Antônio Nunes (*)
Nome mesmo, o Morro só tinha no início de sua subida, até o
local onde os beneditinos, em 1650, se instalaram e ergueram uma pequena igreja que depois viria a ser mosteiro, em terras que lhes foram doadas por
Isabel Barbosa, viúva de Bartolomeu Fernandes Mourão - terras essas que eram da fazenda ou sítio do Desterro. O resto era mato, mato fechado, que
servia para refúgio de escravos e que aos poucos se ia povoando. Do mato, os primeiros moradores que ali chegaram tiravam não apenas a madeira
necessária aos seus casebres, mas também, de vez em quando, alguma caça com que melhoravam o passadio.
O caminho que demandava a elevação nada mais era que uma vereda, especialmente depois do portão do Mosteiro,
templo no qual, em alguns domingos, se realizava missa que atraía os habitantes das redondezas - que, por sua pobreza, não freqüentavam o Convento
de Santo Antônio do Valongo, então tido e havido como igreja de gente bem. Os que iam à missa de São Bento eram modestos trabalhadores dos
trapiches, os primeiros habitantes do Morro.
Isso ocorria lá pelo ano de 1885.
A campanha abolicionista atingia seu ponto de saturação. Santos era conhecida como reduto antiescravagista de
destaque, devido à ação de Santos Garrafão e Quintino de Lacerda, que tinham seu quartel-general no Jabaquara. A vereda do Morro, que tinha no sopé
o mosteiro dos Beneditinos, era um dos caminhos preferidos pelos escravos que desciam a Serra em busca da terra da caridade e da liberdade...
Dona Maria, a mais antiga habitante do Morro de São Bento
Foto: Almanaque de Santos-1972
Foi por essa época que ela foi para o Morro.
Subiu para o mato em companhia da mãe, preta-mina que era das mais bonitas entre suas iguais, e do pai, que não
chegou, praticamente, a ser escravo porque era filho de mucama que fora o xodó do senhor. Eram então uma família feliz. O pai, jovem e cheio de
saúde, enfrentava todo e qualquer trabalho para provar que não era por ser escuro que se adaptaria à malandragem, e o café já dava bom dinheiro aos
que quisessem manuseá-lo.
Tinha dois ou três anos. Entretanto, lembra-se ainda de que se assustou com o mataréu ao redor do local escolhido
para o levantamento da moradia, de início imenso barracão erguido com madeirame tirado do próprio Morro. A vida era difícil. O trabalho contínuo e
estafante, pouco tempo deixava ao pai, que, assim mesmo, não descurava da família - que, além da companheira e dos filhos, ainda contava com um
irmão mais moço.
O tempo foi correndo.
Veio a Abolição. Ela tinha, então, pouco mais de 5 anos e apenas se recorda, vagamente, da alegria dos pretos que
freqüentavam o casebre como amigos que eram do então jovem Vicente, seu pai. Confundiu, depois, o advento da libertação de seus irmãos com a
proclamação da República, e só mais tarde é que pôde discernir uma coisa da outra, e então se tornou admiradora incondicional da Princesa Isabel, a
Libertadora.
E a vida continuava.
O Morro, com a evolução do nosso porto, foi sendo o local preferido pelos trabalhadores da estiva e dos armazéns
de café que iam aparecendo pelas ruas de Santo Antônio, dos Curtumes (que já era de São Bento), do Carmo, dos Quartéis da Penha e de São Leopoldo. O
pai transformou-se, juntamente com o irmão, em ensacador e doqueiro, e o Morro foi sendo povoado. Já agora por imigrantes vindos da Ilha da Madeira,
em busca de novos horizontes e de local onde, com o vigor sempre demonstrado em sua terra, iriam contribuir para a expansão de Santos.
Já então o Morro era conhecido como de São Bento, e, quiçá por apresentar características idênticas aos
alcantilados da "santa terrinha", era o preferido dos ilhéus...
Eles, porém, os desbravadores, a família de Vicente Joaquim dos Santos, continuavam no mesmo lugar em que se
haviam estabelecido ao chegarem ali, quando tudo ao redor era mata virgem...
E a moça Maria foi ficando.
Aquilo era seu mundo. O Morro era seu reduto. Nada mais conhecera, até então, senão o solo desbravado pelo pai,
que, qual autêntico líder, conquistara com suor os poucos palmos de terra que julgava mais que suficientes para si e para os seus.
O jovem Vicente não era ambicioso. Acreditava piamente na Justiça e, por saber que aquele solo ainda não tinha
dono, dele apossou-se mansa e pacificamente, sem se preocupar em tomar mais do que lhe era preciso para viver como bom e honesto trabalhador.
E o Morro evoluiu.
E a Maria casou e, dos seus casamentos, teve vários filhos, três dos quais ainda estão vivos e orgulhosos da
genetriz que tiveram.
Sua velha casinha ainda é a mesma. E talvez seja a última das casas de madeira do Morro de São Bento coberta de
zinco. Mas, queiram ou não os que sorriem ao vê-la pobre e modesta, quase esmagada pelos prédios que lhe surgiram ao redor, a ela cabe a glória de
ser atualmente a mais velha moradia do Morro e, ainda, a satisfação de, em determinada época, ter servido de escola primária. De fato, em uma de
suas salas, um jovem idealista, aproximadamente há uns 35 anos (N.E.: 1937...), propôs-se a ensinar crianças ou adultos a ler, escrever e mesmo a
conhecer o que temos de grande em nossa História.
E o Morro foi evoluindo.
E D. Maria, impassível e sorridente, foi vendo a evolução, sem lhe dar muita atenção. O que lhe satisfazia era ver
os filhos crescerem honestos e trabalhadores, e ter ao lado o pai, já idoso e agora pescador de saborosos robalos que, ou eram vendidos ainda
estrebuchando, ou iam para a panela da família...
Isso foi assim até que, um dia, soube de uma estranha nova!
O terreno que haviam desbravado. Que haviam ocupado mansa e pacificamente no Morro desde quando este não tinha
nome nem proprietário, era de outro dono! Seus palmos de terra. Sua fonte de água límpida. Suas bananeiras. Não eram seus! Se quisessem continuar
morando ali, desbravadores tinham, pura e simplesmente, de comprar o solo que haviam tomado há mais de 50 anos!
Era a ação criminosa da grilagem. Ação que, por inacreditável que possa parecer, tomou de assalto todas as terras
dos morros e em alguns deles continua sendo sério problema.
Mas D. Maria, o marido Jonas, e o Velho Pai, com a mansuetude dos bons e dos pacíficos, a tudo se submeteram e
viram, passivamente, o modesto lote de terra que lhes pertencia, ser disputado por outros mais felizes, que - por terem sabido melhor explorar os
moradores do Morro - estavam em condições de adquirir as melhores porções... E o pedaço de terra onde morava a família do pescador era, sem dúvida
alguma, dos melhores.
Depois morreu seu Vicente, no mar, numa pescaria. E logo a seguir foi a vez de Jonas, o marido. Atualmente, D.
Maria vive em companhia do irmão, pouco mais novo que ela. A casa é a mesma. Ao lado, um dos filhos ergueu um prédio, e nos fundos de seu lote o
caçula também fez uma casinha.
E D. Maria, com seus quase 90 anos, sobre ser a mais velha habitante do Morro de São Bento, possui ainda a glória
de ser a única moradora que, tendo a ele chegado com pouco mais de 2 anos, nunca abandonou seu casebre. Além disso, aos 11 anos de idade, assistiu
ao aparecimento de A Tribuna - acontecimento que relembra com dificuldade, pois pouco vinha à Cidade, e nesse tempo jornal no Morro era coisa
rara.
Atualmente, rodeada dos filhos e netos, e do irmão Marcílio, vive a vida dos velhos que souberam passar pelo Mundo
sem outra preocupação que a de fazer o bem ao próximo, sempre que possível. E sorrindo, satisfeita com o progresso do Morro que ajudou a desbravar -
e que, todos afirmam, ser agora a Cidade Alta de Santos -, ela espera o dia em que se reunirá aos que se foram antes dela, que continua com suas
costurinhas, seus bordados e sua prosa mansa e gostosa...
(*) Antônio Nunes publicou este artigo na edição 1972 do
Almanaque de Santos, editado por Olao Rodrigues e impresso em Santos.
Fonte São Bento, no final da Escadaria Santa Mônica,
construída na década de 1920 pelos fundadores da Vila de São Bento
Foto: jornal A Tribuna de Santos, em 22/4/1980
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