Três desafios essenciais
José Tarciso Florentino da Silva
Presidente do Sindicato dos Conferentes de Carga e
Descarga do Porto de Santos
Conferência proferida no dia 24 de maio, no Seminário
Cidade-Porto, promovido pela Prefeitura Municipal de Santos
"O palmeira botou toda a eletricidade, esticou o cabo possante e levantou
o grab que lá se foi pelos ares, como uma aranha descomunal, em procura do porão do cargueiro Amberton, que trazia carvão de Cardiff.
O barco vinha de barriga cheia, a carga beijando a boca da escotilha. A máquina escancarou as mandíbulas medonhas, enterrou os dentes na massa negra
e derramou na galera três toneladas de carvão, de uma só vez. Chegara recentemente e eram as primeiras experiências que se faziam (...) O demônio da
máquina, sozinha, fazia o serviço de muitos homens. Como tudo corria bem, indo a experiência além das expectativas, Malhado veio despedir os
trabalhadores. Podiam ir, serviço só na manhã seguinte. Que ficassem satisfeitos com o meio-dia. Os homens, porém, não se conformaram, nascendo
entre eles um zun-zum de abelhas irritadas, que foi aumentando com rapidez, até se transformar num protesto firme e peremptório: "Fora com a
máquina! Não Pode, não pode!"
O trecho foi extraído do livro Navios Iluminados, escrito por Ranulpho Prata em 1957, que
relata episódio do início dos anos 30.
Grande parte dos problemas atuais que se enfrenta no Porto de Santos, ainda tem o mesmo caráter
daquele episódio que marcava uma introdução tecnológica modernizadora, que produziria um aumento da velocidade operacional e da eficiência, com a
conseqüente redução de custos.
Naquele momento, como nos relata o autor, o porto tornou-se uma área de guerra, de protestos, de
tumultuada luta pelo mercado de trabalho, que deixou o pobre grab estatelado no cais do armazém 23, como se houvesse sido vencido um
verdadeiro signo do mal.
Seria então a modernização uma inimiga do trabalhador? A pergunta se justifica, já que o maior lucro
de uns corresponderia necessariamente à supressão do direito ao trabalho de outros. Esse dilema é ainda o que tem prevalecido nos debates que se
travam desde os anos 80.
A essência do que nos descreve Prata em seu livro, é a conflitiva introdução de novas tecnologias e
métodos sem consulta aos trabalhadores, sem preparação adequada, sem que houvesse qualquer preocupação com a reciclagem da mão-de-obra para os novos
tempos. E, principalmente, sem que essa nova tecnologia resultasse em novos postos de trabalho para os que, fatalmente, seriam afetados no processo.
Esta tem sido a relação mais comum dos trabalhadores dos portos com os processos de modernização das
atividades portuárias, há muito mais de um século, o que se pode traduzir com brevidade pela palavra exclusão.
Chegamos ao primeiro desafio que nos apresenta a questão portuária atualmente: evitar que a necessária
busca de eficiência se torne um fim em si mesma, que a tudo justifique e amplie a exclusão dos trabalhadores do processo do qual são agentes
fundamentais. Nada será feito assim, que possa vir a ter consistência.
Seria natural, frente aos choques produzidos por essa exclusão histórica, que se estabelecessem mútuas
desconfianças. E foi o que se deu.
Para os empresários, os trabalhadores dos portos representam o que classificam como atraso, uma
reação ao novo e ao eficiente, que querem fazer crer irracional.
Para os trabalhadores, os empresários não seriam mais que caçadores de cabeças, com o olhar fixo na
redução da mão-de-obra que amplia seus lucros.
Ambas as visões são distorcidas pela relação conflitiva de desconfiança.
Eis o segundo desafio: a necessidade de rompermos esse círculo vicioso da incerteza deve ser encarada
pelas duas partes. Não há saídas sem que derrubemos este muro, que já nos parece uma imposição natural, tal o número de decênios que atravessou.
Mantida a desconfiança, será difícil que cheguemos às soluções consensuais que o final do século exige
e muito mais fácil que o aventureirismo das soluções de força lance suas sementes.
A própria existência das categorias avulsas nos portos deve-se, em grande parte, às mudanças
estabelecidas pelos novos modos de movimentação de carga.
Todos nós já fomos embarcados um dia. No tempo dos navios fretados por tarefa, sem periodicidade nem
linhas, de portos desorganizados, todos os trabalhadores necessários às tarefas de carga e descarga vinham - e iam - com os navios.
Com o incremento do comércio e o aumento do fluxo de cargas, os espaços nos navios tornaram-se mais e
mais valiosos. Como convinha à lógica do capital controlador da navegação, o desembarque dos tripulantes engajados na movimentação de carga
tornou possível pagar pelo trabalho nos portos apenas no período em que dele houvesse necessidade.
Um grande "exército fora da lei", sem qualquer direito social, apinhou-se em torno dos portos,
inclusive o de Santos que era extremamente insalubre e tinha enormes dificuldades de acesso.
A chegada da ferrovia, aquela grande novidade de 1867, o desenvolvimento da capital do Estado, o
crescimento da agricultura, particularmente a do café, a implantação industrial, tornaram inadiável a necessidade de um porto organizado em São
Paulo.
Aquele exército de trabalhadores "fora da lei" respondeu às exigências súbitas do crescimento.
Historicamente, se poderia dizer abrupta: em 1808 abriu-se os portos ao comércio internacional e já em 1854 Santos respondia pela exportação de 80%
do café brasileiro.
Dessa resposta, decorreu a natural auto-organização da mão-de-obra, na busca dos direitos negados e de
condições de vida e trabalho mais adequadas. Neste esforço os trabalhadores dos portos legaram ao País gigantescos avanços sociais como conquista
adicional.
Todas as categorias portuárias têm longas histórias de lutas pelo estabelecimento das relações de
trabalho, hoje tão contestadas.
Essas relações foram estabelecidas na prática de um trabalho de grande especificidade, cujo
conhecimento era transmitido oralmente. No dia-a-diua do cais aprendia-se a melhor estivagem, a mais rápida operação, a mais adequada maneira de
movimentar cada tipo de carga.
O método de trabalho nos portos não foi estabelecido senão em decorrência da própria atividade dos
trabalhadores portuários.
Até mesmo o modo de gerenciar a mão-de-obra foi fruto do trabalho cotidiano e da busca da melhor
maneira de executá-lo.
É fácil demonstrar que a maneira de funcionamento dos portos tem razões mais profundas que as
meramente econômicas, chegando ao nível cultural. É resultado de soluções práticas adotadas frente aos problemas emergentes durante mais de uma
centena de anos. Um longo caminho do vapor até a energia nuclear.
A experiência acumulada pelos trabalhadores dos portos, agora tão negligenciada, foi essencial para o
estabelecimento das prioridades e definição das estratégias que tornaram o Porto de Santos o que ele é hoje.
A acumulação tecnológica tem produzido saltos formidáveis em nossos dias. Já não bastam os antigos
métodos. São necessários esforços especiais de preparação da mão-de-obra portuária, dos quais não se descuidam as nações desenvolvidas. A qualidade,
que é o que se busca em última instância neste processo, não decorrerá apenas do desenvolvimento de máquinas e equipamentos.
Tudo será em vão se o homem, razão de ser e objetivo do desenvolvimento, não estiver preparado para
extrair desta crescente sofisticação tecnológica o melhor que ela pode produzir em seu proveito e da sociedade.
Certo é que não se terá portos modernos sem trabalhadores preparados para os novos tempos, que sejam
participantes efetivos do processo de mudança e agentes engajados na busca da qualidade e da eficiência.
Esse conceito, que se estabeleceu como prática cotidiana nos países desenvolvidos, é ainda apenas uma
expectativa nos países em desenvolvimento. Santos não escapa da regra. Há um descompasso evidente entre a intenção modernizadora, com a qual
concordamos todos, e a realidade de exclusão da forma como este processo vem se dando entre nós.
Estamos, portanto, defronte ao terceiro desafio, este composto por duas partes complementares.
A primeira delas é a de evitar que o enorme patrimônio de conhecimentos que alicerçou o
desenvolvimento do porto seja simplesmente descartado. Seria um grande erro. Um indesculpável desperdício.
A segunda face a ser enfrentada é a do estabelecimento de programas de treinamento para as mudanças
tecnológicas e a busca da qualidade. Sem isso, toda a traumática experiência que temos vivido resultará inútil, o que a tornará socialmente injusta,
economicamente desastrosa e humanamente cruel.
Os trabalhadores estão preparados para estabelecer as parcerias que conduzam a mudanças que contribuam
para o desenvolvimento e elevação da qualidade de vida. Estaremos engajados nos esforços de ampliação da eficiência do porto como sempre estivemos.
Estamos prontos para debater as soluções que viabilizem as mudanças com todos os setores comprometidos com os mesmos princípios. Desejamos uma
transição de crescimento e progresso.
Esse propósito exclui, por si mesmo, a idéia de mudanças que visem uma falsa redução de custos a
partir da eliminação de postos de trabalho e direitos sociais, e da compressão dos salários. É falsa porque os custos, pretensamente cortados,
recaem na prática sobre toda a sociedade. No caso de Santos, é bem conhecida a influência da massa salarial das atividades portuárias sobre todos os
setores da economia local.
Exclui também a idéia da desmontagem da representação sindical. É uma intenção desagregadora e
desorganizadora dos trabalhadores e, conseqüentemente, da sociedade santista. É contraproducente, já que a organização da força de trabalho é
essencial para o desenvolvimento da sociedade capitalista.
Cremos que nenhuma dessas pretensões, expostas freqüentemente por setores do empresariado, tragam em
si a semente do aumento de eficiência e qualidade que queremos e devemos buscar.
Elas apenas nos remetem a uma situação semelhante à do início de tudo. Já fomos um exército de
trabalhadores fora da lei no porto e superamos essa condição. A história não se repete.
Muito obrigado. |