Com pouco mais de três mil moradores há sete anos, hoje possui quase 10 mil
Um paraíso. Mas até quando?
Quem conhece Bertioga não tira a razão de Vicente de
Carvalho, que a definiu como a "pérola do litoral paulista". O poeta quedou-se admirado diante de sua beleza simples e fascinante, não resistiu e
construiu uma casinha no Indaiá. Na paz daquele ambiente tranqüilo, cercado por uma vegetação luxuriante e embalado pelas ondas do mar, escreveu
poemas dos mais belos e inspirados. Eternizou tudo o que viu em versos, deixando um verdadeiro documento para as gerações futuras.
Se Vicente de Carvalho percorresse o mesmo recanto hoje, ainda depararia com um espetáculo de rara beleza,
principalmente ao amanhecer e nos fins de tarde. Mas o sossego definitivamente virou coisa do passado.
Os carros, que sequer podiam chegar até lá, hoje vão e voltam a todo instante, formando sulcos nas areias
brancas e abundantes daquela aprazível enseada. O movimento de pessoas em busca das águas transparentes da praia é cada vez maior, e não faltam
guarda-sóis imprimindo um colorido diferente ao lugar.
E imaginem só: particulares inexplicavelmente derrubaram o antigo refúgio do Poeta do Mar para construir uma
rica mansão. Mais: bem perto, funciona um hotel, como um sinal inexorável dos tempos.
Qualidade de vida se deteriora e muitos buscam as belezas de Bertioga - Pois é. Muita gente decidiu
seguir o exemplo do famoso poeta santista e procurou aquele paraíso quase intocado para fixar residência ou se divertir nos fins de semana. O
raciocínio parece lógico: nada mais convidativo ter à mão tudo o que oferecem grandes centros urbanos, como São Paulo, Guarujá e Santos, e, ao
mesmo tempo, se ver livre de sérios problemas que enfrentam e comprometem a qualidade de vida.
A beleza natural predomina nos 360 quilômetros quadrados de Bertioga e existem nada menos que 38 quilômetros de
orla marítima sem vestígios de poluição. Difícil dizer qual a mais bonita praia de Bertioga: Enseada, Indaiá, São Lourenço, Itaguaré, Guaratuba ou
Boracéia, na divisa com São Sebastião?
Como se não bastassem as praias, o distrito abriga três bacias de pequenos rios: Itapanhaú, Itapuré e Guaratuba.
Eles são formados por esporões na Serra do Mar, espalham suas águas limpas por terras baixas e desembocam no Atlântico.
Quem se interessa por detalhes deve saber que a região pode ser dividida em três partes, uma delas quase a nível
do mar, onde está concentrado o desenvolvimento urbano e onde vive praticamente toda a população. Há ainda a chamada Cota 100, caracterizada por
terras 100 metros acima do nível do mar, formadas por matas e capoeiras, com cobertura vegetal natural e reflorestamento. Mais acima fica a Serra
do Mar, com altitude chegando a 500 metros acima do nível do mar.
Sejam lá quais forem as divisões de Bertioga, a verdade é que seus atributos passaram a atrair um número cada
vez maior de pessoas, principalmente a partir de 1970, quando o tema ecologia entrou na ordem do dia. Muito simples: o nível de vida do homem
moderno atingiu uma deterioração sem precedentes e a volta à natureza tornou-se uma verdadeira obsessão.
E lá estava o esquecido distrito envolvido nesse contexto. As estatísticas são bastante reveladoras: em 1970,
Bertioga tinha apenas 3.578 habitantes. Em 1980, registrava o triplo daquele total, com um índice de população muito próximo de 10 mil habitantes.
Em outras palavras, caíram por terra projeções tidas como otimistas, segundo as quais o núcleo teria 10 mil moradores em 1985. Com a recente
abertura da Rodovia Mogi-Bertioga e a prometida complementação da Santos-Rio, quantos habitantes Bertioga abrigará em 1990?
Quem investiu em terras se deu bem: um bom terreno custa Cr$ 10 milhões - Se muita gente se interessou
por Bertioga, imaginem as imobiliárias! Na certeza de grandes lucros, adquiriram extensas glebas para transformá-las em lotes e vender. Vender a
preços cada vez mais altos, pois um terreno bem localizado não custa menos de Cr$ 2 mil o metro quadrado. Isso significa que um terreno de 500
metros quadrados vale Cr$ 10 milhões, o que equivale ao preço de bons apartamentos em Santos.
Com os lotes a esses preços, a quantas andam os imóveis? Para se ter uma idéia, uma imobiliária está lançando um
residencial composto de 17 conjuntos, cada um deles com dois sobrados geminados, num total de 92 metros quadrados de área construída cada. Os três
mais próximos da praia custam Cr$ 18 milhões; os localizados na faixa intermediária Cr$ 13 milhões, e os junto à Avenida João Ramalho, 12 milhões.
O setor imobiliário, efetivamente, não deixou por menos. Os loteamentos aprovados ou em fase de aprovação
perfarão uma área equivalente a mais de 60 por cento da área urbana de Santos. Apenas o loteamento da Soblocos, na Praia de São Lourenço, envolve
8 mil lotes situados numa privilegiada faixa de terra entre a orla da praia e a Rio-Santos. E não faltam outros grandes loteamentos espalhados
pelo Jardim Humaitá, Boracéia, Guaratuba e Itaguaré.
Nesse processo todo, parece dispensável dizer que as populações carentes são gradativamente expulsas do lugar
que ocupam, para abrir caminho ao concreto. Muitas famílias não puderam controlar o que lhes pertencia ou não resistiram a pressões. Pressões
muitas vezes acompanhadas de ameaças de morte e outras brutalidades do tipo. Quantos caiçaras não perderam as terras das quais tiravam o sustento?
Não há dúvidas: a crescente abertura de loteamentos fatalmente acarretará a divisão da área do distrito em duas
faixas: na litorânea ficará concentrada a população flutuante e a fixa de alta e média rendas, enquanto a de baixa renda não encontrará outra
alternativa se não se interiorizar cada vez mais. Não é difícil prever que se apropriará de terrenos na encosta da Serra, provocando a degradação
da vegetação primitiva.
Outro aspecto fácil de se prever: as áreas agrícolas diminuirão cada vez mais, como resultado da especulação
imobiliária e da demanda de espaços destinados às construções com fins turísticos. Ou seja, o incremento turístico inibirá o desenvolvimento do
setor primário.
Alteração do Código de Obras determinará o fim dos recantos naturais - Com tantos grupos econômicos
agindo, não existe nenhum querendo implantar algum grande edifício bem em frente ao mar? A frase até rimou, e não tenham dúvida de que não faltam
cabeças imaginando a construção de imponentes prédios envidraçados diante daquelas imensidões verdes.
Isso só não aconteceu porque Bertioga é regida por um severo código, que disciplina a utilização do solo e
protege os recursos naturais. Nenhum mistério: trata-se apenas de uma tentativa de minimizar os males da especulação imobiliária e do crescimento
alucinado. Na tentativa de resguardar a qualidade de vida, o chamado Projeto Ecológico proíbe a instalação de edifícios na orla da praia e
estabelece que todo e qualquer terreno não pode ter uma área construída acima de 20 por cento da área do terreno.
Os construtores, logicamente, consideram o Código de Obras rígido demais, e correm boatos cada vez mais
insistentes no sentido de que o prefeito Paulo Gomes Barbosa estaria disposto a atender seus pedidos (ou imposições?) e promover alterações no
documento. As imobiliárias reclamam, vivem se lamentando, e Barbosa parece bem propenso a ceder às pressões. Nesse caso, só restará dizer adeus ao
paraíso em forma de Bertioga.
O canal de águas cristalinas, mais uma opção de lazer
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