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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - INSEGURANÇA
Fogo! A Baixada Santista corre perigo? (B-07)

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De 16 de dezembro de 1984 a 1º de janeiro de 1985, o jornal santista A Tribuna publicou uma série especial de reportagens, Roteiro da insegurança, sobre os riscos a que estavam expostos os habitantes da Baixada Santista.

Esta matéria foi publicada no dia 24/12/1984:
 
 

ROTEIRO DA INSEGURANÇA - 7

Baixada carece de recursos para segurança

A Baixada Santista se transformou numa autêntica "área de insegurança nacional": apesar de ser a região mais insegura do mundo, não recebe recursos para a implantação de esquemas de defesa ambiental. Enquanto faltam equipamentos, técnicos, veículos, barcos etc., continuam ocorrendo "acidentes" totalmente evitáveis.

A verdade é que a febre do desenvolvimento, responsável principal pela implantação das indústrias, não trouxe junto a preocupação com a segurança. Agora, quando a situação é caótica, faltam meios para a proteção da população. A Cetesb anuncia quatro projetos específicos para a Baixada e resta torcer para que haja disposição e verbas para a implantação dos planos. A Unidade Sindical pretende promover um amplo debate sobre o tema.


As indústrias vão sendo implantadas na região
sem qualquer planejamento sob o aspecto segurança
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria

Baixada, uma 'área de insegurança nacional'
(Faltam verbas - e disposição - para a implantação de esquemas de defesa ambiental)

Texto de Manuel Alves Fernandes e Lane Valiengo
Fotos: Araquém Alcântara

O ar sem poluição, o Estuário sem esgoto e mercúrio (além de outros metais pesados), as ruas sem carretas carregando explosivos, o mar sem o óleo dos navios, os oleodutos longe de núcleos habitacionais. E as indústrias trabalhando dentro da máxima segurança possível. Tudo isso será apenas um sonho?

Já que a Baixada Santista é obrigada a conviver com os muitos perigos que existem atualmente - e que a tornam a região mais insegura do planeta -, deveria receber pelo menos uma compensação. Que seria exatamente a garantia de que um novo incêndio como o de Vila Socó não acontecerá de repente, matando outra centena de pessoas. Ou talvez milhares. Ou, pior ainda, destruindo toda a região.

Mas não é o que acontece. Apesar de toda a insegurança, a Baixada não recebe atenção proporcional, tanto a nível de definições quanto de recursos - materiais e humanos - necessários para tornar o Roteiro da Insegurança um pouco menos ameaçador. A febre do desenvolvimento a qualquer preço trouxe para cá as indústrias, os gases venenosos, os caminhões com produtos inflamáveis e tóxicos, os oleodutos. Mas não trouxe junto a segurança, esquecendo que existe um custo social que não pode ser simplesmente desprezado.

A Baixada não recebe verbas para montar, no mínimo, um esquema eficiente de defesa ambiental. A Cetesb, por exemplo, não conta com número de funcionários proporcional aos riscos existentes. E nem ao menos possui um barco para fiscalizar a região. E os Bombeiros, conforme reconhece o comandante, coronel Nilauril Pereira da Silva, ainda estão longe do ponto ideal em termos de equipamentos, "apesar de estarmos avançando bastante".

O Conselho de Defesa do Litoral não possui base em Santos e não há equipamentos para um combate imediato a derramamento e óleo no mar, mesmo sabendo-se que esses derramamentos são freqüentes.

O próprio coronel Nilauril lamenta. "Segurança é investimento caro e não tem retorno". Talvez seja por isso que só se fala em segurança depois que as tragédias aconteçam. Mas mesmo assim só imediatamente em seguida aos "acidentes": bastam algumas semanas para que ninguém mais toque no assunto. E a necessidade de medidas "urgentes" é inteiramente esquecida. Até que outro "acidente" ocorra.

A Baixada não é apenas a região mais insegura e explosiva do mundo, é também a mais discriminada, a que mais sofre com a omissão geral que tem caracterizado as decisões políticas no Brasil. Não deixa de ser curioso o fato de que Santos e Cubatão tiveram suas autonomias cassadas, passando a ser "áreas de segurança nacional". Apesar do título imposto pelo Governo Federal, essa intervenção não se caracterizou, em nenhum momento, pela implantação de esquemas efetivos de segurança e muito menos por verbas, para que os municípios pudessem se preparar para a difícil convivência com as instalações industriais, com o tráfego de produtos perigosos, com o recebimento de inflamáveis, com a estocagem de venenos altamente tóxicos.

E enquanto não há recurso algum para que se crie um sistema de vigilância, acontecem casos como o da barcaça Gisela, que derramou mais de 500 toneladas de óleo no Estuário, recentemente. Tratava-se de uma chata, sem as mínimas condições de segurança, que permaneceu durante longo tempo junto ao Terminal da Alemoa. Até que o óleo caísse no mar, poluindo as praias, os mangues. Tornando o Estuário ainda pior do que já é.

Oficiosamente, sabe-se que, diante da absoluta falta de condições, existe um esforço no sentido de atuar em conjunto, no combate às agressões ao meio-ambiente. E que envolve, de certa forma, a Cetesb, os Bombeiros e a Capitania dos Portos. Há também o Plano de Auxílio Mútuo e a Cipa da Codesp. Em qualquer dos casos, é muito pouco para uma região tão explosiva e tão ameaçada como a nossa.

Agora, a Cetesb anuncia quatro projetos específicos para a Baixada Santista, para o levantamento dos oleodutos, das rotas utilizadas pelas carretas com cargas perigosas e das áreas de armazenagem dos produtos e, finalmente, a implantação de um esquema de atendimento a acidentes. Sinal de que pelo menos começa a existir certa preocupação.

Mas não são os planos que devem ser discutidos: o que importa realmente são os meios para executar estes planos. Para que se inicie realmente um programa de prevenção e combate a acidentes ambientais, diminuindo a insegurança que nos assola, serão necessários recursos, equipes técnicas, equipamentos, veículos, barcos, laboratórios etc.

Como habitualmente a distribuição de verbas é política, quem garante que haverá dinheiro para tanto?

E há ainda um aspecto importante: a Baixada Santista, pelo grau elevadíssimo de risco que apresenta, colocando em perigo permanentemente mais de um milhão de pessoas, deveria merecer prioridade absoluta, tanto a nível federal quanto estadual. É aqui que estão os maiores problemas, é aqui o local em que a vida humana vale cada vez menos, está cada vez mais ameaçada.

"Nenhum bombeiro do mundo conseguiria combater o isocianato na Índia. Bombeiro nenhum do mundo conseguiria apagar o incêndio da Vila Socó", sentencia o coronel Nilauril, com a experiência de quem assistiu as cenas dramáticas de gente correndo e se atirando nas valas, fugindo - sem conseguir - do fogo.

Pois se não há como combater as tragédias - o que fazer quando houver um grande vazamento de amônia, que mata quase que instantaneamente? -, só há uma saída: é evitar que as tragédias aconteçam. E para tanto é preciso que, ao lado das palavras, venham os atos. Que venham os recursos, verbas, equipamentos, pessoal técnico. Tudo, enfim.

Antes que não reste mais nada, só lamentações.


Caminhões de todas as regiões cortam a Baixada com uma infinidade de produtos químicos.
Mas nem por isso, as autoridades são comunicadas sobre as cargas
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria

Unidade quer mobilização

A Unidade Sindical está organizando um amplo debate sobre a insegurança da região, com a participação da comunidade e autoridades. Entre outros tantos assuntos, será discutido "como boicotar uma empresa que polui, que estoca materiais perigosos".

Este é o depoimento de Uriel Villas Boas, presidente da Unidade, a respeito das múltiplas ameaças existentes na Baixada:

"Em primeiro lugar, a cada dia ficamos mais preocupados com a comprovação de que vivemos cercados por um lado pela poluição; de outro pelos inúmeros produtos inflamáveis, que a qualquer momento podem nos levar pelos ares. E o mais grave é que as autoridades do setor, como os bombeiros, a Cetesb, são conhecedores do problema e pouco podem fazer, seja em razão da legislação não lhes dar muita cobertura, seja em função da deficiência dos equipamentos de que dispõem. Acresça-se a isto o fato de que há uma desinformação generalizada, seja a nível e opinião pública, seja a nível do trabalhador, que manipula, que lida com tais produtos, como o isocianato de metila ou o benzeno.

"Como cidadão, fico preocupado em saber que não tenho a quem recorrer. Estamos desprotegidos em termos de legislação, em termos de fiscalização efetiva. E sofremos a cada dia uma agressão, seja pelo vazamento de benzeno da Cosipa ou de óleo no Estuário.

"E mesmo as autoridades pouco contribuem. Como reagir diante da atitude do delegado de Polícia do Vale do Ribeira, que liberou um caminhão contendo amônia, mesmo sabendo que a Cetesb estava tomando providências? Irresponsabilidade do moço? Ou ele, de certa forma, agiu bem?

"Quando daquela verdadeira pantomima armada para mostrar à opinião pública que o tristemente danoso isocianato de metila é transportado 'com toda a segurança', o que constatamos? Que nem todo aquele aparato garantiria nada. Os bombeiros, a Cetesb, a Defesa Civil, a imprensa, todos nós que estivemos lá, contribuímos para que a Union Carbide aparecesse como uma empresa preocupada com a segurança. E uma análise fria levou-nos à conclusão de que nem mesmo o transporte foi feito com segurança. Não vimos se os tambores estavam mesmo protegidos, pois o contêiner saiu do navio para a carreta e daí para a fábrica, sem uma fiscalização efetiva.

"E o isocianato é apenas um dentre centenas ou milhares de produtos de alta periculosidade. E os outros? Quantos são? Quais são? Ninguém diz, é um segredo de estado. E temos então os vazamentos de nafta, de gasolina, de benzeno, de amônia, pelo menos os que ocorrem em vias públicas. Não vemos o que acontece dentro das indústrias, onde tudo é encoberto.

"Agora, não podemos apenas ficar preocupados, precisamos fazer alguma coisa. A poluição ambiental, essa estocagem de produtos inflamáveis, os riscos que sofremos, não têm um efeito imediato, a não ser quando acontece alguma tragédia, como a Vila Socó. A opinião pública, traumatizada, faz manifestações, reclama, vai aos jornais exigir providências. E tudo cai no esquecimento. Quem se lembra do benzeno que vazou na Serra, poluindo mananciais, matando tudo em volta?

"Este é um aspecto que dificulta o encaminhamento de uma luta nessa área. Mas tudo tem um começo. No nosso caso, constatamos que na Cosipa havia um vazamento de benzeno em sua coqueria. Que, além de poluir o ambiente, poderia causar uma tragédia, caso houvesse um incêndio. Mas a poluição veio seguida de contaminação e prejuízo à saúde dos trabalhadores. O efeito foi imediato. Houve uma intensa mobilização, muitos exames médicos no Sindicato dos Metalúrgicos, assembléias com grande participação. A coqueria passou por uma reforma, com a interdição da unidade poluidora. Quer dizer, houve uma mobilização, que trouxe resultados positivos.

"Por que não fazer isto a nível de comunidade? Esta é uma proposta, que visa atingir o seguinte objetivo: hoje, a comunidade está mais ou menos informada dos problemas. Mas não tem mecanismos de encaminhar suas lutas. Propomos então a realização de um debate. Já marcamos a data. Vai ser no dia 19 de janeiro, começando às 9 horas, no Sindicato dos Metalúrgicos. Vamos convidar, inicialmente, o secretário de Meio-Ambiente, a Cetesb, a Secretaria do Trabalho, médicos, advogados, para que debatam com as entidades populares, os  sindicatos, os estudantes, fazendo uma exposição do que existe de produtos agressivos, dos males que causam, da legislação, se é que ela existe.

"Em seguida, tiraremos propostas de luta. Vamos discutir como boicotar uma empresa que polui o ambiente, que estoca materiais perigosos, por exemplo. Ou pensar em impedir, de maneira pacífica, a entrada ou saída de tais produtos, seja no Porto ou nas fábricas.

"E vamos também fazer uma campanha de divulgação das conclusões do debate. Vamos envolver os prefeitos, os parlamentares, os órgãos do Governo. Não vamos querer que eles resolvam os problemas. Nós queremos, sim, que eles atuem dentro da sua jurisdição. E o façam com o apoio da comunidade.

"Quando o portuário souber que um determinado navio vai atracar com produtos perigosos, ele vai pensar duas vezes antes de meter a mão na carga. Se o trabalhador de uma indústria sabe que pode confiar numa entidade, ele vai lá e denuncia o que está ocorrendo, como está sendo estocado ou manipulado determinado produto.

"Este é o nosso objetivo, conscientizar o trabalhador de que precisa defender-se, defendendo a comunidade. E esta precisa defender-se também, participando da solução dos problemas.

"É claro que pensamos também na mudança de governo. E vamos aproveitar isso. Vamos levar propostas a partir de nossas experiências, para que as cidades não estejam sujeitas aos riscos atuais. Acreditamos que é possível fazer alguma coisa. Estamos tentando. Estamos discutindo o seminário numa primeira etapa. E não vamos parar nisto apenas. Vamos mais adiante, num trabalho permanente, estimulados pelo conhecimento que vamos adquirindo, em função das discussões que estamos tratando a partir da questão benzeno-leucopenia, na Cosipa".

Quinta-feira, no Sindicato dos Metalúrgicos, haverá nova reunião para discutir detalhes do seminário.


Mais que a filosofia de segurança no trabalho, é preciso uma ação
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria

Cetesb tem projetos para a Baixada

A situação é gravíssima, é preciso reconhecer. Mas ainda não é o fim do mundo, ainda há tempo para que se tomem as providências necessárias e, finalmente, fazer com que a Baixada Santista tenha um pouco mais de segurança, deixando de ser a região mais perigosa do mundo. Essa é a  opinião de Luís Antonio de Melo Awazu, coordenador de Operações do Conselho de Defesa do Litoral.

A solução é o planejamento. Awazu revela que a Cetesb, dentro do Programa de Prevenção de Acidentes Ambientais, elaborou quatro projetos específicos para a Baixada, exatamente com o objetivo de equacionar a questão da segurança.

O primeiro projeto é o levantamento de todos os oleodutos, depois o levantamento de todos os sistemas de armazenagem de produtos perigosos; a seguir, levantamento das vias de transporte e, por fim, a adoção de um esquema de atendimento a acidentes.

Além de permitir o acesso a informações vitais, os quatro projetos têm outra finalidade, provavelmente mais importante: exigir uma postura mais responsável por parte de todas as pessoas envolvidas. "É preciso conscientizar dos perigos e da necessidade de medidas se segurança, e não esperar que os acidentes aconteçam para começar a discutir".

Awazu reconhece que existe, na região, um "complexo muito sério envolvendo indústrias, oleodutos, o próprio Porto". Mas ressalta a necessidade de se tentar conviver harmonicamente com isso. "Claro, sem permitir excessos. Alguém quer instalar uma indústria? Muito bem, só o que esse alguém precisa saber que existe um custo social. E esse custo social é a segurança, é o respeito ao meio-ambiente. Por que só nós, a população, nossas famílias, temos que arcar com os custos da industrialização?"

A responsabilidade existe e deve ser assumida, observa Awazu. "Toda a comunidade precisa entender que não é só a Cetesb que tem essa responsabilidade. A responsabilidade é de todos, inclusive da comunidade. Não adianta nada ficarmos brigando como Dom Quixote. É preciso que cada um seja o seu fiscal. E comece a gritar, exigir uma postura condizente com a situação. Ainda é tempo de começar a botar a mão na massa, quebrando esses feudos que existem. E acredito que é possível".

Awazu reafirma a importância da implantação dos projetos para a Baixada e, ao mesmo tempo, destaca a "tremenda contribuição que A Tribuna está dando com essa série de reportagens. É isso que estamos precisando, que cada um se sinta responsável. Quem estiver operando uma válvula, numa empresa, precisa sentir a responsabilidade que tem e que diz respeito a toda a comunidade. Atrás dele, existem milhares de pessoas, com direito à segurança, à vida".