Meio século de República
Luís Silveira
Para A Tribuna
As revoluções democráticas no Brasil foram influenciadas
pelas conquistas liberais de fins do século XVIII, no continente europeu. Os jovens brasileiros que estudavam em Portugal e em outros países
acompanharam com o maior interesse as grandes lutas pela liberdade de pensamento e a repercussão que elas tinham nos países da América do Sul, que
romperam os laços coloniais, transformando-se em democracias independentes.
A Inconfidência Mineira recebeu fortemente a inspiração dos países triunfantes,
consagrando as legítimas aspirações de liberdade e outorgando os direitos do homem. As forças mentais que formataram essa conjuração republicana
foram educadas nas escolas superiores da Europa.
Relembrar os pródromos da Proclamação da República do Brasil, na data do seu
cinqüentenário, é fazer também a história de Santos, cujos filhos ilustres defenderam sempre os anseios de independência e liberalismo, que animaram
por tantos anos o pensamento nacional. A terra santista foi um ninho de infatigáveis e corajosos construtores da nacionalidade e impertérritos
lutadores em prol dos direitos garantidores da livre ação do homem.
Se Bartolomeu de Gusmão deu ao mundo os meios de praticar a navegação aérea, outros
filhos eminentes desta abençoada terra tiveram influência decisiva na independência da Pátria, na redenção dos escravos e na propaganda republicana,
manifestações de elevados sentimentos cívicos, animando a alma de um povo que se formava e que estava destinado a gloriosos feitos da história do
universo.
Pedro Calmon, com a sua fulgurante inteligência e
sólidos conhecimentos de historiador, falando no nosso Instituto Histórico, teceu um poema encantador a propósito da influência de Santos na
civilização do Brasil. Não somos, pois, regionalistas reivindicando para nós a comparticipação valorosa de insignes santistas nos fastos gloriosos
da Pátria.
***
A publicação do notável manifesto político de 3 de
dezembro de 1870 robustece os ideais republicanos, dando origem à formação, em quase todo o Brasil, de núcleos propagadores da democracia. Esse
notável documento, redigido por Quintino Bocayuva, Saldanha Marinho e Salvador de Mendonça, cerrou as fileiras democráticas para o ataque ao regime
monárquico, abalado pela desorganização dos partidos existentes e gravíssimos erros políticos dos últimos ministérios do segundo império.
A famosa questão militar, provocada pela censura de dois oficiais, que gozavam de
incontestável prestígio nas classes armadas - os coronéis Cunha Mattos e Senna Mendonça - por que haviam protestado contra acusações feitas ao
Exército na Câmara dos Deputados, esse ato do governo abalou profundamente o espírito dos grandes mentores dos quartéis. O marechal Deodoro da
Fonseca, vulto venerado pelas tropas e oficialidade, pela pureza de seus sentimentos, declarou-se solidário com os oficiais punidos, atitude que
colocou o governo em grandes dificuldades. Operou-se, então, a aproximação do Exército dos elementos civis que pugnavam pelo ideal republicano,
facilitando a revolução de 15 de novembro de 1889.
Campos Salles afirmou que o Exército não se colocou ao lado dos revolucionários
democratas por um simples despeito, como pretendem adversários da República, para derrubar o Segundo Império. O que se deu foi "a
harmonia de fatores, não obstante a própria diversidade da natureza de cada um deles, para o fim comum".
Por outro lado, Benjamim Constant, caráter impoluto e inteligência dotada de cultura
superior, era o apóstolo da mocidade militar que o adorava. De tal sorte a vitória republicana foi conseqüência da obra tenaz e corajosa da
propaganda alimentada pelos núcleos liberais que surgiram com a Inconfidência Mineira e que o regime dominante, tanto no tempo colonial como no
primeiro e no segundo império, não conseguiram jamais extinguir.
As forças republicanas arregimentaram-se depois do manifesto de 1870, que declarou
formado no país um partido para falar aos brasileiros, realizando uma obra de patriotismo, para a qual aceitaria o concurso leal de todos,
repudiando a solidariedade de interesses ilegítimos: "Somos da América e queremos ser americanos".
Deram extraordinário prestígio ao manifesto as assinaturas de eminentes políticos, de
larga projeção na vida social do Brasil. Saldanha Marinho, Lafayette Pereira, Quintino Bocayuva, Christiano Ottoni, Eduardo Salomonde e tantos
outros nomes ilustres deram a sua solidariedade às idéias da proclamação de 1870.
A seguir reuniu-se a Convenção de Itu, em 18 de abril de 1873, com a presença de
representantes prestigiosos das classes conservadoras da província, notadamente a da lavoura, a maior força econômica existente e que tinha sido
criada pelo gênio dinâmico da gente paulista, a mesma que, heroicamente, alargara o território pátrio, com as cruzadas bandeirantes, e formara o
Brasil independente, dirigido por um povo livre.
A memorável assembléia foi presidida por João Tibiriçá Piratininga, cientista ilustre
e adiantado agricultor em Indaiatuba, município onde não havia monarquistas. Ao lado desse emérito paulista estiveram Américo Brasiliense,
Bernardino de Campos, Américo de Campos, Rangel Pestana, Campos Salles, Cesário Motta Júnior, José Vasconcellos de Almeida Prado e seu irmão Carlos,
Antonio F. Paula Sousa, Francisco Glycério, Martim Francisco, Manoel de Moraes Barros, José Luís Flaquer, Francisco de Paula Cruz, Ignácio Mesquita,
Francisco E. da Fonseca Pacheco, Antonio Carlos C. da Silva Telles, Gabriel de Toledo Piza e Almeida e tantos outros elementos propagandistas da
província.
Revestiu-se de excepcional solenidade a assembléia de Itu, cujas deliberações ecoaram
por todo o Brasil, conclamando os espíritos para a campanha liberal, que culminaria com a implantação do regime republicano federativo.
Pedro Calmon declara, na sua História da Civilização Brasileira, que a força
dos republicanos civis, realmente, era ainda de pouca valia, exceção feita dos seus pujantes arraiais de São Paulo, onde, desde 1872, vinte e um
jornais lhes propagavam as idéias e à frente destes estavam homens de real prestígio intelectual e social.
A Convenção de Itu foi mais uma afirmação da coragem dos propagandistas de São Paulo.
Na expressão de Washington Luís, o conclave "nasceu serenamente da convicção forte, em que estavam homens de todas as
idades e de todas as classes, de que o Brasil só encontraria a sua forma definitiva de governo numa república democrática federativa. Foi ao claro
sol brasileiro, em plena luz meridiana, diante do povo, com o conhecimento amplo das autoridades, que se fez a Convenção de Itu, com a qual os
republicanos paulistas se organizaram para o novo regime que viria dentro de alguns anos. Ela realça esplendidamente as características do gentio
paulista: a iniciativa tenaz, o tranqüilo espírito das realizações, a lealdade inquebrantável.
"O resultado imediato da Convenção foi a reorganização dos clubes republicanos
existentes em diversos municípios e a intensificação dos trabalhos da propaganda e das quais Silva Jardim, com a sua oratória vigorosa e
convincente, foi uma força poderosa. Benjamin Constant, referindo-se ao valor mental do fogoso tribuno, declarava ser ele 'um
homem perigoso'. 'Dez iguais a ele', confirmava Rangel
Pestana, 'e teríamos a proclamação imediata da República'".
Durante o período de 1873 a 1889, os republicanos foram incansáveis na conquista de
prosélitos para os seus credos. Tomaram parte em eleições provinciais e gerais e, por vezes, alcançaram significativas vitórias, enviando ao Rio
delegados de estatura moral de Prudente de Morais e Campos Salles, e à assembléia provincial vultos eminentes do novo partido, como Martinho Prado,
Cesário Motta Júnior, Moraes Barros e outros. Entre os candidatos figuravam também Américo Brasiliense, Luís Pereira Barreto, Rangel Pestana, José
Silveira Bulcão e outros propagandistas.
Na campanha abolicionista, na qual Santos teve marcada preponderância, concentração
que foi dos escravos perseguidos e que se tornavam livres ao pisarem o chão do município, nessa luta humanitária os republicanos tomaram parte
ativa. Além de Santos, diversos outros municípios decretaram a libertação dos escravos: Itatiba, a histórica cidade seiscentista, reuniu nas praças
públicas a sua edilidade e proclamou a liberdade do negro.
E assim prosseguiram as lutas liberais até 1889. Em 11 de junho desse ano, o gabinete
Ouro Preto, formado para reagir contra as idéias democráticas e preparar o Brasil para receber o terceiro império, com a princesa Isabel no trono,
apresentou-se à Câmara, sendo recebido com demonstrações entusiásticas de hostilidade. Aos republicanos aliaram-se elementos dos partidos
monárquicos desorganizados: o conservador, liberal, progressista, histórico e radical, mas formados com elementos descontentes de outros e quase
todos digladiando-se continuamente.
Essa união transformou a sessão da Câmara numa convenção revolucionária, na qual se
ouviram gritos de "Viva a República!", "Abaixo a monarquia!",
proferidos pelo intrépido padre João Manoel, com aplausos gerais. A impressão deixada no espírito dos elementos ponderados do parlamento era de que
os dias do império estavam contados.
Abreviou a vitória republicana o descontentamento das classes militares, sob a
opressão do governo, que perdera a confiança no exército.
Foi sob esse ambiente que surgiu a aurora do dia 15 de novembro e, com ela, o triunfo
integral dos republicanos. O povo não esperava tão rápida transformação política e, di-lo Aristides Lobo, que, então, escrevia para o Diário
Popular, de São Paulo, assistiu o desenrolar da revolução "completamente bestificado".
O Brasil pensante aspirava sinceramente a mudança política pregada pelos democratas,
mas, venerando, como venerava, o seu imperador, aguardava a sua abdicação ou o seu desaparecimento, para operar a transfiguração da fisionomia
social da nação. Daí porque a parada militar do campo da Aclamação causou a maior surpresa. Não se ouviu um só grito pela República, até o momento
em que Sampaio Ferraz, subindo a uma tribuna improvisada, diante da tropa formada, conclamou os soldados a aderirem à República:
"O sol que ilumina estes canhões hiantes, estas espadas
limpas de sangue, não se esconderá atrás de nossas montanhas, no seu ocaso, sem que primeiro se resolva a empolgante mudança do regime político do
Brasil. Soldados! Peço me acompanheis num brado uníssono e vitorioso: Viva a República!"
O marechal Deodoro pediu ao ardoroso orador que não falasse demais, pois ainda não era
chegado o momento decisivo da revolução, que se processava sem maiores incidentes. Apenas o barão de Ladário, ex-ministro da Marinha, reagira,
disparando alguns tiros de revólver contra um ajudante de ordens de Deodoro, sem conseqüências funestas, felizmente.
E, de tal modo, se fez a República, cujos primeiros tempos foram agitadíssimos.
D. Pedro II não quis reagir, e muitos afirmam até
que recusou sugestões de amigos dedicados para tentar um contragolpe, para o que contaria com valiosos elementos. Curvou-se o saudoso imperador,
diante dos desejos da maioria da nação. No dia seguinte, a bordo do Alagoas, partiu, banido da pátria que ele tanto amara.
***
Os primeiros governos republicanos tiveram que
enfrentar gravíssimos problemas e sérias perturbações da ordem pública. Deodoro, amargurado com as desilusões do poder, teve sacrificada a sua
saúde, já bastante combalida. Dissentiu de velhos camaradas e amigos e foi levado a dissolver o Congresso, ato que provocou reação entre os melhores
elementos que sustentavam o seu governo. Seguiram-se revoluções, que teriam comprometido o novo regime, se não tivesse havido a agremiação de
valorosos elementos em defesa do poder constituído.
Floriano consolidou a República, graças ao concurso desses elementos, entregando o governo
ao primeiro presidente civil, Prudente de Morais, que realizou a pacificação geral do país e iniciou a obra de regeneração financeira, obra
completada, com a abnegação de um crente, por Campos Salles.
No terceiro quadriênio coube ainda a São Paulo dar o presidente da República.
Rodrigues Alves operou a transformação geral do porto e da capital da República, que é, hoje, a Cidade Maravilhosa, inteiramente saneada por
Oswaldo Cruz, uma das maiores glórias científicas do nosso continente.
No último quadriênio da República velha, teve ainda São Paulo um seu delegado,
Washington Luís, à frente do governo da Nação. As suas realizações confirmaram os méritos da escola administrativa paulista, contribuindo para a
grandeza e glória do Brasil unido. O eminente político promoveu, como já havia feito em S. Paulo, a abertura de modernas rodovias no Distrito
Federal e em diversos Estados, completando também o embelezamento do Rio de Janeiro.
Resumindo este esboço histórico da República, reconhecemos que, tanto na primeira fase
republicana, como neste último decênio, os esforços dos governantes têm sido orientados no sentido de se fazer com que o Brasil acompanhe o ritmo da
civilização dos povos mais adiantados em conquistas sociais, sob os princípios do cristianismo, que tem influenciado a formação de grandes e
poderosas pátrias. |