Nos balcões do Ao Anjo Barateiro, a exposição de delicatesses
Foto: Cidade de Santos, publicada em 21/4/1977
Importados,
um ramo do comércio em extinção
Encostada a uma parede, atrás da caixa registradora, uma
velha placa metálica, de quase metro e meio de comprimento, já enegrecida pelo tempo, onde se lê: Ao Anjo Barateiro. Atendendo aos fregueses,
conversando com todos, ao mesmo tempo sério e jovial, Fernando Martins, o dono daquela loja da Rua Itororó, fala dos velhos bons tempos, quando mais
de metade do estoque da loja era de produtos importados.
Quarenta anos de Brasil, começou no ramo de secos e molhados ao comprar aquela loja,
que ele nem sabe quando foi fundada. "Deve ter sido há mais de 50 anos". Naquela época, a importação era fácil, e ele podia trabalhar com um bom
estoque de vinhos, azeites e conservas vindas do estrangeiro, não esquecendo o tradicional bacalhau. Depois, a vida foi se tornando difícil, o
vinho, o azeite e o bacalhau ficaram mais caros.
Apenas as classes mais favorecidas podiam se dar a esse luxo, e como essas classes
estavam se tornando cada vez menores, o consumo foi caindo. Com o incentivo à industrialização nacional, o produto brasileiro foi se tornando mais
sofisticado, e hoje se iguala e até supera o importado. Também muitas indústrias vieram se instalar no Brasil, e marcas famosas começaram a ser
produzidas em nosso país, extinguindo-se a importação de muitos uísques, licores, vinhos, conservas, latarias e biscoitos.
"O que vem de fora não é melhor" - A popular idéia de que os produtos
importados são melhores que os nacionais começou a mudar quando o Brasil passou a colocar dificuldades nas importações. Vendo-se obrigado a aderir
ao produto nacional, o povo começou a perceber que muita coisa feita no país era igual ou melhor que a importada. E o produto nacional tornou-se
popular. Cinzano, Drurys, Martini e recentemente os licores da Bols passaram a ser procurados mesmo pelas classes mais ricas, como as frutas
tropicais, conservas, latarias, biscoitos, queijos, e a linha de delicatesses (produtos para aperitivos) que o Brasil já produz, de boa
qualidade.
Surgiram os supermercados, que deram mais um golpe no comércio varejista, e muitas
casas fecharam. Mercearia Royal, Casa Haia e Mercearia Natal, por exemplo, tradicionais casas que trabalhavam com produtos importados, foram
fechando. Outras, como a Casa Aymoré, na Rua Frei Caneca, mudaram seu ramo de atividades. Esta última, conhecida importadora, se retraiu, e passou a
ser fornecedora de navios. Resta ainda, funcionando como antigamente, aquela casa da Rua Itororó, que agora ostenta um anúncio luminoso: Ao Anjo
Barateiro.
Golpe final - Com as restrições impostas há três anos, obrigando o importador
ao depósito compulsório por um ano, sem juros nem correção monetária, o golpe final contrra as pequenas casas importadoras foi assestado. Poucos
tinham condições de continuar na praça. Os custos se elevaram, pois era preciso deduzir no preço do produto o valor da desvalorização da moeda, e o
preço final aumentava. Tradicionais firmas como a Vicente J. Tavares tiveram que reduzir seus estoques de produtos importados de 30 para 3 por cento
de seu volume de negócios, pois não era mais possível se manter um alto estoque.
Também devido à falta de continuadores, os velhos proprietários eram obrigados a
fechar suas firmas, ao se aposentarem, pois os filhos preferem seguir a profissão que aprenderam na faculdade, a continuar no ramo dos pais. Também
é muito difícil vendê-las, devido ao grande empate de capital com o volumoso estoque que é necessário para se manter uma empresa como essa em
funcionamento. E fecharam a Ferreira Laje, a Martins Pimenta, a F. Monteiro, a Osório Domingues, a C. Costa Fontes, entre outras.
A tendência é desaparecer - Francisco Gonçalves, repositor de produtos
importados do Supermercado Eldorado, diz que está tendo um grande movimento, mas que a tendência é de os produtos importados desaparecerem das
lojas, dando seu lugar aos nacionais. "O movimento que estamos tendo está sendo maior devido a que os produtos estão começando a desaparecer. Da
Europa praticamente não vem mais nada. A queda talvez seja devido à falta de mercadorias. Hoje, o que está vindo mais é vinho. Latarias, biscoitos,
foi tudo proibido. Ainda chega alguma coisa da Argentina, Chile, e quase nada da Itália e de Portugal. Nosso estoque é bom e ainda estamos
agüentando, mas virá uma época de crise, em que sentiremos também o problema, como estão sentindo atualmente os importadores.
Francisco Gonçalves, do Supermercado Eldorado
"Atualmente
há maior procura que oferta. Todos sabem que os produtos importados vão desaparecer, e por isso atualmente está havendo uma grande procura, antes
que eles desapareçam do mercado. Está vindo uma variedade enorme de vinhos importados, do Chile e da Argentina, em bastante escala, mas com valor
estimativo alto, mais caros que os europeus".
"Estamos vendendo o vinho Chateau Sebercaseaux, argentino, a Cr$ 69,80,
enquanto que o Siglo de Oro, de procedência espanhola, custa Cr$ 69,50. O vinho português Casa do Campo é vendido a Cr$ 53,00, e o
Mateus Rosé, o mais tradicional dos vinhos portugueses, custa Cr$ 68,00. Sabemos que a qualidade dos vinhos europeus é um pouco melhor que a dos
argentinos e chilenos; entretanto, os preços destes vinhos são ainda maiores que os da Europa. Mas recebemos geléias argentinas a preço
relativamente baixo, dentro do mesmo paralelo das nacionais, na mesma faixa de preços". E existem certos chocolates suíços mais baratos que os
nacionais, bem como geléias argentinas de preços melhores que os nossos".
"De qualquer forma, a tendência é esse comércio desaparecer. Tomara que isto nunca
aconteça, pois eu vivo disto aqui, trabalhei uma grande parte da minha vida nesse setor. Nesta época, triplicamos o movimento devido à procura.
Vendemos agora uma média de uma caixa (12 garrafas) de vinho Adriano Ramos Pinto por dia, quando antes a média era uma venda de 3 a 4
garrafas por dia. Possuímos uns 25 itens de vinho do Porto. Grande variedade, desde Cr$ 105,00 a Cr$ 545,00. Somos os únicos da região que possuímos
ainda o Licor Mandarinetto, e na área de licores somos os líderes do mercado, devido ao grande estoque que temos, possuímos licores alemães
que não se encontram mais por aí".
Continuando, Francisco Gonçalves diz que "o máximo que a linha de produtos importados
atinge numa loja do setor é 30 a 35 por cento de seu volume de espaço para exposição. Acredito que as casas não fecharam devido propriamente às
restrições na importação, mas a outros fatores, pois uma casa que trabalha com produtos importados não vive somente desses produtos, mantém
paralelamente uma linha muito maior de produtos nacionais.
"Aquela idéia de que tudo o que vem de fora é melhor, eu acredito que está mudando, o
povo. O brasileiro já começou a pensar diferente e reconhecer a qualidade de nossos produtos. Nossa linha de licores já satisfaz ao brasileiro, e
muitas fábricas de bebidas começaram a se instalar no Brasil. Vieram para nosso país marcas tradicionais, como o Cointreau, o Grand Marnier, famosos
licores que antes tínhamos que importar da França".
"Enquanto marcas famosas se instalam no Brasil, as marcas que aqui existiam ganharam
fama, e se igualaram aos produtos importados. Vem muita gente de fora comprar nossas aguardentes. Os licores da Bols são também muito procurados.
Nossa linha hoje está bastante sofisticada, também em conservas. Cogumelos (champignons), aspargos, azeitonas e cebolinhas recheadas, fundos
de alcachofra, que antigamente só eram conhecidos através do produto importado da Espanha, França, Portugal e Inglaterra, hoje temos produtos
nacionais de excelente qualidade, alguns feitos inclusive em Santos".
"Outra linha de grande procura, a dos delicatesses, já é produzida no Brasil,
onde temos o amendoim, preparado de diversas formas, por exemplo. Queijo, temos o Faixa Azul, e acredito que no mundo todo não haja
necessidade de se fazer um queijo melhor que esse, devido à sua alta qualidade. Nossos provolones também têm excelentes paladares".
"Na linha de frutas tropicais, acredito que o abacaxi, o caju, a manga, a goiaba rosa,
entre outros produtos nacionais, sejam melhores inclusive que os similares importados. Mesmo gente rica, classe A, não compra mais produtos
importados para aparecer, demonstrar sofisticação, quem compra [o produto nacional passa a] conhecê-lo e a gostar mais dele".
Uma nova tendência - "O interesse por produtos importados está caindo.
Atualmente, quem compra produtos importados é a classe mais favorecida, que entretanto está diminuindo, pois é preciso haver um certo padrão
aquisitivo para isso. Uma série de fatores está contribuindo para essa crise. A nacionalização dos produtos, as dificuldades com a importação, a
falta de grande número de produtos, cada vez maior, e até uma pequena mudança de hábitos do brasileiro, estariam gerando o problema que obriga
tradicionais casas a fecharem suas portas".
Quem compra bebidas importadas é o homem, mas quem compra queijos, biscoitos, lataria
e delicatesses é a mulher. No supermercado ela encontra tudo isso, juntamente com verduras, carnes e muitas coisas mais. Então, a tendência é
a mulher se dirigir ao supermercado para comprar os artigos importados, relegando a segundo plano as tradicionais casas do ramo."
"Trabalho há 17 anos nesse ramo, comecei em 1960, tendo começado na Mercearia Monte
Castelo, instalada na Rua Frei Gaspar, 72, onde hoje é uma lanchonete. Na época em que saí, ela se transferiu para outro endereço, pois a Frei
Gaspar foi alargada, mas já com outro ramo. Foi a primeira a fechar, na linha de importados, segundo o que me lembro foi entre 1963 e 1964. Depois
foram fechando as outras.
Está desaparecendo o intermediário - Fernando dos Santos
Gouveia, gerente geral de Vicente J. Tavares e Cia., diz que a real causa do fechamento das casas atacadistas de material importado é que, no setor
de produtos nacionais dessas firmas, as fábricas estão procurando eliminar o elemento intermediário entre elas e o comércio varejista, que é o
atacadista.
"Não há um motivo definido, um fator que esteja levando ao fechamento de tradicionais
casas, como a F. Vallejo, a Ferreira Laje, a Martins Pimenta e outras. Possivelmente seria por falta de continuidade na
administração das mesmas. A maioria dos proprietários, quando se aposenta, não tem a quem deixar o negócio, pois os filhos não estão interessados, e
ninguém quer comprar, devido ao grande empate de capital necessário. No meu caso, fechei a Casa Haia e a Mercearia Natal: fecharam por falta de
compradores".
No atacado, segundo Fernando Gouveia, o supermercado não influi, pois o atacadista
vende a pequenas casas do ramo, os varejistas. O problema é que as fábricas estão entrando no varejo muito mais do que antes, e isso está forçando a
eliminação do intermediário. Antes também se podia comprar a crédito, agora as fábricas querem o pagamento adiantado. E o varejista continua
comprando fiado, pois não tem condição de comprar três caixas de uísque e pagar na hora, por exemplo.
Três capitais - Para o atacadista sobreviver no mercado, precisa ter atualmente
três capitais, um para compra de mercadoria, um para o depósito compulsório sobre o valor da mesma, e o terceiro para suportar as vendas a prazo ao
varejo, servir como capital de giro. "Temos também que descontar no preço do produto a desvalorização da importância depositada que encarece o preço
final. Em conseqüência, o consumo caiu assustadoramente. Além disso, enquanto vendemos ao varejo, o supermercado compra grandes quantidades e põe à
venda na própria loja, sem intermediários, possibilitando um lucro maior. Por isso, o volume de produtos importados, que antes era de até 40 por
cento dos produtos vendidos, agora caiu para apenas 3 a 4 por cento".
Mas não desaparecerá ainda - Para Fernando Gouveia, de Vicente J. Tavares, "há
muitas coisas insubstituíveis, como o azeite de oliveira, que aqui não existe, o bacalhau, nativo das águas geladas, cereja, e outras frutas, que
nosso clima não permite reprodução. Há coisas que são nativas de um lugar, e que não podemos produzir aqui, e que continuarão sendo importadas. Além
disso, os produtos da Argentina não estão abrangidos por essas restrições, como também outros produtos sul-americanos. Mas na América Latina não é
produzida toda a linha que importávamos da Europa, que continuará a ser importada.
"E algumas casas continuarão no ramo. Apesar de a Casa Haia, fundada quando Rui
Barbosa pronunciava seus famosos discursos naquela cidade holandesa - e vendendo 90 por cento de artigos importados e apenas 10% nacionais -, hoje
ter desaparecido, e a Mercearia Natal, fundada em 1934, ter fechado em outubro passado. Porque há um tipo de clientela que não se adaptou ao
supermercado, e que continuará a comprar nessas pequenas casas de varejo".
Artigos natalinos e bacalhau continuam com sua venda normal, como nos outros anos, e
ele não considera seus preços muito altos, dizendo que "o aumento havido foi apenas pra compensar a desvalorização da moeda. Mas existem os peixes
ling e zarbo, que são vendidos como se fossem bacalhau, por serem da mesma família, embora sejam baratos. De qualquer forma, o bacalhau está fora do
alcance da maioria das pessoas, e o consumo poderia ter sido maior. Embora o poder aquisitivo seja cada vez mais baixo, existe uma classe que
considera a mercadoria estrangeira melhor. É a classe mais elevada, que entretanto está desaparecendo, ou se conformando em comprar o produto
nacional".
Fernando Martins, do Ao Anjo Barateiro
Varejo
sumindo - Fernando Martins, proprietário do "Ao Anjo Barateiro", também sente os efeitos que o supermercado causou, mas está otimista. "O povo
vai se cansar de ser enganado pelos supermercados, que oferecem dez produtos em promoção e descontam o prejuízo nos demais, enganando o comprador.
Conservo meu sistema tradicional de vendas, sem ofertas nem nada, e os clientes tradicionais continuam a ser atendidos da mesma forma.
"Sei de casos de clientes que se afastaram por um tempo, para irem ao supermercado, e depois
voltaram. Se você ficar olhando por algum tempo a movimentação dos compradores no supermercado, próximo às caixas, verá que de vez em quando alguém
chega com o carrinho lotado. Quando a caixa diz o valor total da compra, o cliente pede para ela esperar enquanto preenche um cheque, e deixa tudo
lá, por não ter condições de pagar por tudo o que comprou".
Para ele, "a própria guerra entre os supermercados vai abrir os olhos do povo. E, se
antes tínhamos 50 por cento ou mais de produtos importados, hoje nosso volume máximo é de 4 a 5 por cento. E nos produtos nacionais, estamos tendo
prejuízo com açúcar, arroz e café. Para podermos trabalhar sem prejuízo, a margem teria que ser de 12 por cento, e ainda assim não teríamos lucro.
Estamos trabalhando com três e meio por cento no açúcar e menos de oito por cento no café. Se mantemos esses produtos na linha, é mais por um favor
ao freguês".
"Muitas firmas deixaram de trabalhar com produtos importados devido aos constantes
roubos nas Docas, que a gente sabia acontecerem, mas não podia denunciar, vivia sob ameaças. Com os prejuízos, não interessava continuar. Por isso
eu quase parei. Continuo ainda com um pouco de bacalhau, azeite argentino e alguns vinhos. O resto, deixei de importar".
"A qualidade dos produtos brasileiros já é regular, e o povo já está se acostumando a
eles. Nosso vinho branco é muito bom, mas o vinho tinto, segundo me disse um produtor do Rio Grande do Sul, ainda não conseguimos igualar aos
importados".
Após quarenta anos dirigindo a casa, Fernando Martins pensa no que fará nos próximos
anos: "Talvez quando eu deixar a direção da casa, meus filhos queiram continuar. Mas vender eu acho que não vou conseguir, poucos se interessariam
em continuar o negócio".
Francisco Gonçalves, do Supermercado Eldorado, lembra que, "pessoalmente, embora
trabalhe há muitos anos no setor de produtos importados, quando compro para mim escolho os nacionais, que têm um padrão semelhante e são mais
baratos".
Ao Anjo Barateiro, que funcionava na Rua Itororó, 104
Foto: reprodução de A Tribuna de Santos, de 13/6/1982
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