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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - TEATROS
Nossos primeiros teatros (12)

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Texto publicado no caderno Ilustríssima, do jornal paulistano Folha de São Paulo, em 27 de fevereiro de 2011 (página 7):


As atrizes Virgínia Vanni (à esquerda) e Margarida Rey (à direita), em Santos

Foto: arquivo pessoal, publicada com o texto


ARQUIVO ABERTO - Memórias que viram histórias

Teatro da minha memória

Santos, anos 1940

Isabel Teixeira

ALGUMAS HISTÓRIAS familiares podem se perder se não forem conservadas. No meu caso, esse perigo é iminente, pois grande parte da minha família materna já morreu. Das histórias que ouvi, muitas trazem minha interpretação pessoal. Talvez a cronologia esteja fora do eixo ou os lugares tenham se embaralhado criando uma nova geografia, mas na memória corre o sangue de quem vive. Então, assim foi.

Maria de Lourdes era minha avó e Margarida, minha tia-avó. Ambas moravam em Santos e eram filhas de dona Nena. Maria de Lourdes começou a estudar piano aos 5 anos e aos 16 se destacava no conservatório pelo seu talento e beleza.

Não demorou muito para que Miroel Silveira (o responsável pela descoberta de Cacilda Becker) voltasse sua atenção para a bela pianista. Foi a convite dele que, por volta de 1946, minha avó veio para São Paulo e se juntou ao grupo Os Comediantes, assumindo o nome artístico de Virgínia Vanni. Dona Nena só deixou a filha partir com uma condição: que sua irmã Margarida a acompanhasse.

Da passagem de Virgínia Vanni pela companhia dos Comediantes só restou uma foto, onde ela aparece ao fundo com um grande sorriso, entre Cacilda Becker, Miroel Silveira e Ziembinski. Conta a lenda familiar que Virgínia havia se apaixonado por um homem belíssimo do meio teatral. Pouco tempo depois, descobriu que além dela, ele namorava um outro rapaz. Minha avó, ressentida, resolveu abandonar o que havia vivido até ali e nunca retornou ao teatro. Casou-se em 1949 com o jornalista Moacyr Correa, que a presenteou com um piano Steinway de armário que agora descansa na minha sala.

Enquanto isso, Margarida já havia saltado da platéia para o palco, onde fez história usando outro sobrenome: Rey. Margarida Rey estreou como atriz em 1947, no espetáculo A Rainha Morta, sob a direção de Ziembinski, e seguiu carreira emendando uma peça na outra até o fim da vida. Trabalhou em importantes companhias das décadas de 1950 e 1960, como a Companhia Tônia-Celi-Autran.

Sobre sua interpretação em A Ilha das Cabras, de 1958, o crítico Décio de Almeida Prado escreveu: "Margarida Rey tem o maior desempenho de sua carreira. Embora contracenando com três bons atores, esmaga-os com sua sobriedade, a sua força autêntica e profunda, a sua impecável dignidade. Margarida sempre foi uma excelente atriz, mas ascende agora ao rol, muitíssimo restrito, das grandes atrizes".

De tanto especular sobre sua vida e trabalho, consigo ter na memória imagens em movimento de suas atuações. Margarida tinha personalidade marcante, talento nato para personagens dramáticos e uma voz imponente (é dela a voz da cobra na gravação de Paulo Autran para O Pequeno Príncipe).

Em conversas informais com atores e diretores que tiveram contato com ela, vim a saber que foi a primeira mulher homossexual assumida do teatro. E que, infelizmente, bebia um pouco além da conta, o que nunca diminuiu seu brilho em cena, mas lhe custou uma morte prematura m 1983.

Virgínia Vanni voltou a ser Maria de Lourdes. O único que a chamou pelo nome artístico até o fim da sua vida, em 2005, foi meu avô. Virgínia teve três filhos e cinco netos. Dedicou-se quase que inteiramente a todos nós. Enfeitou minha infância com oficinas de fazer bolos, aulas de piano, recitais, teatro de fantoches e árvores de Natal gigantescas, montadas sempre no começo de dezembro e enfeitadas com 24 chocolates, um para cada dia até o Natal. Minha avó dançava para mim no quintal, leve e ainda linda, com gestos largos e uma altivez digna de estrela de cinema da década de 1950.

Sempre que estou prestes a entrar em cena, cumpro um pequeno ritual: falo para mim mesma um trecho do poema de Dylan Thomas, Em Meu Ofício ou Arte Taciturna, piso no palco com o pé direito e faço reverência a Margarida e Virgínia, minhas atrizes preferidas, que vivem e sobrevivem no teatro da minha memória.