Ainda restam campos de várzea e neles a rapaziada desfruta bons momentos de lazer
As belezas de um morro e a persistência de sua gente
Existe coisa melhor do que residir em uma cidade litorânea e
gozar, ao mesmo tempo, de um clima de montanha, afastado da poluição visual e das confusões de trânsito?
Pois esse é um privilégio de pouco mais de 10 mil pessoas, em Santos. Mais exatamente, dos moradores da Nova
Cintra, esse morro curioso por possuir uma imensa planície, como se fosse uma cidade alta. No mínimo, um bairro elevado.
Por pior que seja o verão, lá persiste um frescor gostoso. Há pássaros cantando, campos de várzea, muito verde e
outras coisinhas que estão desaparecendo desse mundo cá de baixo. E sabem o que mais? O mar permanece sereno e verde, porque é assim que de longe
a gente o vê.
As estradas chegaram ao Morro da Nova Cintra e quem passeia por aqueles lados não se arrepende. Há acessos pelos
lados do Jabaquara e Marapé, além de uma descida pela Caneleira e se desfruta de bons momentos simplesmente seguindo por esses caminhos. De
repente, a pessoa percebe o silêncio, vê crianças trepadas em árvores, moleques só de shorts abraçados a cachorros. Para bom apreciador das
cenas simples, o morro oferece um prato cheio, como diz o ditado popular.
Como as pequenas cidades do Interior, Nova Cintra cresceu em torno da igreja. E nenhum morador se atreveu a
construir qualquer prédio mais alto que a torre do templo, por isso ele domina soberano em plena Praça Guadalajara, bem no fim da avenida
principal.
E se essas visões pitorescas não satisfazem, basta dar uma chegadinha até a Lagoa da Saudade, onde a beleza da
paisagem explode com força total. Alguns chegam a dizer que o lago é uma dádiva, mas muito moleque morreu afogado em suas águas profundas. Por
isso, melhor é se contentar com a pescaria, feita ali mesmo da beirada. Perigo só se vier o jacaré engatado no anzol. Pelo menos, dizem que tem um
jacaré morando por lá...
A Chácara Tropical, com uma quantidade infinita de plantas e árvores, representa outra boa atração da Nova
Cintra. E quem conquistar a amizade do proprietário Raul ou de seus filhos, poderá visitar o pequeno lago cheio de carpas. Carpas douradas e
pretas que comem pão na mão e saem nadando em meio a um baita estardalhaço.
Uma mata exuberante como a que caracteriza a chácara é encontrada também na descida da Caneleira. Melhor não
poderia ser, pois além de tudo há uma cachoeira, cujas águas cristalinas escorrem suavemente pelas escarpas pedregosas e em outros tempos serviram
para movimentar o Engenho do Governador.
Segundo dizem, essa cachoeira que parece tão inocente esconde um imenso túnel, que servia de refúgio nos tempos
do cativeiro e da pirataria. Isso mesmo, uma galeria subterrânea que garantia a fuga para outro ponto do povoado.
Sabe-se que alguns exploradores se aventuraram a entrar no túnel para desvendar seus segredos. Mas, como as
pesquisas do tipo nunca foram adiante, não falta quem atribua a culpa a fantasmas, que põem a correr os curiosos.
A cachoeira que esconde um refúgio colonial
A
festa junina, o amor à Igreja e o seminário que surge - Portugueses da Ilha da Madeira ocuparam o planalto, fincaram raízes e conservam até
hoje a tradição da mesa farta (sempre que o orçamento familiar permite) e do bom vinho tinto na hora do almoço. São católicos praticantes, devotam
muita fé no padroeiro, São João Batista, e encontraram no padre Júlio Llerena mais do que um conselheiro espiritual: um amigo. O relacionamento
entre eles é tão bom que padre Júlio fez questão de visitar seus pais, parentes e amigos quando esteve em Portugal, no começo do ano. Com isso, a
amizade se estreitou mais ainda.
O templo em louvor ao padroeiro, simples de tudo, sem muitas imagens ou colorido, guarda um pouco da vida de
cada um daqueles ilhéus. Eles assumiram a tarefa de construí-lo, pegaram em enxada, martelo e foice, amassaram cimento e gastaram horas de lazer e
descanso organizando festas juninas, cujas rendas revertiam para a obra.
O templo surgiu altaneiro e a festa junina dos portugueses tornou-se tradicional. Agora, como a igreja está
acabada, eles decidiram que a renda da festa desse ano reverterá para o Seminário de São José, que ganhará uma sede nova, em um amplo sítio ali
mesmo na Nova Cintra. Nesse sítio, padre Júlio cria uma vaca, porcos e abelhas, planta cana, verdura e colhe banana. Um pequeno paraíso ali para
os lados da Pedra da Campina.
Há muito o que se descobrir e aprender com a gente da Nova Cintra. Pessoas que parecem sobreviver a tudo, estão
cientes do que querem e realizam até hoje, apesar das adversidades, a Festa do Divino Espírito Santo. Os homens ostentam uma capa vermelha, as
meninas se enfeitam com fitas coloridas e juntos saem de porta em porta. Tocam flauta, bandolim, cantam, rezam e angariam donativos para a Igreja.
Tão bom quanto vê-los seguir pelas ruas, cheios de fé, é observar o zelo de bordadeiras como dona Carolina,
Maria Pestana, Ana Maria e tantas outras que se desdobram sobre toalhas, colchas, cortinas e lençóis. Passam horas e horas com a agulha na mão, e
ao final nem recebem o que mereceriam depois de tanto trabalho. Um exemplo de boa vontade e persistência.
A capelinha era pequena para tantos fiéis e os ilhéus decidiram construir outra maior
Dois times de futebol, uma escola de samba e a briga com o prefeito - E por falar em persistência, a
Sociedade Esportiva Nova Cintra e o Esporte Clube Juventude continuam firmes na disputa da III Copa Cidade de Santos. O Juventude sagrou-se
campeão no ano passado e não faltou festa para comemorar esse primeiro título em 12 anos de existência. Festa tão grande assim o morro só viu
quando a Escola de Samba Unidos do Morro venceu as demais concorrentes do Grupo Pleiteante, no Carnaval deste ano. Em 83, quando pisar novamente
na avenida, estará entre as grandes escolas do Grupo Principal.
O morro se orgulha muito dos seus dois times de futebol e da escola de samba. Mas, infelizmente, não pode se
orgulhar de suas ruas, que continuam esburacadas e cheias de lama. As poucas ruas asfaltadas ostentam enormes valas em ambos os lados. Melhor
mesmo, só a pista da interligação dos morros Nova Cintra e São Bento, mas será que elas servem mais aos moradores ou visitantes?
Dia desses, o prefeito esteve lá em cima. O pessoal logo pensou que ele fosse perceber que Nova Cintra precisa
de redes de esgoto e asfalto, não suporta mais viver com o mau-cheiro das valas. Qual o quê! Paulo Gomes Barbosa simplesmente descerrou uma
plaqueta por meio da qual anunciava a substituição do nome Avenida Santista por Avenida Nagasaki. O pessoal ficou enfurecido, acostumado que está
a chamar sua principal avenida de Santista. Além do mais, no morro não mora um único japonês. O pessoal não se fez de rogado: foi lá e arrancou a
placa.
A capela em louvor ao padroeiro domina soberana no final da avenida principal
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