Dentro do antigo prédio, restam salões sujos e úmidos,
um relógio corroído pelo tempo e uma Bandeira Nacional
Foto: Anésio Borges, publicada com a matéria
Em março, a Cidade perde um pouco mais de sua história recente: o imóvel da Santa
Casa que vai da Rua do Comércio à Rua Visconde de São Leopoldo, outrora ocupado em parte pelo jornal
O Diário, vai abaixo, dando lugar ao estacionamento de um banco. A área,
com aproximadamente 2 mil metros quadrados, sediou muitos estabelecimentos e escritórios, desde a época em que Santos vivia seu apogeu e a Rua do
Comércio era movimentada pelos animados e prósperos comerciantes de café. Agora, apenas velhos livros e mesinhas de máquina de escrever, em meio a
traças e limo, lembram as tardes tranqüilas com chá e orquestra.
Velho prédio de O Diário vai virar estacionamento
Quando o trem chegava, a rua se enchia de gente a caminho do ponto de bonde. Em
frente, parava-se para um chá, ao som de orquestra. À noite, dezenas de máquinas de escrever preparavam mais uma vibrante edição do velho O
Diário. A Rua do Comércio era, sem dúvida, síntese do apogeu santista na década de 30. Hoje, o prédio do jornal, nº 7 a 17, abriga pombas, às
dezenas, que circulam em meio às tábuas que rangem, vencidas pela umidade, e as velhas mobílias do jornal. Em março, vai tudo abaixo, abrindo um
rombo de 2 mil metros quadrados, da Rua do Comércio até a Visconde de São Leopoldo. E no lugar surgirá, durante três anos, um estacionamento do
Banco Itaú.
O imóvel, com várias lojas e salões de escritório, já sediou muitos negócios, além do
jornal, como o Partido Comunista, tipografia, liga de tamboréu, lojas e a sucursal do Diário de São Paulo. O tempo, porém, destruiu
completamente o imóvel, com o madeirame estragado, problemas nas instalações elétricas e hidráulicas e risco à própria segurança.
Este ano, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia, a proprietária, tomou uma
decisão, depois de verificar que o custo de reforma era incompatível com a situação do hospital. Os aluguéis cobrados dos comerciantes na área eram
baixos. Por isso, a Santa Casa alugou a área para o Banco Itaú. O contrato, segundo o provedor Antônio Manoel de Carvalho, é de três anos, e nesse
meio tempo o banco deverá derrubar o prédio para instalação de um amplo estacionamento.
Irmão Geraldo deixa o prédio sem mágoa. Quer apenas tratar de sua saúde
Foto: Anésio Borges, publicada com a matéria
O
banco fez acordo com os antigos locatários, indenizando-os e dando prazo para desocupação. Alguns imóveis, na Visconde de São Leopoldo, serão
liberados até final de fevereiro. Mas na face da Rua do Comércio, o clima já é de abandono. Ontem à tarde restava apenas um pequeno negócio: a
Fotocópia Bongiovanni, onde o proprietário, Constante Kosicio (67 anos), juntava papéis e equipamentos para deixar o ponto até segunda-feira,
véspera do Ano-Novo.
"O que se vai fazer", comentava o comerciante, "é a juventude que surge, querem coisa
nova no lugar". Mas ele dividia a expressão de desolamento com uma análise realista: "Está tudo podre, pode desabar a qualquer hora, e refazer o
prédio custaria mais que construir um novo". Kosicio, também chamado de Irmão Geraldo, antigo marista, foi indenizado pelo banco. Mas não tem idéia
do que será seu negócio a partir de agora: "Primeiro preciso tratar da saúde. Já não tenho mais força e energia".
Velho casarão que abrigava O Diário desaparece, na Rua do Comércio
Foto: Anésio Borges, publicada com a matéria
Lembranças - Ao lado da fotocópia, as portas arriadas mostravam que as demais
lojas da Rua do Comércio já foram abandonadas. Os últimos a saírem do ponto foram a Cidade da Criança e a Gráfica e Papelaria Atlântica. Na face da
R. Visconde de São Leopoldo, os comerciantes ainda aproveitam o tempo que lhes resta para livrar-se dos estoques.
Um prédio de muitas lembranças, o do antigo O Diário, tão importante que o
desfile carnavalesco, na época realizado no Centro, acabava sendo desviado pelos blocos para homenagear os jornalistas. As maiores lembranças, ditas
nas tradicionais rodinhas da velha Rua do Comércio, se referem à década de 30, quando a rua era verdadeira passarela de santistas que iam e vinham
pela estrada de ferro, ao final da rua. Nessa época, o prédio de O Diário fazia vizinhança com o imponente edifício Pedro dos Santos, segundo
recorda Alberto Vieira Fernandes (71 anos).
Em frente, o Empório Sul-Riograndense, no atual prédio ocupado pelo Cidade de
Santos, chamava a atenção pela qualidade de suas mercadorias (cristais da Boêmia, tapetes persas e perfumes franceses). Mais adiante, a Galeria
Odeon recebia grupos de amigos em mesas de chá, animados por orquestra. "Vejo a morte da Santos antiga", comenta o sr. Alberto, que veio do Rio para
Santos em 1931, com 17 anos, para gerenciar a representação da Burroughs.
"Tudo que passa dá saudade", diz ele, "principalmente por ter sido a vida muito boa
para todos naqueles tempos". São dessa época pilhas de livros contábeis que, em boa caligrafia, apontam receitas e despesas de O Diário,
agora abandonados, com traças, nos salões do prédio. Junto dos livros, uma carcomida Bandeira Nacional, um velho relógio de parede e vários
posters, do Diário de S. Paulo, mostrando grandes momentos na vida da Cidade, como homenagens ao rei Pelé e o socorro às vítimas
do bondinho da Light.
Restos de um tempo espalhados com cupim e limo, sobre o assoalho que ainda sustenta as
mesinhas de repórteres do Diário.
"Quem dá vida ao prédio é seu uso. Sem uso não representa nada, só história", comenta
Antônio Rodrigues, proprietário do Café Paulista, que, em seus 73 anos de funcionamento, foi parada obrigatória de tanta gente que viveu e fez a
história de uma Cidade que, em mais um pedacinho, começa a desaparecer. |