As atrizes Virgínia Vanni (à esquerda) e Margarida Rey (à direita), em Santos
Foto: arquivo pessoal, publicada com o texto
ARQUIVO ABERTO - Memórias que viram histórias
Teatro da minha memória
Santos, anos 1940
Isabel Teixeira
ALGUMAS HISTÓRIAS familiares podem se perder se não forem conservadas. No meu
caso, esse perigo é iminente, pois grande parte da minha família materna já morreu. Das histórias que ouvi, muitas trazem minha interpretação
pessoal. Talvez a cronologia esteja fora do eixo ou os lugares tenham se embaralhado criando uma nova geografia, mas na memória corre o sangue de
quem vive. Então, assim foi.
Maria de Lourdes era minha avó e Margarida, minha tia-avó. Ambas moravam em Santos e
eram filhas de dona Nena. Maria de Lourdes começou a estudar piano aos 5 anos e aos 16 se destacava no conservatório pelo seu talento e beleza.
Não demorou muito para que Miroel Silveira (o responsável pela descoberta de
Cacilda Becker) voltasse sua atenção para a bela pianista. Foi a convite dele que, por volta de 1946, minha avó
veio para São Paulo e se juntou ao grupo Os Comediantes, assumindo o nome artístico de Virgínia Vanni. Dona Nena só deixou a filha partir com uma
condição: que sua irmã Margarida a acompanhasse.
Da passagem de Virgínia Vanni pela companhia dos Comediantes só restou uma foto, onde
ela aparece ao fundo com um grande sorriso, entre Cacilda Becker, Miroel Silveira e Ziembinski. Conta a lenda familiar que Virgínia havia se
apaixonado por um homem belíssimo do meio teatral. Pouco tempo depois, descobriu que além dela, ele namorava um outro rapaz. Minha avó, ressentida,
resolveu abandonar o que havia vivido até ali e nunca retornou ao teatro. Casou-se em 1949 com o jornalista Moacyr Correa, que a presenteou com um
piano Steinway de armário que agora descansa na minha sala.
Enquanto isso, Margarida já havia saltado da platéia para o palco, onde fez história
usando outro sobrenome: Rey. Margarida Rey estreou como atriz em 1947, no espetáculo A Rainha Morta, sob a direção de Ziembinski, e seguiu
carreira emendando uma peça na outra até o fim da vida. Trabalhou em importantes companhias das décadas de 1950 e 1960, como a Companhia
Tônia-Celi-Autran.
Sobre sua interpretação em A Ilha das Cabras, de 1958, o crítico Décio de
Almeida Prado escreveu: "Margarida Rey tem o maior desempenho de sua carreira. Embora contracenando com três bons atores, esmaga-os com sua
sobriedade, a sua força autêntica e profunda, a sua impecável dignidade. Margarida sempre foi uma excelente atriz, mas ascende agora ao rol,
muitíssimo restrito, das grandes atrizes".
De tanto especular sobre sua vida e trabalho, consigo ter na memória imagens em
movimento de suas atuações. Margarida tinha personalidade marcante, talento nato para personagens dramáticos e uma voz imponente (é dela a voz da
cobra na gravação de Paulo Autran para O Pequeno Príncipe).
Em conversas informais com atores e diretores que tiveram contato com ela, vim a saber
que foi a primeira mulher homossexual assumida do teatro. E que, infelizmente, bebia um pouco além da conta, o que nunca diminuiu seu brilho em
cena, mas lhe custou uma morte prematura m 1983.
Virgínia Vanni voltou a ser Maria de Lourdes. O único que a chamou pelo nome artístico
até o fim da sua vida, em 2005, foi meu avô. Virgínia teve três filhos e cinco netos. Dedicou-se quase que inteiramente a todos nós. Enfeitou minha
infância com oficinas de fazer bolos, aulas de piano, recitais, teatro de fantoches e árvores de Natal gigantescas, montadas sempre no começo de
dezembro e enfeitadas com 24 chocolates, um para cada dia até o Natal. Minha avó dançava para mim no quintal, leve e ainda linda, com gestos largos
e uma altivez digna de estrela de cinema da década de 1950.
Sempre que estou prestes a entrar em cena, cumpro um pequeno ritual: falo para mim
mesma um trecho do poema de Dylan Thomas, Em Meu Ofício ou Arte Taciturna, piso no palco com o pé direito e faço reverência a Margarida e
Virgínia, minhas atrizes preferidas, que vivem e sobrevivem no teatro da minha memória. |