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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Arte grafite era praticada de madrugada (2)

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Era uma época em que a contestação jovem, depois de passar pelas roupas e da atitude hippie da geração "Paz e Amor", e pelos protestos contra a ditadura militar que ainda controlava o Brasil, descobria na pichação de muros e paredes uma nova forma de expressão, ainda não muito bem compreendida pela geração mais velha, especialmente pelos donos das paredes e dos muros pichados. Ao mesmo tempo, via jornais e rádios, as pessoas começavam a passar seus recados pessoais, como registra esta matéria publicada no caderno AT Especial do jornal santista A Tribuna, em 27 de março de 1983:
 


Nos muros da Cidade surgem com muita freqüência as mais diferentes manifestações de amor
Foto publicada com a matéria

Marca do amor na rua, nos muros, jornais...

"Amar é tornar pública esta declaração: eu te amo". Assim como a jovem Ana Maria, que mandou instalar uma faixa na rua com esses dizeres para seu namorado, muita gente vem se expressando publicamente através de jornais, rádios, muros e leitos de rua, estendendo ao campo sentimental um fenômeno crescente.

O psicanalista Catulo César de Magalhães considera essas manifestações positivas e "reflexo da repressão sofrida pela atual geração de adolescentes, crescidos em um contexto alienante e esterilizante". Cada manifestação tem um sentido em seu momento histórico, afirma ele.


Há inscrições agressivas, mas predominam as mensagens de ternura
Foto publicada com a matéria

Repressão leva o amor para as ruas e jornais

"Amar é tornar pública esta declaração: eu te amo". Ana Maria, 22 anos, estudante de Psicologia, acha que sim e, por isso, mandou instalar uma faixa com esses dizeres em plena avenida da praia, para homenagear seu namorado, Sílvio, no dia em que aniversariava. Essa forma de manifestação, cada vez mais freqüente, soma-se a muitas outras veiculadas em jornais, rádios, muros e até mesmo em leitos de ruas. Para o psicanalista Catulo César P.B. Magalhães, é fruto da repressão sofrida pela atual geração de adolescentes. E do ponto de vista psicológico, ele considera positiva: "É uma reação a esse contexto alienante e esterilizante".

O fenômeno surgiu há alguns anos, quando começou-se a pichar os muros, algumas vezes com palavras sem sentido, mas em outras com mensagens consideradas poéticas. E as reações foram diversas, desde a qualificação de vandalismo e desrespeito ao patrimônio público e particular, até à interpretação de que se tratava de uma extensão, aqui, do movimento iniciado na Europa, o grafite.

A política passou a predominar nas pichações e agora perde seu lugar para as mensagens românticas, em geral declarações de amor.

"Qualquer maneira" - Sílvio aniversariava no último domingo e, por isso, Ana Maria gastou Cr$ 12 mil com duas faixas, instaladas na véspera, pela própria firma que as confeccionou, junto a postes de iluminação, o que o Código de Posturas proíbe.

Nas duas faixas constavam o nome da estudante e o de seu namorado. E com certeza uma explicação para esse comportamento estava expressa na segunda faixa, colocada no Boqueirão: "Sílvio: Diz que qualquer maneira de amar vale a pena. Esta é a minha. Ana". No mesmo dia, outra faixa era afixada por Gil, pedindo que Eliana voltasse para ele. Não se sabe se Eliana voltou, mas Sílvio gostou muito da homenagem de Ana.

"É uma coisa que sempre tive vontade de fazer utilizando out-doors, mas como aqui eles são escassos, ao contrário de São José do Rio Preto, minha cidade, resolvi usar faixas. Não era para aparecer, essa vontade estava dentro de mim e tinha que colocá-la para fora", explica a estudante.

"Quando vi os homens da firma instalarem uma das faixas - diz Ana -, tremia de tanta emoção, como se eu é que estivesse sendo homenageada, enquanto minha mãe dizia: tenho uma filha louca".

O amor impresso - Segundo o proprietário de uma firma de confecção de faixas, esse fenômeno começou quando uma emissora de televisão deu ampla cobertura a um episódio ocorrido em Curitiba. Um publicitário mandara instalar out-doors por toda a cidade, pedindo à sua ex-namorada que voltasse. E ela voltou, talvez impressionada com a repercussão nacional do apelo.

Somente essa firma já produziu cerca de 20 faixas e, segundo alguns clientes, deu resultado. Esta também é a impressão que se tem no Departamento de Publicidade de A Tribuna, que há mais de dois anos lançou uma coluna chamada "Deixe impresso o seu amor", implantando um novo hábito em muitos leitores: o de logo que abrem o jornal, procurar alguma mensagem para si.

Essa seção visava especialmente as datas festivas, como Dia dos Pais e Dia dos Namorados. Mas acabou sendo muito usada para recados diversos, em datas particularmente significativas para o destinatário ou em um dia qualquer em que se tenha vontade de saudar alguém, seja pai, amigo ou namorado. Atualmente, mais de 50 mensagens são publicadas, semanalmente, com teores diversos.

"Nancy - aguardo pelo menos um olhar seu. TE AMO. EU", dizia uma dessas mensagens na edição de sexta-feira. E ontem, já havia o retorno: "EU - Aguardo também... Te amo, você sabe, Nancy". José Luiz de Araújo, 23 anos, estudante de Comunicação, recorreu à coluna para homenagear Gláucia, sua namorada. E escreveu este verso: "Que o dia amanheça/com o teu despertar/E o sol brilhe/com o teu sorriso". Também deu resultado.

O mesmo não se pode dizer de Beto, um jovem que durante várias semanas andou pichando muros com mensagens de amor endereçadas a alguém que ele chamava de "Monstro" ou ""Monstrinho". Na Avenida Siqueira Campos, um muro branco ostenta esta frase: "Monstro - por que você?... O amor tem razões que nem a razão compreende". Desta vez não houve retorno. Paula, a quem Beto chamava com nome tão estranho, talvez tenha se sentido envaidecida, mas nem por isso passou a gostar de Beto.

Autoritarismo - O amor parece prevalecer, hoje, nas diversas mensagens espalhadas pela Cidade. E poucas delas possuem uma importância realmente artística, como o painel pintado por um artista na Rua Galeão Carvalhal, em homenagem a Elis Regina. Diz o mural: "Elis - ainda que passe o tempo", acompanhado de figuras coloridas cujo efeito está longe de ser considerado uma poluição visual.

De político, pouco contêm as mensagens atualmente, ao contrário do período pré-eleitoral. O máximo que se vê são mensagens reivindicando a mudança da Lei de Segurança Nacional ou uma suástica seguida da frase "estamos voltando".

Catulo César de Magalhães é psiquiatra, psicanalista e professor de Psicopatologia no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santos. Para ele, todo esse comportamento caracteriza a geração de adolescentes, marcada pelo autoritarismo, "com censura à criatividade, à linguagem e às discussões francas e abertas com os pais e os adultos de forma geral".

"Essa atmosfera de repressão - explica ele - contrastava com as informações que os jovens recebiam de países europeus e dos Estados Unidos, onde havia plena expressão e discussão sobre questões econômicas, políticas e mesmo existenciais. As informações mostravam uma organização em que frações da sociedade civil discutiam - e discutem - idéias e posições, assumindo-se os grupos minoritários".

Por isso, Catulo admite a possibilidade de que o desejo natural e espontâneo de expressão tenha-se exacerbado em manifestações com caráter de protesto, sobre sentimentos românticos ou mesmo de caráter jocoso. Na Rua Itapura de Miranda um muro ressalta: "Fátima tem câncer".

Essas manifestações antes eram mais políticas - diz Catulo - mas foram se esvaziando devido à sua ineficácia. Agora, caracterizam mais uma forma de protesto individual, criando-se "um muro de projeção de protesto contra a solidão".

"Em uma sociedade urbana como a nossa, as pessoas têm necessidade de se afirmar como indivíduos, estabelecendo um poder diante da massificação. Objetivando-se, as pessoas reafirma-se, como se dissessem: Eu sou uma pessoa diferente das outras".

Por isso, o psicanalista considera positivo esse comportamento. "Excetuando aspectos de poluição visual e de ordem legal, é positiva essa manifestação, como forma de reação a esse contexto alienante e esterilizante. Vale como uma tentativa de responder-se em termos de criatividade, se bem que pode não ter muita eficácia porque só agora estamos começando a nos organizar e a nos expressar".

Catulo lembra que a publicidade e os meios de comunicação, detectando essa tendência, estão canalizando-a através do estímulo e da abertura de espaço em jornais, rádio e televisão. "É um estímulo ao qual corresponde especialmente a classe média, evidenciando o sentimento de opressão".

"Cada manifestação tem um sentido em seu momento histórico", diz ele, ressaltando, porém, que a questão também pode ser vista do ponto de vista individual. "Podem tratar-se de desejos insatisfeitos, na medida em que as mensagens representam a demanda, um discurso que tenta traduzir um desejo que é inconsciente para o próprio indivíduo. Geralmente trata-se de uma deformação das reais necessidades do indivíduo, mas isto teria que se analisar caso por caso".

Romantismo - "Que o dia amanheça com o teu despertar..." Sejam publicadas no jornal ou pintadas em faixas ou muros, as mensagens de amor caracterizam-se por um esforço poético. E neste sentido, Catulo dá uma definição psicanalítica: "O movimento romântico representa uma exaltação do individual. O amor-paixão significa singularizar o indivíduo na massa humana para si e, em contrapartida, sentir-se singularizado para o outro".

Como Ana, Gil, José Luiz ou tantos outros, a jovem Leda Valéria atribui muito valor às mensagens: "Eu vejo a coisa de um modo simples, porque acho natural e sadio a gente tornar público um sentimento de amor e de amizade. Bastou um ter a idéia e colocá-la em prática, para que todos puxassem o fio. Não acho, absolutamente, que se trata de vaidade, exibição, insegurança ou auto-afirmação. Para mim, colocar um recado no jornal ou pendurar uma faixa na rua é algo muito gostoso para quem faz e para quem recebe a mensagem".

Leda vai mais além, dizendo que "se uma atitude tão bonita como essa agride alguém, é porque esse alguém está sentindo falta de uma relação tão boa. O que falta para muitos é a coragem. E o que sobra, infelizmente, é vergonha, preconceito e constrangimento por demonstrar felicidade, amor ou gratidão. A vida seria bem melhor e mais fácil se as pessoas liberassem mais as coisas boas que guardam dentro de si".