"A notícia do milagre de Santo Antonio correu toda a cidade,
e o povo inteiro afluiu para o local da igreja"
Ilustração de José Wasth Rodrigues, publicada com a matéria
O milagre de Santo António do Valongo
NÃO FOI POSSÍVEL, À TURMA DE HOMENS QUE DEVIA DESLOCAR A IMAGEM DA IGREJA, ARRANCAR
O PEQUENO SANTO ANTÓNIO DE SEU NICHO
Da Santos de 1860, o caso de Santo António constitui uma
dessas coisas difíceis de admitir para a gente de 1939. Talvez porque já se tenha passado a idade dos milagres, como dizem, o que não impede que
essa mesma gente engula coisas piores, como "Santa de Coqueiros" et cohorte!
A verdade, porém, é que o fato milagroso que aqui se vai narrar, conhecido na tradição
como o "milagre de Santo António do Valongo", aconteceu, e aconteceu sob as vistas de gente alheia à religião, de membros da Maçonaria, de
operários, e de homens de cultura, incapazes de aceitar "coisas feitas" ou falsos fenômenos, trazendo, como conseqüência, fatos materiais de monta,
que concorrem para positivá-lo, dando-lhe um profundo e positivo cunho de veracidade.
A CONSTRUÇÃO DA ESTAÇÃO DA S.P.R.
Em 1860, era administrador da Recebedoria de Rendas da Província o irmão ministro da
Venerável Ordem de São Francisco da Penitência, Ordem que assistia e assiste no Convento de Santo António, o ilustrado santista major Francisco
Martins dos Santos, avô do nosso grande poeta Martins Fontes, homem culto, escritor, poeta e colaborador de
todos os jornais da terra.
Naquele ano, violentamente, e por ato aqui desconhecido, do Provincial do Rio de
Janeiro, o Convento e o cemitério público, que lhe ficava atrás, ambos pertencentes à igreja, foram vendidos à Companhia de Estrada de Ferro Santos
a Jundiaí, para que em seus terrenos fosse construída a futura estação dos trens, e que é a mesma que ainda hoje nos serve.
Sabedor da realidade, por intermédio do enviado do barão de Mauá, dr. João Hayden, que
na ocasião vinha saber quanto queria a Ordem para abandonar também a igreja e quanto lhe restava de terreno ali, o major Martins dos Santos,
revoltado, reuniu imediatamente, em sessão especial, todos os companheiros, conforme Ata que ainda hoje se lê no livro da Irmandade, pronunciando o
seguinte discurso, que serve ao mesmo tempo de comentário aprofundado ao ato do Provincial:
O DISCURSO DO MAJOR MARTINS DOS SANTOS
"Meus irmãos! - O desgosto e a indignação de que me acho possuído, me fazem talvez
exorbitar de minhas atribuições, como indigno Ministro desta Venerável Ordem, e me impelem a algumas reflexões em desabafo! Desculpai-me, pois!
"Quando os nossos maiores, que cuidavam mais da alma e da virtude, que de cifras com
números, com onerosos sacrifícios procuraram e conseguiram fundar este Templo, não anteviam, certamente, que viria um século que, pouco modesto e no
desvario da torrente em que se afoga, apelidar-se-ia o século das luzes, o qual, acérrimo sectário do gênio destruidor, se empenharia não só em
lançar um completo olvido a tantos e tão belos padrões de glórias, como a destruí-los desde seus alicerces, e profaná-los com impuro contato e
aplicação!
"Custa acreditar em tantas e tão rápidas degenerações de costumes! É bem doloroso
sentir-se o desprezo em que são votados os mais santos dogmas da religião de Cristo! Mas, a realidade existe e, desgraçadamente, a decepção aparece
e falam mais altos os interesses pessoais que as nossas crenças!
"A Empresa da Estrada de Ferro desta Província quer chamar a si, por compra ou
desapropriação, a nossa capela e seu edifício e dest'arte converter tão augusto e secular monumento em ostentosos armazéns e, quiçá, em luxuriosos
botequins e mil outras futilidades!
"Quer a Empresa, que poderia ser só grandiosa e útil, tornar-se vil instrumento de
profanação, estreando a sua obra por um semi-sacrilégio, aprovado pela ingratidão dos poucos frades franciscanos, que não imitam os Jaboatões, São
Carlos, Galvões e Mont'Alverne!
"Então teremos que assistir o revolver das cinzas venerandas dos nossos avós, para
sobre eles se deporem os carris da via férrea? (Ele se referia à memória dos realizadores e aos seus ossos, que
descansavam no corpo da capela).
"Teremos de ver os fragmentos sagrados do nosso templo, calcados pelo tacão da
indústria apadrinhada, sob o nome de civilização e progresso, em menoscabo da Santa Religião que professamos e do Império da Santa Cruz?!
"Nós, meus irmãos, fracos, tendo de lutar na arena com poderosos atletas, em luta tão
desigual, é certa a nossa derrota. Embora! Demais, é bela e preferível! E provará à Humanidade corrompida e abalada, que a virtude, quanto mais rara
mais brilho ostenta, e que os filhos de São Francisco, em Santos, fiéis ao seu preceito de honrar e conservar seu Templo e não de mercadejar e
aviltá-lo, não pactuarão com seus adversários, e não esquecerão os votos de adesão, respeito e culto, que juraram tributar-lhe, e se conservam
firmes no posto de honra que lhes cumpre guardar"
"Pleiteemos, palmo a palmo, e armados de arma legal, apelemos para os poderes supremos
do Estado, e confiemos pouco na justiça dos homens e muito na proteção de nossa Mãe Santíssima e Padroeira! Só no derradeiro transe, então, curvemos
a cerviz, com a convicção e o sossego do justo, como último protesto de vítimas sacrificadas em holocausto ao altar corrupto do século!".
O MOVIMENTO CONTRA AS PRETENDIDAS EXPROPRIAÇÕES
As palavras do varão santista ecoaram em toda a cidade, e solidariedades espoucaram de
todos os cantos, de toda gente, da Ordem ou não. Mauá já espoliara a memória de Frederico Fomm, espoliando, de parceria com
Monte Alverne, os direitos de sua viúva e, principalmente, a sua boa fé, fazendo ambos caducar privilégios adquiridos por lei de 1836, chamando a si
merecimentos e bens que não lhe pertenciam, em se tratando da primeira via férrea de São Paulo, e agora, não contente de sua obra, queria tirar a
Santos, de parceria com os ingleses compradores da nova concessão, um grande pedaço de sua tradição religiosa...
Como resultado daquela reunião, foi enviado a S. M. o Imperador um recurso da Ordem
Terceira de São Francisco, recurso que era, ao mesmo tempo, um libelo contra a monstruosidade que se pretendia praticar, com o apoio inconsciente do
Provincial do Rio de Janeiro... mas, enquanto isso, os operários, a soldo da Estrada de Ferro, e em cumprimento a ordens superiores, metiam a
picareta no velho convento, no grande lance da esquerda, demolindo-o em pouco tempo.
Passariam adiante, e começavam já a demolição da parte lateral da sacristia, ameaçando
a estabilidade da torre da igreja antiqüíssima. Muita gente assistia, comovida, à destruição da relíquia; tiniam de raiva impotente os santistas de
raça, e aí, no momento capital da tragédia, superando a força humana e o poder compressor do capital, empenhado em destruir uma das mais belas
criações do cristianismo, em Santos, operou-se a intervenção das forças invisíveis e transcendentais; realizou-se o milagre da fé, demonstrada nos
últimos períodos do Irmão Ministro.
O MILAGRE DE SANTO ANTÓNIO
Vieram os operários para retirar do lugar a pequenina imagem de Santo António. Eram
dois, e por mais força que fizessem, não a puderam arrancar do nicho. Poderia ela pesar cinco quilos, se tanto... e parecia pesar toneladas. Outros
homens vieram, e mais homens, e vieram turmas inteiras de operários, todos empenhados em arrancar dali a imagem teimosa... e nada... a todos
resistiu Santo António do Valongo!
Ajoelharam-se a seus pés aqueles homens rudes, broncos, de grossos músculos e calosas
mãos. Batiam no peito e alguns choravam.
Chamados os chefes do serviço e trazidas novas turmas, porque os outros se negavam à
profanação, ainda diante deles e dos engenheiros ingleses, as tentativas fracassaram. Santo António pequenino não saía do lugar, como não saiu!
Uma senhora inglesa, esposa de um dos engenheiros do serviço, de protestante que era,
converteu-se à Igreja Romana, pedindo que a aceitassem na Ordem.
A CAUSA DA IGREJA, ENFIM, VITORIOSA!
A notícia do milagre de Santo António correu toda a cidade, e o povo inteiro afluiu
para o local da igreja. Populares armados de paus, pedras, bengalas, e até de espingardas, atacaram os operários e chefes de serviço, travando luta
demorada e de graves efeitos, vencendo-os debaixo de vaias e assuadas.
Os potentados da Estrada tiveram que respeitar o pronunciamento de Santo António e do
povo, cabendo a este a vigilância da relíquia, em patrulhas organizadas espontaneamente e em ronda diurna e noturna, para evitar uma nova investida
criminosa e imprevista.
Meses depois, chegava a Santos o Aviso do Império n. 513, mandando entregar a igreja
do Convento de Santo António e seu acervo à guarda de quem tão bem soubera administrá-la e defendê-la, a benemérita Ordem de S. Francisco da
Penitência.
Ainda hoje lá está, ao lado da pequena imagem, uma bengala simbólica, que o visconde
de Embaré, santista ilustre, ofereceu à igreja, como perpetuação do fato e lembrança do escorraçamento dos profanadores. |