UM BAIRRO COM CADEIRAS NAS CALÇADAS - Crianças jogando bola e
pulando corda em ruas tranqüilas. Não, a cena não se passa em nenhuma cidade do interior e nem retrata fatos de outras décadas. A época é a atual
e essa é a realidade do Jardim Santa Maria, na Zona Noroeste de Santos. Lá, ao cair da tarde, ainda é comum homens e mulheres colocarem cadeiras
na porta para um bate-papo diário.
Imagem: reprodução parcial da primeira página de A
Tribuna de 5/7/2010
Onde o tempo passa com calma
Moradores superaram grandes enchentes, estouros de boiadas e agora desfrutam
da tranqüilidade, infra-estrutura e boa convivência
Viviane Pereira
Da Redação
As
crianças pulando corda e jogando bola nas ruas fazem pensar que se está em uma cidade do interior – ou, então, que em uma viagem no tempo voltamos
à Santos antiga, de décadas atrás. Mas o tempo é agora e o local é um bairro santista.
No Jardim Santa Maria, na Zona Noroeste, o clima é
bucólico. Ao cair da tarde, homens e mulheres colocam as cadeiras na porta para uma pequena prosa com os vizinhos.
Já foi mais calmo, era bem menor. Mas está longe da
correria vista em outros bairros da cidade, com o vaivém de carros e pessoas apressadas. No Santa Maria, o tempo passa calmamente, principalmente
para os antigos moradores que saboreiam o passar das horas aproveitando os momentos de tranqüilidade dentro de casa, ou indo até a rua encontrar
um amigo.
Os
tempos no bairro já foram mais difíceis. Especialmente no início, quando chuva era sinônimo de enchente, geladeira em cima da mesa da cozinha,
ratos e cobras pela casa no dia seguinte.
Junto com os animais peçonhentos vinha a solidariedade
dos vizinhos, que se ajudavam a recuperar o que sobrou. A solidariedade é, aliás, uma das características que sobrevive ao tempo.
Houve época de fugir correndo de bois soltos, que
escapavam da boiada a caminho do matadouro, nas proximidades. Chegando à estação de trem, os bois eram conduzidos por vaqueiros pela estrada.
Quando havia estouro da boiada, era boi para todo lado: bicho entrando em bonde e caindo no canal. E quem vestia vermelho tinha que sair da
frente.
Dias melhores – O bairro nasceu no mangue, com
chalés sendo construídos aqui e ali. Ganhou impulso na década de 50, com as quedas de barreiras dos morros. Moradores que fugiam dos deslizamentos
iam aos poucos se instalando na gleba Santa Maria, optando pelas enchentes no lugar dos desabamentos. Era o menos mal.
A cada maré alta, as casas enchia até a metade. Para
evitar novas enchentes, a Prefeitura ia aterrando as ruas, deixando as moradias mais abaixo. A saída era ir levantando o teto inteiro,
suspendendo com uma espécie de macaco hidráulico e subindo a parede, de pouco em pouco.
A grande melhora nas condições de vida dos moradores
veio com a drenagem e a pavimentação das ruas dos bairros, que ocorreu em meados da década de 70.
"Eu subi quase três metros minha casa. Tinha um senhor
que era especialista nisso", relembra Antônio Moreira, de 79 anos, morador do bairro desde 1967.
Ex-cobrador de bonde e aposentado como
repórter-fotográfico, depois de ter trabalhado nos jornais Folha de S. Paulo e Cidade de Santos, Moreira conta com emoção que sua primeira casa
foi no Santa Maria. Antes ele morava de aluguel no Campo Grande.
"Quando cheguei, as ruas eram de terra, as valas fétidas
e havia muita enchente", recorda. "Ainda tem enchente quando sobe a maré, mas não tanto quanto antes".
Moreira lembra que chegou a alugar uma casa no Campo
Grande na década de 70, mas teve que voltar um ano depois, porque a mulher queria viver no Santa Maria. Sua expressão para explicar o motivo do
apego ao bairro resume o espírito que reúne os moradores, vizinhos que se tornaram amigos ao longo dos anos. "Aqui eu conheço quase todo mundo".
Ao cair da tarde começam a aparecer cadeiras nas calçadas. Os vizinhos saem às ruas, repetindo
ritual que há anos fortalece as amizades
Foto: Alberto Marques, publicada com a
matéria
PERSONAGEM
Francisca Parra de Almeida, 87 anos
Foto: Alberto Marques, publicada com a
matéria
A casa de dona Francisca está sempre de portas abertas
para ajudar. Ela já chegou a criar oito cachorros de uma vez e alimentava os filhos de um vizinho, que foi abandonado pela mulher.
A fama da mulher que vai de casa em casa para dar comida
aos cachorros dos vizinhos atravessou os limites do bairro. Um dia chegou uma senhora batendo à porta com fome. Francisca mandou que entrasse, ela
almoçou e voltou para jantar, saindo logo depois de comer. A rotina se repetiu por quase um ano, sem Francisca sequer saber o nome da mulher.
"Tempos depois, uma amiga contou que aquela mulher, que vinha da Areia Branca, morreu". O marido, José Ribeiro, de 88 anos, também faz a sua
parte. É ele quem abre as portas da Sociedade de Melhoramentos todos os dias. Francisca gosta do bairro porque tem o mesmo espírito de
solidariedade que aplica em sua vida.
MEMÓRIA
"Eu fotografei muita criança que ia para cima do guarda-roupa
para fugir da enchente" - Antonio Moreira
Foto: Alberto Marques, publicada com a
matéria
Ambiente residencial é valorizado
O rio não secou – virou canal. Não há mais bondes, mas
quando passam carros o terreno, às vezes, balança.
As casas de madeira foram aos poucos dando lugar às de
alvenaria. As enchentes diminuíram, mas continuam a acontecer, de forma mais branda, quando a maré está cheia.
Melhorou a estrutura: o Jardim Santa Maria ganhou
iluminação, rua pavimentada e condução. A segurança não é a mesma do século passado, mas não chega a desesperar. O local recebeu escola, mas não
tem policlínica.
Os bondes 1 e 21 foram substituídos por ônibus. Com o
aumento da população, cresceu o comércio. O grande boom aconteceu com a duplicação da Avenida Nossa Senhora de Fátima.
Alcides Fonseca, 60 anos, lembra com saudades da época
em que o trem espantava os peixes do rio. Ele chegou ao bairro em 1956, com seis anos, trazido pelo avô que tinha mudado quatro anos antes.
A família, que morava no Morro do Pacheco, encontrou no
Santa Maria um local seguro quando os morros sofreram desabamentos.
"Quando eu mudei, havia apenas cinco casas. Viemos para
um chalé; na época aqui não tinha nada, nem luz. Aqui casei, criei meus filhos". Fonseca chegou a mudar quando casou, em 1971, mas voltou assim
que o primeiro filho nasceu. "Fiquei três anos fora, mas voltei porque queria criar meus filhos no bairro. A maioria aqui se conhece. Há muita
gente da minha época".
Mudanças – O campo de bola era ponto de encontro
da turma do bairro, que virou quadra loteada. Essa foi uma das maiores tristezas dos moradores, que ficaram sem um local para lazer. Há apenas
meia praça: a Dona Maria Coelho Lopes, que é dividida com o Bom Retiro.
Sem local definido, as crianças aproveitam a liberdade
das ruas, sem grande fluxo de veículos, para brincar. Em busca de uma solução para essa ausência, a Sociedade de Melhoramentos tenta conseguir
verbas com a Prefeitura para construir uma quadra de esportes nos dois terrenos que somam 400 metros quadrados, situados atrás da sede da
entidade.
"Queremos dar oportunidade aos jovens e às pessoas da
terceira idade", comenta Fonseca, presidente da associação desde 2002. "Nós mandamos um projeto solicitando verba, mas não tivemos resposta".
A Secretaria Municipal de Serviços Públicos (Seserp)
informa que não prevê a construção de uma quadra esportiva atrás da Sociedade de Melhoramentos do Santa Maria porque o município não pode fazer
obras em terrenos particulares.
Valorização – O ambiente acolhedor, a
tranqüilidade e a característica residencial fazem com que o bairro seja um dos mais valorizados da região. O pequeno quadrilátero, que reúne
pouco mais de 20 quadras, é bastante procurado.
Essa demanda movimentou o mercado imobiliário. Fonseca
afirma que um terreno de 8 x 25 metros (padrão do bairro) custava em média R$ 35 mil há cerca de cinco anos. "Hoje, custa R$ 80 mil, mas tem gente
que paga R$ 100 mil".
Segundo o presidente da entidade, o bairro tem cerca de
seis mil moradores. "Há mais ou menos 800 casas, fora as de fundo, já que os filhos vão casando e o pessoal vai fazendo puxadinho".
E assim, gerações vão se sucedendo no bairro. Os avós
vieram, trouxeram os filhos, que ali criaram a terceira geração que ajuda a fazer a história do Jardim Santa Maria.
CLICK
LAZER. Sem campo de futebol e áreas de lazer, os garotos
improvisam na rua o jogo de bola. Antigos moradores apreciam a possibilidade de uma vida mais tranqüila, em que é possível encontrar amigos de
longa data e relembrar os velhos tempos
Foto: Alberto Marques, publicada com a
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TRANQÜILIDADE. As crianças aproveitam a calma das ruas e o
pequeno fluxo de carros para brincar. A característica bastante residencial faz o bairro ser um dos mais procurados da região, movimentando o
mercado imobiliário
Foto: Alberto Marques, publicada com a
matéria |