Oswaldo Justo
Foto: arquivo A Tribuna, 17/9/1995
Suplício
dos prefeitos
Oswaldo Justo (*)
Colaborador
Durante o tempo em que fui prefeito, procurei sempre ter
uma visão global dos problemas, estabelecendo prioridades e verificando de que forma poderia melhor aproveitar o tempo. O meu mandato foi de quatro
anos e alguns meses, ao contrário dos demais prefeitos eleitos àquela época e que cumpriram mandatos de seis anos.
Como não era possível prorrogar o mandato e ele se findaria rigorosamente ao cabo de
quatro anos, a fórmula encontrada foi a de dilatar o horário de trabalho. Começando a trabalhar a partir das 5 horas da manhã eu estava,
automaticamente, aumentando as minhas horas no cargo de prefeito. E assim foi feito até o final.
Sempre gostei da madrugada e como prefeito descobri outros encantos nesse início dos
dias. Encontrava aqueles que haviam terminado o turno da noite, encontrava boêmios, encontrava uma grande legião de jovens que trabalhavam na
Capital e ABC. Encontrava alguns em bairros distantes, encontrava os que curtiam a ressaca de uma noitada e muitos gatos, cachorros e urubus.
As madrugadas são muito importantes no decorrer da vida. Os amantes e os
revolucionários sempre tiveram na madrugada o seu grande estímulo. Uma grande vantagem que também me oferecia a madrugada consistia no fato de que
não encontrava o desocupado, o chato que gosta de grudar no prefeito oferecendo planos, fórmulas pra resolver todos os problemas.
Aliás, dentre tantos problemas que exigiam solução havia um com o qual eu não
conseguia me harmonizar: as audiências. Todos os dias chegavam dezenas de pedidos de audiência. Audiências e mais audiências. Aquilo me causava
grande aflição e até angústia, pois eu precisava de tempo para correr a Cidade, conferir os serviços que havia determinado aos secretários,
conversar com os moradores, saber enfim das coisas sem a participação dos agentes do governo. Quanta coisa eu descobria, quanta coisa eu via no
andar pela Cidade.
Com um gravador de bolso registrava as observações e, ao chegar à Prefeitura, uma
secretária transformava em ordem de serviço as ocorrências que verificava. Era uma árvore caída, era um animal morto, um monturo de lixo, um ônibus
quebrado, os problemas, enfim, diários de uma cidade. Tudo feito pela madrugada. E o melhor: nessas ocasiões, ninguém me pedia audiência.
Mas, por outro lado, ao chegar à Prefeitura, a chefia de gabinete me informava sobre
os pedidos de audiência. Sempre 20, 30 ou mais. A lista de pedidos de audiência já chegava a quase 200.
A solução era atender, o dia todo, a partir das 10 horas. No dia seguinte, começa o
atendimento às audiências. Entra o primeiro:
- Bom dia, o que o senhor deseja?
- Prefeito, a minha filha é uma sumidade. Todos gostam dela na escola, é a primeira da
classe, uma boa moça, educada, trabalhadora.
- Muito bem, mas qual é o problema?
- É que ela fez um concurso, foi aprovada, mas não foi chamada.
- Mas qual foi a classificação que ela obteve? Quantas vagas existiam?
- Eu não sei, prefeito, Só sei que ela passou e não é por ser minha filha, mas ela é
muito inteligente. O senhor precisa ver, até parece um Rui Barbosa.
- Bem, vou saber o que houve. Vou telefonar para a empresa onde ela faz o concurso.
Logo, veio a resposta: "Olha, só existiam duas vagas e sua filha foi classificada em
145º lugar. Infelizmente..."
Entra a segunda audiência: "Prefeito, eu preciso de uma casa, não tenho onde morar".
- Mas a prefeitura não tem casa.
- Pode ser um terreno, também serve.
- Mas a Prefeitura não tem terreno.
- Prefeito, pode ser um terreninho de segunda mão, também serve.
- Lamento...
Entra a terceira audiência: "Prefeito, eu preciso de um emprego, estou desempregado,
serve qualquer coisa: porteiro, ajudante, segurança. Pelo amor de Deus, eu preciso".
- Bem, se você quiser, o seu caso está resolvido. Você vai ganhar três salários, não
vai pagar aluguel e terá legumes, verduras, frutas, leite, tudo de graça. Tá bom?
- Mas é claro. Meu Deus, o senhor é o melhor prefeito do mundo, muito obrigado. Quando
eu começo? Estou louco para trabalhar.
- Amanhã, sábado. Eu te pego às 6 horas da manhã e vamos ao meu sítio.
- Como? Não é na Prefeitura?
- Não, é no meu sítio.
- Desculpe, prefeito. Mas eu tenho tudo quanto é bico, de papagaio e outros mais. Não
posso aceitar.
Assim transcorreu o dia até quase 23 horas. Somente alguns presidentes de sociedades
de melhoramentos de bairros, empresários e comerciantes foram tratar de assuntos da comunidade.
Ao final do expediente, disse à chefe do gabinete: "Eu preciso encontrar uma solução
para este problema, pois se continuar assim não governo e fico o dia inteiro neste gabinete".
Fui para casa levando mais uma infinidade de pedidos de audiência e pensando:
"Enquanto não resolver este problema não vou ter sossego. Como prefeito não posso negar os pedidos de audiência. Se concedo as audiências, não
consigo governar. Não adianta mandar para os secretários, pois só querem falar com o prefeito".
Mas um dia, andando pela João Pessoa, um comerciante me abordou: "Justo, preciso falar
com você, nem que seja de madrugada". Logo pensei, está aí a solução. Na Prefeitura, a lista de pedidos de audiência novamente já chegara a uma
centena.
Disse, então, à chefe do gabinete: "A partir de amanhã, vamos atender às audiências,
mas a partir das 5 horas da manhã. Mande avisar as pessoas".
Começaram as ligações: "A sua audiência será amanhã às 5 horas".
- Muito obrigado, agradeça ao prefeito. O horário é ótimo, pois tenho um compromisso
às 4 horas no banco e depois vou ao Paço.
- "Um momento", disse a secretária. "A audiência é às 5 horas da manhã".
- Não é possível, esse prefeito é louco. Eu não vou.
Resultado: do total de quase 100 pedidos de audiência, compareceram apenas 14. Com
isso, limpei a pauta sem negar nenhuma audiência. É verdade que fiz alguns inimigos, mas em compensação continuei a fazer a minha ronda pela Cidade
e pude, afinal, governar.
(*) Oswaldo Justo é deputado estadual pelo PMDB
e ex-prefeito de Santos. |