IV - Princesa dos mares
ovos marcos de
prosperidade e civilização acabam de ser fincados na opulenta cidade marítima de Santos, já hoje um dos primeiros portos da América do Sul, e que
arrojadamente se arma e se encaminha para ser contado como empório do Atlântico e do comércio mundial.
Foi a monotonia do assunto político nos jornais desta capital que nos levou a passar os olhos e
distraí-los pela imprensa de S. Paulo, devorando colunas cerradas de descrições e discursos sobre as festas ultimamente celebradas em Santos, a
propósito da inauguração das magníficas obras de saneamento e da futurosa estrada de ferro de Juquiá.
Não perdemos tempo; ganhamos algumas belas surpresas e vimos que o acontecimento tinha alcance
nacional e social muito mais elevado do que se podia crer ao primeiro golpe de vista.
Toda gente sabe que Santos pôs à prova de fogo o espírito empreendedor dos paulistas e dos filhos
arrojados de outros estados, nomeadamente do Norte, atraídos pelo comércio do seu esplêndido porto natural, pagando, embora, largo tributo de vida
pela formidável letalidade da cidade, bela e operosa, que não se conformava com a sua sorte e tinha a consciência dos seus gloriosos destinos na
civilização brasileira.
Conhecemo-la nesse mesmo período mortífero em que, com a maior naturalidade deste mundo, corriam
as notícias do desaparecimento brusco de amigos e conhecidos, na véspera fortes e robustos. Semelhante situação passou a ser história antiga, depois
de construído o cais de atracação que o governo federal confiou à Companhia Docas de Santos.
Extinguiu-se a febre amarela, ficou imediatamente feito o saneamento do litoral; mas Santos não
parou aí e quis ser uma cidade moderna, digna do seu poderio econômico, luxuosa, hígida e agradável aos forasteiros.
Daí as obras agora inauguradas, a intervenção direta dos governos do estado, fazendo-se sentir
desde 1892, na encampação da rede de esgotos, nos estudos para a sua reforma, no contrato para a distribuição de água potável abundante e pura, na
criação de higiene domiciliar, finalmente, na execução de todas as obras constantes do plano do dr. Saturnino de Brito, serviço que se diz ser o
mais completo possível, monumento de Engenharia Sanitária, atestando a capacidade técnica dos brasileiros e servindo de exemplo às nossas cidades
marítimas, onde o visitante ainda hoje pisa cauteloso, mal impressionado com o desgraçado aspecto das ruas, as praias lamacentas, a ausência
absoluta da higiene pública e doméstica.
Ora, o que cumpre salientar, em todo esse magnífico hino de trabalho e progresso que foram as
festas recentes da cidade de Santos, é, primeiramente, a firmeza do governo paulista, continuando a sua tarefa civilizadora através das maiores
crises financeiras e concluindo-a enérgica e rapidamente logo que o Tesouro estadual se robusteceu com os resultados milagrosos da valorização do
principal produto da lavoura do grande estado brasileiro.
Em segundo lugar, é de elementar justiça, é um dever cívico, é um estímulo à iniciativa dos que
trabalham, repercutir na imprensa a vitória brilhantíssima que acabamos de conquistar no campo da Engenharia Sanitária, com a execução das obras do
saneamento de Santos.
Aos que maldizem da nossa raça, Santos será sempre um desmentido solene e vibrante. As suas
belezas naturais foram logo descortinadas pelo português, que aqui veio fundar uma nova nacionalidade.
Mais tarde, as suas péssimas condições sanitárias não impediram o afluxo de brasileiros, vindos de
todos os pontos do país.
O estrangeiro passava sem se deter em Santos. O estado de S. Paulo crescia em prosperidade, mas só
o brasileiro arrostava com a vida de Santos, onde a morte vibrava os seus golpes incessantes, zombando do próprio arrojo das gerações de moços que
ali se instalavam.
Foram capitais indígenas que cimentaram as docas de Santos, tornando-o um dos primeiros portos do
mundo, uma princesa dos mares, um entreposto do comércio universal.
Em suma, agora é ainda aí que um brasileiro firma escola na Engenharia Sanitária, segundo a
autorizada opinião de outro profissional brasileiro, como o dr. Baeta Neves, que muito viajou e estudou o assunto, considerando o dr. Saturnino de
Brito uma glória nacional, o exemplo vivo do trabalho sistemático, aquele que rompeu com o torpor colonial que nos abatia o espírito, deixando-nos
em miserável dependência passiva da intervenção estranha para a solução dos nossos problemas.
O saneamento de Santos é uma conquista de civilização brasileira, uma contribuição inteiramente
nossa no trabalho universal e eterno de adaptação do meio físico, irradiando as possibilidades da vida sobre o planeta.
E foi diante das obras ora inauguradas no glorioso pórtico do estado de S. Paulo, que as mais
competentes vozes de profissionais não hesitaram em reclamar para todo o Brasil as mais sinceras alegrias e o mais justo desvanecimento.
Santos e S. Paulo festejavam o seu progresso, mas o Brasil conquistava naquele trabalho, executado
por um profissional brasileiro, a sua definitiva "emancipação intelectual e prática".
Mais uma vez S. Paulo dá ao resto do país um duplo exemplo de iniciativa e de civismo, oferecendo
a mais apropriada oportunidade para se manifestar, em toda a sua pujança técnica, o método original de um filho do país, que abre horizontes novos à
engenharia sanitária das cidades.
Compreendemos as palavras de entusiasmo que proferiu em Santos o dr. Baeta Neves, enaltecendo
francamente a vitória daquele que chama mestre na importante especialidade a que ambos se dedicam.
Votado desde cedo, com o ardor da mocidade, à conservação das florestas e aos métodos
aperfeiçoados da indústria agrícola, oxalá o digno discípulo possa conquistar para a higiene dos campos o que o glorioso mestre dr. Saturnino de
Brito acaba de obter, com um colossal sucesso, para a higiene urbana.
Não lhe faltam, para isso, a tenacidade e o descortino intelectual. O que
é preciso é que S. Paulo tenha imitadores nos governos dos outros estados, capazes de sacudir para longe o torpor colonial, não atirando ao monturo
as pérolas brasileiras, como se eternamente precisássemos importar a ciência e a arte exóticas...
Curvello de Mendonça.
(O Paiz, 29 de abril de 1912)
Imagem publicada na obra da Comissão de
Saneamento de Santos (página 43) |