INTRODUÇÃO Viveu
Benedicto Calixto embevecido com as coisas de sua Fé, de sua Arte e de sua Terra. Crente fervorosíssimo, deliciava-se com o estudo das grandes
tradições do catolicismo. Empolgavam-no os lances da vida dos santos e a aspereza dos trabalhos de nossos catequistas primevos. Punha todos os
recursos da vocação pictórea ao serviço da piedade intensa. E ao mesmo tempo que se ocupava em retraçar episódios da existência dos mártires
célebres da Igreja, como Santa Cecília e S. Sebastião, ou imaginava quadros sobre os grandes assuntos dos Evangelhos, estudava com paixão os
primórdios de nossa catequese litorânea.
Nas belas praias de sua querida Itanhaém, de S. Vicente, S. Sebastião e Ubatuba, em face daqueles
matizes de mar que com tanta fidelidade fixara na retina, deleitava-se ora em colocar Anchieta a escrever nas areias o poema a Nossa Senhora, sob a
aclamação das revoadas de gaivotas, ora em apresentar as surpresas da ameaça de agressão súbita aos gloriosos reféns de Iperoig, pelos tamoios, logo
desarmados pela aparência do Taumaturgo, ora ainda em ressuscitar as cenas cruéis da chacina dos mártires de Cananéia e assim por diante.
E como amava colocar nas suas soberbas marinhas as belas caravelas e os bojudos galeões de velas
avermelhadas pelo sangue das Cruzes de Cristo! Como se sentia feliz ao idear a construção do anedotário pictóreo dos lances da primeira história do
litoral paulista! Como o desembarque de Martim Afonso de Souza, do Museu Paulista, a fundação de Santos, da Bolsa de Café etc. etc.
Desta conjugação de afetos à terra natal e à tradição de sua gente decorreu-lhe muito naturalmente
o pendor ao estudo da História, de que deixou excelentes padrões, como ninguém ignora.
Professava Capistrano, pelos seus conhecimentos da História de S. Paulo, o mais real apreço. E
consagrava-lhe a maior simpatia, chamando-lhe Béné, amistosamente. Horas e horas, debatiam em longas conversas sobre os nossos primeiros
séculos, pois Capistrano, sabedor exímio de todas as questões da nossa tradição, tinha particular preferência pela dos paulistas, a das bandeiras,
dos criadores de gado, da mineração, como a cada passo demonstrava.
Martim Francisco vai morrer logo - dizia-me sobremodo acabrunhado o mestre em princípios de abril
deste ano. - E o bom Béné também não durará muito. É duro perder assim os amigos de seu tempo. Morreu Jaguaribe, não irei mais a S.
Vicente...
Homem da mais absoluta probidade, procurou sempre Calixto, e com o maior afinco, em seus trabalhos
e quadros históricos, respeitar a verdade dos documentos e fugir do anacronismo. De sua obra tradicional, sobressai este belo livro das
Capitanias Paulistas, de que seus amigos dedicados e admiradores preparam a linda edição agora reaparecida em segunda tiragem, ajuntando à
primeira elementos angariados pelas últimas e árduas pesquisas do autor, nos arquivos regionais e nacionais.
Nele se esclarecem os pormenores daquele intrincadíssimo e interminável pleito Monsanto-Vimieiro
que, por um triz, escapou de cindir os paulistas em duas circunscrições territoriais.
Corrige Calixto os enganos dos cronistas, à luz dos documentos, e discrimina as quatro fases do
litígio famoso, capital para a história de S. Paulo. Esta a questão ventilada pelo erudito itanhaense com grande abundância de documentos e
sobretudo o criterioso exame da pendência que realizou à luz de prolongada meditação e perfeita assimilação do assunto.
Haverá ainda quem lhe dê retoques a detalhes; ninguém escreve história integral. Estes provirão do
maior esclarecimento das fontes, sobretudo do que há no Arquivo de Marinha e Ultramar de Lisboa. Mas o arcabouço arquitetural de Calixto
representará sempre um belo edifício das letras históricas de S. Paulo.
Foi um livro feito com amor e é um livro da boa fé e da inteligência.
Antepondo-lhe estes desvaliosos conceitos, seja-me permitido agradecer ao promotor, aos
promotores, desta bela segunda tiragem das Capitanias Paulistas, a honra que me deram de o apresentar ao público e o prazer que me
proporcionaram por poder prestar ao saudoso amigo a homenagem da minha real saudade e do meu sincero apreço à sua obra.
Affonso de E. Taunay
S. Paulo - Dezembro - 1927
Imagem: adorno de página da obra |