Só a partir da urbanização os barracos foram substituídos por casas melhores
e a Areia Branca perdeu seu aspecto de favela
Urbanização, um desafio para muitos prefeitos
A ameaça de despejo pairou muitas vezes sobre a Areia
Branca. E só não se concretizou graças à luta dos moradores, que se uniram para fazer valer seus direitos. Enquanto deu para usar politicamente o
bairro, muita gente se aproveitou e deu palpites. E o povo do lugar, não mandava nada?
Disposta a responder a essa pergunta, a Sociedade de Melhoramentos de Areia Branca iniciou um movimento que se
prolongou até o ano passado. O pessoal não pedia muito: apenas que a situação de posse da terra fosse regularizada. E se tem alguém que muito
lutou para que isso se tornasse realidade foi Anísio Bento, atual presidente da entidade que ajudou a fundar em 1955.
Anísio Bento, na luta desde 1953
"Seu"
Anísio chegou a Santos em 1953, depois de enfrentar dias de viagem no navio Taité, que o trouxe do Rio Grande do Norte. Do Rio de Janeiro
para cá o navio quase afundou, mas já em terra firme Anísio foi se instalar justo em Areia Branca. Mal sabia o que o esperava, mas nunca se
arrependeu do que fez.
A urbanização do bairro desafiou vários administradores e deixou moradores sem dormir à noite, de tanta
preocupação. No tempo do ex-prefeito José Gomes, chegou a ser elaborado um projeto, por um engenheiro vindo especialmente do Rio. Mas, com a saída
do então prefeito, o assunto ficou parado, voltando a ser retomado efetivamente na gestão de Sílvio Fernandes Lopes. Este criou a Companhia de
Habitação da Baixada Santista (Cohab), em 1965, para cuidar, antes de mais nada, do caso de Areia Branca.
Tudo parecia bem encaminhado, porque a Cohab iniciou a construção de casas populares em área contígua à favela.
A idéia era transferir os moradores para elas, desafogar o bairro e iniciar a urbanização. As casas ficaram prontas em 1967, só que isso não
representou o vencimento de uma primeira etapa: houve uma campanha de políticos contra as novas moradias e menos de 10 por cento dos favelados
concordaram em se transferir para elas. Conclusão: a Cohab teve que abrir venda para quaisquer interessados.
A urbanização propriamente dita só começou no tempo do interventor Clóvis Bandeira Brasil. Aproveitando-se
elementos do antigo projeto elaborado no tempo de José Gomes, a Areia Branca recebeu as primeiras alterações. As ruas foram abertas de modo a
evitar ao máximo a transferência de moradores, e, pelo mesmo motivo, não se obedeceu o Código de Obras de Santos. Ainda assim, 170 moradias
precisaram ser demolidas.
Cada morador ficou com lotes de tamanhos diferentes, e não é à toa que a área anteriormente ocupada pela favela
se caracteriza por um emaranhado de ruas. E, por incrível que pareça, a questão da posse da terra só foi efetivamente solucionada em novembro do
ano passado, quando a Cohab entregou as 26 últimas escrituras de lotes.
Isso não significa que terminou a luta de Anísio Bento e da sociedade de melhoramentos. Esse homem, que se
firmou como um batalhador incansável em todos esses anos, vive na Prefeitura pedindo a urbanização de praças, a limpeza de bocas-de-lobo, o reparo
geral de sarjetas e meios-fios.
"Vou à Prefeitura e não é para ver prefeito e nem vereador. Estou querendo o melhor para o bairro", diz ele, sem
em momento algum se vangloriar ou contar vantagem. Fica evidente a boa vontade desse homem, que deixa o sossego da sua casa para reivindicar em
nome dos quase 10 mil moradores de Areia Branca. Ele se mostra irredutível também na luta pela instalação de um banco na Zona Noroeste, que
beneficiaria 170 mil pessoas.
Há 10 anos, cenas como essa eram comuns: muita sujeira e ruas que mais pareciam vielas
Essas crianças e seus milagres
Não é dizer que se trata de bobagem de gente pobre, não.
Pessoas de todas as idades, categorias profissionais e classes sociais se incluem entre os devotos do menino Onofre e da menina Condília Maria,
que estão enterrados no Cemitério de Areia Branca e a quem se atribui centenas de milagres.
A fama de Onofre e Condília correu Brasil afora. Tanto que, às segundas-feiras, dia da semana dedicado às almas,
uma média de 300 a 400 pessoas visitam o túmulo de cada um deles. Acendem velas, instalam plaquetas agradecendo graças alcançadas, depositam
flores, doces e objetos que vão desde cadernos escolares até pernas mecânicas.
Mas, afinal, quem foram essas crianças?
Poucos dos devotos contam a história deles com segurança. Repetem o que ouviram falar, misturam um pouco de
crença própria e só têm certeza mesmo que os dois são capazes de grandes milagres.
O administrador do cemitério, Eloy Franchini, recorre a um grande livro empoeirado para dizer que Onofre é filho
de Pedro Gonçalves (não consta o nome da mãe) e morreu na Santa Casa, vítima de um certo tipo de meningite. A menina Condília nasceu na Vila São
Jorge, sua família ainda mora no bairro e a avó visita seu túmulo todos os domingos. Os populares cuidam de acrescentar um detalhe: Condília sabia
que ia morrer. Chegou a pedir à mãe que impedisse a avó de viajar. "Vou durar três dias", teria dito ela, para falecer exatamente três dias
depois.
Não se sabe até que ponto essa e outras versões são verdadeiras, pois já chegaram a dizer que o menino Onofre
nasceu morto, embora uma plaqueta afixada na campa indique a data do seu nascimento e morte: 21 de novembro de 1950 e 23 de abril de 1956.
Creusa Maria Peres Castanho cumpre a rotina de limpar o túmulo do menino há 12 anos. Fez um pedido e prometeu
que, caso fosse atendida, garantiria a manutenção do local por um ano. Recebeu a graça e não só cumpriu o prometido, como continua limpando a
campa periodicamente até hoje. Ela sequer lembra o motivo que a levou a fazer a promessa.
Segundo Creusa ouviu falar, o menino Onofre estava enterrado sob uma árvore à direita de quem entra no
cemitério, como indigente. De uma época em diante começou a baixar em uma senhora, chamada Inês, e ela se encarregou de construir o túmulo.
Só que essa mulher passou a cobrar as consultas espíritas e Onofre se afastou dela. Atualmente baixa em um senhor do Gonzaga.
São coisas como essa que se ouve junto ao túmulo das crianças. E, ao que tudo indica, está surgindo um novo
santo no cemitério. Pelo menos, isso é o que diz o Goiano, senhor que executa limpeza de campas e serviços de pedreiro.
Trata-se da menina Ivonete, que foi morta em 1977 pelo pai. Era paralítica e apesar disso recebia toda sorte de
maus-tratos, chegando inclusive a apanhar com corrente e ser queimada com cigarro. Depois de matá-la, o pai a enrolou em um saco plástico e jogou
em uma fossa. O corpo só foi achado oito dias depois e seguiu para o necrotério, onde ficou mais quatro dias. Goiano conta: "Ela ficou
santa. Com 12 dias de morta o corpo não tinha cheiro".
O homem repete a história a muitos que chegam ao cemitério e mostra o pequeno túmulo, onde se vê a fotografia de
um rapaz e algumas bonecas. "Ela já fez muitos milagres. Eu cuido do túmulo e o pessoal vem me contar", diz ele, satisfeito. No entanto, a
administração do cemitério não tem conhecimento desses casos.
Seja como for, é mais uma história para se contar desse cemitério que está passando por reformas para atender a
demanda. Paquetá e Saboó já estão superlotados, e o de Areia Branca é o único que ainda tem espaço para se expandir. Espaço aliás não muito
grande, para um cemitério onde se enterra uma média de 20 pessoas por dia e 12 indigentes por semana.
Antônio Pio do Carmo tem motivos para se admirar diante do que vê. Ele ajudou a preparar a área onde seria
construído o cemitério e realizou o primeiro sepultamento, a 3 de setembro de 1953. Trabalha lá até hoje e não esconde o riso quando lembra:
"Antes de vir trabalhar aqui, eu ia em velório e não olhava o defunto. Chegava em casa, não comia nada. Não gostava daquilo".
Vejam só que tipo de emprego foi arranjar. Por essas e por outras, quem não admite que a vida reserva muitas
surpresas?
Placas de agradecimento, a prova da devoção
|