Malhar o Judas
Tradição folclórica que exterioriza emoções
Ivanir Fernandes Xavier
Hoje é dia de malhar Judas. Seja na forma de um político - Collor, Zélia e seu plano econômico não vão sair ilesos -, de um dirigente, da fofoqueira do bairro ou qualquer pessoa que incomode, os bonecos vão subir aos mastros dos postes e, ao meio-dia, serão malhados a pauladas, explodidos, queimados, atropelados, enfim, eliminados. Como bodes expiatórios, é neles que o povo vai extravasando a sua insatisfação com a situação reinante.
No começo, o boneco representava a figura do Judas Iscariotes; aos poucos, outras personagens foram substituindo o traidor de Cristo, numa manifestação folclórica tradicional, da qual participa toda a comunidade, do avô ao neto. Em Santos, essa tradição impera em todos os bairros, indo da zona mais pobre à da classe mais privilegiada, como Gonzaga e Boqueirão. Os nossos judas aparecem em postes, amarrados em carros, deitados nas ruas e, em muitos casos, deixam até testamentos. Além disso, às vezes, o ato da malhação é realizado ao som de músicas especialmente compostas para a ocasião.
O judas no Sábado de Aleluia, no Rio de Janeiro, em cena desenhada e descrita por Debret
A malhação de Judas está incorporada aos costumes dos povos de quase todo o mundo. Segundo a folclorista Meire Berti Gomiero Fonseca, que vem pesquisando o assunto há alguns anos junto com equipes formadas por seus alunos, a queima do Judas parece se relacionar ao rito pagão do Fogo Novo, herdado dos hebreus, sobrevivendo entre os povos civilizados. Na Córsega, no século XIX, era costume um grupo de rapazes percorrer no Sábado de Aleluia as comunas da ilha gritando "Fogo Novo"; na Lorena Francesa, esse fogo era feito com palma benta dos anos anteriores na porta do cemitério; na Alemanha, vestiam um menino de Judas, para depois sofrer a prova do fogo sendo balançado pelos mais fortes e altos por cima da fogueira.
Cada lugar incorporou a queima de Judas de uma forma. Em Mittelbron e Nelling, os bonecos eram queimados em frente aos cemitérios e igrejas; no Alto Reno, queimavam-se vestimentas e ornamentos eclesiásticos no cemitério, bem como velhas cruzes e caixões. Na Suíça, o Judas era morto com fuzil, queimado, havendo o costume de quebrar louças sobre ele, enquanto em Portugal era submetido a julgamento, depois enforcado e queimado, o que provocava estouros de bombinhas colocadas dentro do boneco.
Há países em que a queima do Judas representa um repúdio às forças do mal e, por isso, o ato é praticado no início ou no fim das colheitas, para espantar os demônios que esterilizam as plantações. No Brasil, por sua vez, sabe-se sobre a malhação de Judas desde o século XVIII, quando, no Rio de Janeiro, os bonecos traziam fogos de artifício presos no ventre, que eram acesos no Sábado de Aleluia, e ardiam sob os aplausos frenéticos do povo, como uma vingança à morte de Jesus.
Ainda segundo Meire Berti, as primeiras descrições desse evento no Brasil foram feitas pelo gravurista Jean Baptiste Debret. De acordo com ele, o Judas era confeccionado com roupa e tecido de palha, com máscara e boné de lã que lhe formava a cabeça. Também eram colocadas bombas nas juntas para melhor dilaceração das partes na hora da queima, que era precedida pelo enforcamento.
"Na dinâmica do folclore, a figura do Judas Iscariotes foi substituída por críticas à
situação reinante" |
O Judas de antigamente não é mais o mesmo. O traidor de Cristo de hoje veste roupas e sapatos modernos, usa gravata e chapéu e tem, até mesmo, companheira, que vai para a fogueira junto com ele. O Judas de hoje não pode falar, mas muitas vezes seu recado vem através de uma tabuleta, onde quem o executa extravasa toda a sua insatisfação. Além disso, em muitos lugares no Brasil, faz-se até o seu julgamento e, antes da malhação, lêem o seu testamento, que, na maioria das vezes, é apresentado na forma de versos.
Em Santos, a malhação de Judas tem sido estudada por Meire Berti Gomiero Fonseca e seus alunos, que observaram dados que demonstram muitas peculiaridades nos bonecos executados e no próprio ato da malhação. Esses dados foram recolhidos para o Centro de Estudos Folclóricos de Santos, do qual Meire Berti é presidente. Folclorista e professora, ela tem comprovado que Santos cultiva a tradição da malhação do Judas em todos os bairros e que cada boneco tem abordado, além dos alvos preferenciais, que são os políticos e dirigentes do País, os seus próprios problemas e situações, como um buraco de rua, a falta de esgoto, a fofoqueira que não dá sossego para ninguém, o homem traído etc.
O que Meire Berti tem notado é que o Judas que é confeccionado em Santos, na maioria dos casos, não é mais o Iscariotes. Em determinados lugares, ele aparece com companheira, tem testamento e uma malhação diferente. Ela lembra que no Conjunto Castelo Branco, do BNH de Aparecida, até há pouco tempo os moradores, antes de malhar o Judas, o colocavam no meio da rua para que fosse atropelado pelos carros. "Como entre nós o atropelamento é uma conseqüência da falta de responsabilidade no trânsito, os moradores faziam sua crítica através dele", afirma.
O judas no Sábado de Aleluia, no Rio de Janeiro, em cena desenhada e descrita por Debret
Erotismo e educação - Outra característica dos Judas santistas é a pornografia, mas isso, segundo Meire, em nada descaracteriza a malhação como tradição folclórica, já que o folclore também tem a sua parte erótica e pornográfica. Entre os Judas de Santos, o problema do tóxico também tem sido bastante abordado, com os bonecos trazendo tabuleta alertando para o problema. Nesse caso, o Judas e, conseqüentemente, a tradição folclórica, têm o seu sentido educativo.
Um outro assunto bastante abordado entre nós, observado por Meire Berti, é o que diz respeito aos problemas que envolvem as agremiações carnavalescas. Através dos Judas, os sambistas cobram promessas que não foram cumpridas, externam a rivalidade entre escolas e manifestam sua insatisfação com os acontecimentos durante o Carnaval em grandes tabuletas afixadas nos corpos dos bonecos.
A tradição por aqui é amarrar os bonecos nos postes. Muitas vezes, eles são enforcados, mas, em outras, eles aparecem pendurados nas casas, deitados no meio da rua - caso observado ano passado (N.E.: em 1989), quando ao lado de um defunto existia uma tabuleta com as palavras Cruz Aids - ou sentados ao redor de uma mesa - na época da Diretas Já, foram encontrados, em Santos, bonecos que focalizavam políticos confabulando numa mesa de negociação. O que o santista põe dentro dos bonecos, para estourar ou queimar, também é muito variado: uns usam estopa embebida em querosene, outros fabricam até pólvora artesanal para explodir dentro dos Judas.
Na hora da malhação, é característico, entre as crianças e adultos santistas, usar paus com pregos e a exteriorização dos sentimentos através de frases do tipo: "Maldito! Traidor! Vamos matar esse patife! Vamos queimar essa porcaria! Um dia da caça, outro do caçador!" e muitos ouros. "Além da aceitação coletiva, pois toda a comunidade participa na confecção e malhação do Judas, essa tradição folclórica popular deve ser vista dentro de um contexto muito mais rico, já que nele encontramos um pouco e tudo: literatura (nos testamentos), provérbios folclóricos e música. É lógico que não em todos os lugares", salienta Meire.
Em todos os bairros - Em sua pesquisa sobre o assunto em Santos, Meire Berti reuniu dados que comprovam que a malhação de Judas não é uma tradição cultural só nos bairros periféricos. No ano passado, por exemplo, a equipe de alunos que acompanha a folclorista verificou a existência de seis bonecos só no bairro do Gonzaga. Aliás, é ali que mora Waldemar, que todos os anos confecciona um Judas dos tempos modernos: ele, invariavelmente, usa terno de boa qualidade, sapatos de primeira e não dispensa dentadura e peruca. Zelador de um prédio na esquina da Avenida Washington Luís e Rua Galeão Carvalhal, Waldemar fez muito sucesso com o Judas que coloca no poste existente no encontro das duas vias, que sempre tentava abordar as dificuldades por que passa o brasileiro.
Nego Wilson também é conhecido por confeccionar bonecos que são malhados no Sábado de Aleluia. Meire lembra que, por estar ligado à escola de samba Império do Samba, Nego Wilson sempre apresenta um Judas que tem alguma crítica a fazer. "Há alguns anos, num de seus bonecos, existia uma tabuleta, que dizia: O Carnaval santista não está satisfeito. Morro queimado falando a verdade". |