A beleza da arquitetura ficou escondida sob as marcas do abandono,
mas observando-se os detalhes pode-se ter uma idéia do que foi o bairro
Miséria, choro e histórias incríveis por trás das fachadas dos palacetes
A gente olha aqueles palacetes e fica boquiaberto diante de
tanta contradição. Suntuosidade e decadência se misturam, o contraste é gritante e não há como se evitar a sensação de perplexidade diante da
vida.
Nos ladrilhos coloridos, cuidadosamente assentados, pisam pés descalços, cheios de calos e frieira; os lustres
pomposos não ostentam lâmpadas, os vitrais estão quebrados e grades de ferro resguardam quem não tem nada para perder. Só as paredes altas
conservam uma função especial: nelas são afixados uma infinidade de pregos onde se pendura roupa, bacia, panelas, panos de prato, meias e toalhas.
São casarões com oito, dez ou até mais cômodos, mas os moradores não podem gozar um minuto de privacidade. Não é
possível sequer buscar um pouco de tranqüilidade no banheiro: há sempre alguém batendo na porta, esperando para entrar.
Para que servem os frisos em gesso, as flores, as figuras de anjos e leões que adornam as fachadas? Por trás das
edificações altaneiras há miséria, ranger de dentes, tristeza e choro. As histórias que se ouvem são as mais incríveis, parecem coisa de novela,
só que nunca acontece um final feliz.
Jesadálate, cujo nome por si só revela tanto, 27 anos de idade, mãe de seis crianças e grávida de quatro meses,
confessa que passa fome; Antônio está desempregado há 10 meses e sobrevive vendendo objetos que cata no lixo; Lindalva paga Cr$ 30 mil mensais por
dois cômodos onde mora com o irmão e os oito filhos; Jesuíno perdeu uma perna num acidente de trabalho e a família, que ficou no Rio Grande do
Norte, não sabe de nada.
Quando a gente pensa que não pode ouvir nada pior, surge Maria Gomes, 46 anos de idade, contando detalhes diante
dos quais certamente ninguém consegue ficar passivo.
Feito objeto, foi dada para uma família onde só soube o que é medo e violência - Maria faz de um único
cômodo quarto, cozinha e sala. O banheiro, sem válvula de descarga, divide com outras cinco famílias que moram na mesma casa da Rua Vereador
Freitas Guimarães. Paga aluguel mais baixo de que se tem notícia em Vila Nova - Cr$ 3.700,00 mensais. Só que, por absurdo que possa parecer, o
teto está cheio de furos e a sujeira que cai, quando o vizinho de cima varre o chão, muitas vezes se mistura ao seu prato de comida.
Na porta de entrada, uma mureta de uns 30 centímetros de altura impede que a água da chuva invada. Mas nem assim
Maria se vê livre da umidade. "Quanto chove fica desse jeito lá dentro", diz ela apontando a poça que se formou na calçada esburacada que acabara
de lavar. Resultado dos furos no teto e das rachaduras na parede.
Essa mulher de pele clara, cega de uma vista, nasceu em Marília e quando tinha seis anos de idade a mãe a deu
para os padrinhos criarem. Com a nova "família" perdeu os dentes, ganhou muitos "calos" na cabeça e ficou "sofrendo da idéia". Era pancada na
cabeça, na boca, no corpo frágil. Qualquer palavra a mais servia de pretexto para novas surras.
Viu a mãe pela última vez quando tinha sete anos de idade. Os padrinhos saíram de Marília, moraram em muitos
lugares diferentes e a largaram sozinha em São Paulo quando decidiram ir de vez para o Paraná. Nessa altura dos acontecimentos, Maria perdera o
contato com a família e se viu sem ninguém no mundo. Pôs anúncio no rádio, esteve na polícia, mas não conseguiu localizar nenhum dos parentes.
Certa vez ficou sabendo que uma das irmãs é casada, com um fazendeiro, só que quem contou não deu o endereço.
Se vira como pode e nunca consegue parar muito tempo em nenhum emprego: tem problemas de coluna e crises de
vesícula que quase a matam de dor. Remédio só toma de vez em quando, porque é muito caro. Quando não agüenta mais, sai zonza, esbarrando nos
muros, à procura de um hospital.
Um companheiro que bebe, o homem na sarjeta e um grande sorriso desdentado - Por não ter com quem contar,
atura o companheiro que bebe, a espanca e a manda arrumar dinheiro na rua. Nunca lhe deu um sapato, um vestido ou uma bijuteria para enfeitar o
corpo cansado.
"Ele é agressivo, me bate muito, mas pelo menos paga o aluguel", conta, parecendo mais preocupada com a vizinha,
viúva há quatro meses e com seis filhos para criar, "tudo de menor". Aperta forte o cabo da vassoura e acrescenta: "Às vezes, escuto as crianças
perguntando se não tem nada para comer. Mas o que posso fazer se não tenho nada para dar?"
Há menos de dois metros de onde ela fala, um bêbado resmunga, jogado na calçada. Coberto com uma colcha imunda,
cara inchada, espanta uma mosca imaginária e se assusta com o barulho do carro que passa.
"Dizem que pobre nasceu para sofrer. Fazer o quê?", pergunta Maria Gomes. E sorri, deixando à mostra a gengiva,
desdentada. |