública homenagem a um grande vulto da nossa pátria.
Demais, em virtude das pessoas gradas que aqui estariam presentes, uma resposta de maneira declinatória, seria um desprimor, sobretudo porque
entre elas viríamos encontrar presidindo a esta solenidade, como verificamos com viva emoção, o eminente sr. interventor federal, embaixador
José Carlos de Macedo Soares, a quem desde os nossos primeiros anos juvenis aprendemos a estimar e admirar pelos exemplos edificantes que nos
oferecem todos os atos da sua vida, pelo seu alto valor intelectual e moral, pela elegância cativante de seus gestos e mormente pela
incomensurabilidade do seu coração - coração em tudo tão igual ao daquele mestre suave e rigoroso, amigo incomparável que a nossa saudade sempre
relembra e a nossa gratidão acompanha na morte -, queremos referir-nos ao professor José Eduardo de Macedo Soares.
Confessamos, entretanto, corridos e pesarosos, que o nosso fugidio trabalho não vai corresponder à delicadeza
do convite, pois a projeção de Antônio Carlos - homem dos nossos dias, no cenário político nacional, ainda é muito cedo para se avaliar com a
devida justiça. Os grandes homens devem ser vistos à distância. Um observador colado à encosta da montanha não vê a montanha.
Nem se diga que poderíamos passar em silêncio esse aspecto de sua vida. Testifica Ludwig que "o político não
pode separar-se do homem, do parlamentar, porque entre os sentimentos e os fatos há uma íntima dependência, e a vida pública sempre se alia em
consonância indissolúvel à vida privada".
Lancemos, por conseguinte, um rápido olhar sobre a figura de Antônio Carlos. Um olhar tão rápido quanto nos
possa permitir a avidez deliciosa em que todos estamos por ouvir a palavra formosa e eloqüente de Pedro Calmon.
Antônio Carlos, como sabem os senhores, era filho do santista de igual nome e neto por linha viril de Martim
Francisco, o da Independência. Pertencia sua mãe aos Limas Duartes de Minas Gerais. Nasceu ele a 5 de setembro de 1870 na aprazível e remansada
cidadezinha mineira de Barbacena. Não escapou, entretanto, à regra emotiva do benquerer de lugares preeminentes da vida de cada um: a cidade
natal, o lugar dos amores, a terra dos avoengos, e também a do próprio domicílio, sentimentos regionalistas que não depreciam nem ferem o amor
da pátria, antes o acrisolam, pelo estímulo das disposições afetivas que afervoram e embelezam a existência. Assim, não escondia, punha mesmo
todo empenho em proclamar que, no Brasil, motivo do seu amor cívico, contava três berços, três torrões natais, pois a cada um distinguia com o
designativo de Minha Terra: Barbacena, Santos e Bagé.
Aos dezessete anos mandaram-no seus pais a estudar Direito na Faculdade de São Paulo. Pertence, destarte, à
turma de 1887 a 1891, que numerava de início 113 alunos e foi aumentada durante o curso com mais 28. Quadra exaltada e sonhadora da agitação
abolicionista e da campanha republicana. Essa turma, pelo minguado número de estudantes que se salientaram, pouco prometia. Spencer Vampré
menciona entre estes apenas José Mendes, Olegário de Almeida, Osório de Aguiar, Enéias Ferraz, Leopoldo de Freitas, Abelardo César, Estevão
Magalhães Pinto, Auto Fortes.
Depois, quer na vida profissional, quer no magistério, já na política, já na diplomacia, essa turma sobreluziu,
dando Afrânio de Melo Franco, Antonio José de Moraes Barros, Arnolfo Azevedo, Astolfo Rezende, Cândido Mota, Gabriel de Rezende, Gastão de
Rezende, Gastão da Câmara Leal, João Maurício Sampaio Viana, Joaquim Alberto Cardoso de Melo, José Ulpiano, Pedro de Castro do Canto Melo, Pedro
Moacir, Rafael de Abreu Sampaio Vidal, Reinaldo Porchat, Washington Luiz e vários outros.
Formado, advogou Antonio Carlos em Juiz de Fora durante dez anos seguidos, onde fora também jornalista e
professor. Por ali Silva Jardim começou a propaganda republicana. Conta até que, durante a sua conferência, liberais e conservadores
aproveitaram a ocasião para se engalfinharem, no que Silva Jardim assistiu meio irônico, declarando por fim, entre o riso dos presentes: "Espero
que a Monarquia acabe de brigar, para prosseguir a minha conferência".
A vida política principiou-a Antônio Carlos como secretário das Finanças do Estado de Minas Gerais e prefeito
de Belo Horizonte. Nesse tempo, que durou quatro anos, os melhoramentos públicos que fez, e o contato mais freqüente com o povo, contribuíram
imenso para aumentar e cimentar o seu prestígio.
Nos cinco anos seguintes, foi senador ao Congresso Legislativo do Estado e prefeito de Juiz de Fora. Como
deputado federal, no longo período de 1911 a 1917, ocupou os cargos de presidente da Comissão de Finanças, relator do orçamento e líder da
maioria na Câmara.
Em 26 de setembro de 1913, em sessão ordinária presidida pelo conde Afonso Celso, foi proclamado sócio do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Como título para a sua admissão, ofereceu um estudo sobre O ministro da Fazenda da Independência
e da Maioridade. Sua ação no Governo e no Parlamento, suas opiniões sobre assuntos de finanças. É uma documentada e conscienciosa monografia
sobre a história de nossas finanças, na qual o autor soube realçar, com esplêndido relevo, o talento de Martim Francisco, na sua visão segura,
suas idéias básicas no domínio da Ciência das Finanças e sua ação benéfica na administração financeira do País.
Infelizmente, o historiador, que assim se mostrava tão esmerado e primo, deu a público somente dois trabalhos
mais: Finanças e Financistas do Brasil e Bancos de Emissão do Brasil.
A preferência, mui saborosa mas fatigante, aos estudos financeiros, demonstrada nessas obras e em um
sem-número de discursos, lhe valeu talvez, no derradeiro ano do governo Venceslau Braz, a pasta da Fazenda, na qual continuou com Delfim
Moreira, até 25 de julho de 1919.
De novo deputado federal, presidente da Comissão de Finanças, relator de orçamentos e líder da maioria da
Câmara de 1920 a 1925. Passa este ano a senador, exercendo na Europa as funções de perito financeiro nomeado pela Sociedade das Nações, e em
Londres, de representante do Brasil no Congresso Parlamentar Internacional. Ainda esse ano, de retorno da Europa, é eleito presidente do seu
Estado para o quadriênio que findou em 1930.
Augusto de Lima Júnior diz que Antônio Carlos, "por vários aspectos, reabilitou a tradição da inteligência do
poder público em Minas".
Sobre a personalidade do presidente e a gênese da sua candidatura, assim se enuncia Passos Maia, médico e
senador mineiro, nas suas interessantes Reminiscências, aparecidas em 1933:
"No fim do biênio Melo Viana, o senador João Pio
mostrou-me uma carta do dr. Afonso Pena Júnior, pedindo-lhe para insinuar no seio do Congresso o nome do dr. Antônio Carlos para a presidência
do Estado. Senti um frio no coração. Aquele homem era inteligente demais. Esses talentos que tangenciam pela fronteira do gênio são perigosos
nas culminâncias do poder... O dr. Antônio Carlos era um gentleman, um aristocrata de raça. Oriundo de uma família que ajudara a
Independência, credora, portanto, da estima de todos os brasileiros que se orgulham da trindade de Santos, tinha, há muito, conquistado a minha
admiração, com a sua brilhante, corajosa e eficiente liderança da presidência Bernardes.
Foi eleito presidente. Ninguém subiu as escadas do Palácio da Liberdade cercado de uma nuvem
mais espessa de incenso. Em Juiz de Fora, um septenário de festas brilhantes, e em Belo Horizonte, sua investidura, assistida por toda a alta
prelazia do Estado, revestiu-se de um esplendor só comparável à coroação de um rei, ou à recepção de um general romano...
"O novo presidente era um feiticeiro emérito, conquistava todos os corações. A primeira vez
que lhe falei, com os braços abertos e aquela maestria consumada em se dirigir aos visitantes, foi logo dizendo: 'Você é o meu homem do Sul de
Minas. Entrego-lhe o Sul de Minas. Vigie-o'.
"Como, senhores, sabia ele distribuir as pompas exteriores do valimento! Constituem essas duas
linhas um documento biográfico de preciosidade inestimável. Só quem sente a política pode avaliá-lo".
Apóstolo e um dos fautores da Revolução de 30, foi dos mais prestadios cooperadores, dos mais animosos
paladinos da Segunda República.
Deputado à Assembléia Constituinte e presidente dessa mesma Assembléia que nos deu a Carta Magna de 1934,
soube ele granjear, pelo acume da sua inteligência e pela alta nobreza do trato, a simpatia de todos os congressistas, inclusive da bancada
paulista, no início tão prevenida com ele.
No regime então inaugurado foi deputado federal e presidente da Câmara. Nesta qualidade, sendo vice-presidente
da República, exerceu a chefia do Governo de maio a junho de 1935, por ocasião da viagem do presidente efetivo às Repúblicas Platinas.
Após o golpe de Estado de 10 de novembro de 37, esfriou no seu entusiasmo e, golpeado pela ingratidão,
afastou-se da vida política. Filho das Alterosas, terra jubilada no amor da liberdade, pronunciou ele com profética visão as ruínas do chamado
Estado Novo.
O citado Passos Maia, que não tinha a admiração fácil, apesar de cultivar a hipérbole, bosquejou de Antônio
Carlos como político um perfil mordaz e picante, onde o emparelha a Machiavel e Mefistófeles. Pendemos a crer haja nisso uma ilusão de
perspectiva. Em boa verdade, esse homem cuja herma neste momento se inaugura ao lado das veneráveis cinzas ancestrais, há de ser, por muito
tempo, como legítima vergôntea intelectual da ilustre estirpe dos Andradas, desfigurado pela admiração e pelo ódio. Contudo, estamos certos, da
sua biografia, os vindouros hão de tirar exemplos para pequenos e grandes - porque foi uma vida que enriqueceu a vida.
Inda há pouco, o nosso querido Hipólito do Rego, que foi representante de São Paulo na Constituinte de 34 e
amigo de Antônio Carlos, contava-nos enternecido que uma das grandes aspirações afetivas do inolvidável estadista era rever esta cidade,
senti-la em todas as suas vibrações de terra fadada a ter influência decisiva nos destinos da nacionalidade e em todos os principais eventos da
sua história. Sim, senti-la como terra dos seus maiores, os quais mereciam a sua enlevada devoção, e por cujos feitos nobremente se envaidecia.
Ao ilustre representante paulista ele manifestara mesmo o desejo intenso de passar aqui uma larga temporada.
Mas, como dizia, queria hospedar-se nas proximidades deste Panteão, conviver com estas grandes figuras e
reforçar na meditação dos seus feitos memoráveis o seu devotado amor ao Brasil e sobretudo a Santos.
Não permitiu o destino que o insigne brasileiro realizasse em vida essa aspiração cariciosa que tanto o
empolgava; mas o gesto altamente simpático e nobilitante do sr. embaixador Macedo Soares, doando-nos este busto para que figure neste templo
cívico, realiza agora o anelo do notável brasileiro, que ficará perenemente aqui representado entre os seus gloriosos antepassados, convivendo
com eles para o culto da Pátria e da saudade. |