A epopéia dos Bandeirantes
É este o título do belo vitral que mostro na capa deste folheto e que decora o
teto do Hall deste magnífico Palácio da Bolsa.
O nosso alto comércio, na luta cotidiana, em trabalho exaustivo e estafante para dar
expansão à nossa riqueza agrícola, não se esquece que também a arte é um dos elementos mais poderosos para o seu bem-estar e um dos que mais
contribuem para a educação do povo. Eis a razão por que tanto protege e estimula a arte nacional.
Deste preclaro modo de pensar é que nasceu também a idéia de enriquecer o suntuoso
edifício que hoje se inaugura com um vitral que, sendo uma verdadeira obra de arte nacional, fosse também uma eloqüente prova do carinho e do amor
com que os nossos negociantes progressistas tratam as artes.
A Cia. Construtora de Santos, à qual foi confiada a construção, não hesitou em tornar
realidade esta bela idéia e escolheu para executar o esboço do vitral o já muito conhecido artista sr. professor Benedicto Calixto.
Uma simples vista d'olhos sobre a estampa da capa e a leitura da descrição que se
segue demonstram que o grande pintor correspondeu plenamente à confiança nele depositada e que não podia ter sido melhor a escolha dos motivos: são
todos assuntos que se ligam à nossa história e principalmente aos fatos mais brilhantes do passado de São Paulo.
Entretanto, sabiam os idealizadores desta obra que à bela idéia é necessário aliar a
boa execução e a mim coube a honra de ser-me confiado o confeccionamento deste difícil trabalho. De boa consciência posso dizer que não poupei
esforços nem sacrifícios para poder apresentar aos idealizadores e ao público uma obra de arte que fizesse jus à confiança com que fui distinguido.
Mas bem maiores foram os esforços dos srs. professor Calixto, seu digno filho dr. Sezinando Calixto e dos artistas meus auxiliares.
A todos eles apresento os meus sinceros sentimentos de gratidão, principalmente aos
primeiros, que foram incansáveis na correção e no desenho da obra. o resultado compensou plenamente todos os trabalhos, todas as energias
despendidas. De fato, o vitral agradou aos seus idealizadores e ouso esperar que também estará a inteiro contento dos distintos visitantes do
Palácio da Bolsa.
Setembro de 1922.
"A epopéia dos Bandeirantes":
Eis como o professor Benedicto Calixto descreve este seu painel histórico:
Divide-se esta composição em três motivos ou ciclos diferentes da nossa História:
No centro: 1º - "A visão do Anhangüera, a Mãe do Ouro e as Mães d'Água".
Aos lados: 2º - "A Lavoura e a Abundância". 3º
- "A Indústria e o Comércio".
"A visão do Anhangüera":
Este primeiro quadro representa o "Ciclo do ouro e das esmeraldas", no período que
vai de 1560 a 1728. Foi este o tempo dos "bandeirantes" de coragem inaudita, que se embrenhavam pelo sertão à procura dos tesouros fabulosos
de que contavam as lendas. Homens desta têmpera eram os dois personagens que aparecem à direita do quadro. São eles Bartolomeu Bueno da Silva,
apelidado "Anhangüera", e seu filho de mesmo nome e nesse tempo ainda um mancebo.
Foram estes dois destemidos sertanejos que em 1682 descobriram as ricas minas de
Goiás, na legendária serra do Martírio, notabilizando-se também como caçadores de índios. Em uma refrega com o gentio goiás, perdeu o pai o olho
direito, vazado por uma flecha certeira.
A energia inquebrantável de seu caráter e o seu aspecto feroz deram lugar a que os
indígenas apelidassem este Bandeirante "o Anhangüera", que quer dizer "O Diabo Velho". Quão apropriado era este apelido mostram bem a
estampa acima e o seguinte episódio, prova da diabólica astúcia com que agia o "Diabo Velho":
Tendo observado no sertão goiano que as mulheres traziam belas pepitas de ouro em seus
adornos, e não podendo obter dos índios a indicação precisa do local em que era achado este metal precioso, resolveu o Anhangüera atemorizá-los, a
fim de conseguir as informações de que necessitava.
Ameaçou-os então de lançar fogo à água dos lagos e dos rios, fazendo ver aos índios
que toda a tribo pereceria de sede se persistisse em não indicar-lhe o local das minas de ouro; e juntando a ação à palavra, o astucioso Anhangüera
exibiu-lhes uma vasilha com aguardente, à qual lançou fogo, deixando que todo o álcool se consumisse à vista dos selvagens estupefatos.
Assim arrancou o Anhangüera dos ingênuos goianos a indicação exata das desejadas
minas.
Perto de quarenta anos após esta primeira expedição, tendo já falecido o velho
Anhangüera, seu filho, conhecido também pelo mesmo apelido de Anhangüera, organizou outra "Bandeira" e voltou aos longínquos sertões de
Goiás, a fim de explorar as famosas minas da Serra do Martírio, descobertas por seu pai.
Esta expedição, porém, desviou-se do antigo roteiro e andou durante anos errante pelas
brenhas do sertão, sem poder atingir o almejado ponto. A Serra do Martírio, que os pobres homens entreviam ansiosos todos os dias, como que fugia
diante da caravana, e jamais de "desencantava" das brumas e das enganosas miragens daquele inóspito sertão goiano!
Parte dos aventureiros já havia desertado ou morrido de fome e de febres palustres e
só poucos companheiros restavam ainda fiéis ao seu teimoso e destemido chefe.
É que o Anhangüera havia prometido ao capitão-general de São Paulo - Rodrigo César de
Menezes - e à sua própria esposa e filhos que "ou voltaria a São Paulo com o rico produto das minas de Goiás, ou morreria no sertão".
O Anhangüera cumpriu a sua palavra: descobriu de novo as ricas minas, conquistou o
imenso sertão. Voltou a São Paulo carregado de tesouros e glorificado por todos; mas morreu no esquecimento e em pobreza extrema, vendo, à última
hora, os seus bens seqüestrados pelo fisco colonial!
Bem é que a arte e a história o glorifiquem hoje.
"A Mãe de Ouro e as Mães d'Água":
Existe ainda na tradição dos nossos caboclos do interior, e mesmo do litoral, a lenda
da "Mãe de Ouro e das Mães d'Água". Eram as náiades (ninfas das fontes) e as limoniades (ninfas dos lagos e dos bosques) que presidiam
e guardavam os metais preciosos e as gemas faiscantes, tão apetecidas em todos os tempos pelo homem.
E esses tesouros eram cercados de terríveis monstros, reais e imaginários, que velavam
dia e noite sobre aquelas recônditas riquezas. Era a "guarda" que defendia as entradas das cavernas e as margens das lagoas e faisqueiros,
onde rebrilhavam as faiscantes palhetas e pepitas.
A crendice popular afirma, ainda hoje, que as jazidas auríferas, ocultas nas
vivocas e nas votupocas (N.A.: montanhas que rebentam, que explodem) das serras
alcantiladas, se manifestam e como que se comunicam entre si por meio de verdadeiros jatos luminosos, semelhantes às esteiras das estrelas cadentes
e dos bólidos que se cruzam e explodem no espaço, nas noites cálidas e calmas.
São as escaramuças da Mãe d'Ouro! - exclamam sempre o caiçara e o caboclo do sertão,
ao ver a esteira luminosa de um bólido que corta a abóbada estrelada.
É a dourada Ninfa, realmente, que emergindo das chamas produzidas pelas explosões das
votupocas, ou surgindo dentre as fosforescências dos fogos-fátuos e dos baêtatáes (N.A.: diabo de
fogo ou fogo do diabo) (N.E.: em ortografia atualizada, boitatás), exalados pelas lagoas e pântanos paludosos, vem,
qual salamandra, distribuir as suas riquezas pelas náiades e pelas limoníades conhecidas por "Mãe d'Água".
A lenda, por mais ingênua e absurda que pareça, tem sempre um fundamento razoável. De
fato: o ouro e as pedras preciosas desagregados dos montes, por efeito do constante trabalho erosivo das águas, rolavam e vinham, outrora, como
ainda hoje vêm, depositar-se, em aluvião, no fundo dos lagos e no alvéu dos nossos rios.
Não nos parece, portanto, a "Mãe d'Ouro" dos montes a derramar constantemente os seus
dons, os seus tesouros, sobre os receptáculos que lhes oferecem as "Mães d'Água" dos lagos e dos rios?
Era ainda, pela ação da ninfa dos rios e das lagoas auríferas, que os bandeirantes
paulistas formavam as faisqueiras artificiais.
As visões e miragens sedutoras que deslumbravam a vista e a alma dos anhangüeras,
através do sertão goiano, se eram um mito ou uma alucinação, tinham contudo algo real. Bem reais eram os monstros que guardavam ferozmente as minas
e povoavam os rios e lagos.
O mais terrível, o mais temível desses monstros era, por certo, o índio Payaguá, que,
como verdadeiro anfíbio, terrível como um ururá (N.A.: jacaré enorme, de papo amarelo),
emergia inesperadamente das balseiras de aguapé e dos juncais, diante da tosca canoa do bandeirante, empunhando, em atitude ameaçadora, o arco
retesado e a flecha sempre embebida no peçonhento curare.
O Payaguá era o inimigo mais encarniçado e temível do bandeirante paulista.
Este "Ciclo do ouro, da prata, do ferro e das pedras preciosas", 1560-1728, um dos
mais brilhantes da nossa História, trouxe, entretanto, grandes proveitos, mas também grandes males ao Brasil.
Da procura dos tesouros resultou a penetração e conquista do vasto sertão, a expansão
territorial. Asseguraram-se e definiram-se os limites com as possessões espanholas, formaram-se as grandes capitanias de Santa Catarina, Mato
Grosso, Goiás e Minas Gerais.
Mas, por outro lado, muito sofreram nesse período as capitanias antigas e
principalmente a Lavoura. Com o êxodo contínuo de seus habitantes para aquelas longínquas paragens, a capitania de São Paulo despovoou-se. A pobreza
e a ruína em que caíram as primitivas povoações fizeram com que muitas delas desaparecessem completamente. O ouro extraído das minas contribuiu
apenas para o empobrecimento da colônia lusitana nesta parte do Brasil, pois tirou à Lavoura muitos braços valiosos.
Esta principal fonte de riqueza ficou quase extinta e completamente abandonada. Foi
esse o maior mal que causou à colônia o Ciclo do Ouro.
"Segundo ciclo":
"A Lavoura e a Abundância"
- Esta segunda fase, representada no 2º quadro, inicia-se nas antigas donatarias de Martim Afonso e Pero Lopes, então denominadas "Capitanias de São
Paulo" (1729). Os bandeirantes paulistas, já desacoroçoados e fatigados pelas aventuras e pela rudeza da vida nômade do sertão, se retraem ante os "amáveis
convites" e as "atraentes munificências" com que lhes acenavam ainda os soberanos da metrópole; e, desiludidos, voltam aos seus lares,
então empobrecidos e abandonados.
A lavoura, estiolada e quase extinta, ressurge então vigorosa pelo labor daquele mesmo
braço forte que, até então, só soubera manejar a bateia e o facão de mato, a espada e o mosquete.
É este o mesmo período da lavoura, que tendo início no alvorecer do século 18 - ainda
no regime colonial - transforma-se depois na "Fase de Abundância", com a promulgação da Lei Áurea que libertou os escravos no Brasil e intensificou
poderosamente a imigração subvencionada e espontânea no fim do segundo Império. É este surto de progresso que vem, finalmente, coroar e caracterizar
o "Ciclo da Abundância"! O cenário deste quadro representa, pois, um terreno baldio e agreste transformado em vicejante e próspera cultura agrícola.
No primeiro plano, ao centro, um gênio, simbolizando a lavoura, chama os homens ao
trabalho, mostrando-lhes as recompensas que a terra generosa lhes oferece. Ao lado esquerdo, outro gênio de mulher, simbolizando "A Abundância", tem
em torno de si todos os ricos produtos da lavoura: o café, algodão, álcool, açúcar, milho, feijão, arroz etc. Do lado oposto, colonos com
instrumentos de lavoura, cercados de animais domésticos, saúdam e aclamam a lavoura, que os enche de riquezas.
"Terceiro ciclo":
"A Indústria e o Comércio"
- Este terceiro ciclo é a conseqüência natural do imediato: pois o desenvolvimento das diversas culturas nas terras conquistadas e desbravadas pelos
bandeirantes, sobretudo o grande desdobramento da lavoura do café em zonas até então despovoadas, deveria forçosamente acoroçoar e promover o
incremento da Indústria e do Comércio, "Urbi e Orbe", conforme o mote que se lê sobre o globo terrestre, no primeiro plano do 3º quadro.
O ciclo da "Indústria e Comércio" tem o seu período de intensificação no regime
republicano. O quadro representa um postiço monumental (a Bolsa de Café), no qual se ostenta um gênio simbolizando a Indústria e o Comércio, com a
túnica e o manto da realeza, empunhando um cetro coroado pelo caduceu de Mercúrio. Tem na destra um título bancário, que oferece a outro gênio de
mulher que simboliza a Pátria.
Ao lado da primeira figura, uma caixa-forte, aberta, contém valores comerciais,
acessórios e atributos relativos ao jogo e negócios da Bolsa de Café.
D'outro lado desta figura central, dois operários ostentam os símbolos da Indústria e
do Trabalho, que são, realmente, os elementos primordiais do progresso e da verdadeira riqueza: porque "ouro é o que ouro vale", conforme se
lê em um fardo de mercadorias do "Segundo Ciclo".
No último plano deste quadro divisa-se uma seção das Docas do Porto de Santos, com os
respectivos guindastes, locomotivas e grandes transatlânticos carregando café. No céu voa um aeroplano, como a lembrar que Santos foi o berço do "Padre
Voador", em 1724.
Vejamos, agora, como se constitui:
"A moldura":
Os diversos motivos que compõem a moldura dos três quadros acima descritos são como
segue.
Nos oito medalhões, os retratos dos principais bandeirantes - Braz Cubas, Affonso
Sardinha, O Anhangüera, Fernão Dias Paes Leme, Domingos Jorge Velho, Carlos Pedroso da Silveira, Antonio Raposo Tavares e Paschoal Moreira Cabral -
que representam as principais entradas e descobrimentos no sertão desde 1556 até 1722.
Os ornamentos que enriquecem a moldura são em estilo "renascimento italiano", de
acordo com a arquitetura do edifício. Vêem-se aí estilizados não só os produtos da lavoura paulista - café, a cana de açúcar, o arroz, o milho etc.
- como também a fauna, isto é, os principais animais: aves, mamíferos, répteis etc.
Os animais, que compõem o friso da moldura central, "Visão do Anhangüera", são
os duendes e gênios maus da floresta: boitatás, Caaporas, Sacis-pererê, Urutaus, Cachebêbus, Curupiras etc.
Nos outros quadros laterais ao do centro, a ornamentação dos frisos é mais serena e
compõe-se de aves canoras e de mais espécies, que povoam ainda as nossas florestas.
As guarnições dos frisos compõem-se de barras e palhetas de ouro e prata, bem como de
gemas preciosas: o diamante, a esmeralda, o topázio, o rubi etc.
São Vicente, julho de 1921.
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