Eleições
Urna eletrônica:
você confia?
No Brasil, o juiz eleitoral
faz leis, executa-as e, se houver alguma dúvida, ele mesmo se julga...
Carlos Pimentel Mendes (*)
O voto
é secreto e inviolável. Está lá na Constituição.
Entretanto, há anos o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), numa afronta
aos Três Poderes da República, legisla sobre os processos
de votação, executa como quer essas normas (mesmo as que
conflitem com a Lei Maior), e, se alguém contesta, o próprio
TSE julga as pendências. Assim, é absolvido e ainda tripudia,
deixando claro que a garantia do processo eleitoral brasileiro é
a palavra do juiz. Não lembra certas republiquetas citadas nos filmes?
Pois é, a urna eletrônica
é apresentada como uma conquista da tecnologia nacional. O que raros
sabem - porque a sociedade brasileira pouco se organiza para cobrar direitos
- é que existem duras críticas, por dar chance a que o voto
seja conhecido e alterado. Quem lembra do escândalo Proconsult, no
Rio de Janeiro, ou da violação do painel de votação
do Senado, pode se preocupar: as urnas ditas seguras são na verdade
altamente suspeitas.
E a luta para moralizar esse processo
começou em Santos, embora hoje seja mais forte em sociedades avançadas,
como a dos EUA. Onde urnas semelhantes às brasileiras (sem impressão
do voto) já foram proibidas por lei em dez estados, e a empresa
que produz as mais recentes versões da máquina usada no Brasil
foi expulsa da Califórnia em abril/2004. Lá existem dezenas
de organizações não-governamentais debatendo o voto
eletrônico, que promoveram em 13/7/2004 a manifestação
The Computer Ate My Vote ("o computador engoliu meu voto"). A grande imprensa
dos EUA faz ampla cobertura dessa polêmica - ao contrário
da brasileira, que geralmente só relata as posições
do TSE.
Na Argentina, um juiz federal proibiu
o uso oficial dessas máquinas, mas como o país já
as negociava com o Brasil, ficaram à disposição do
público para votação simulada. Também foram
testadas no México e passarão por testes no Equador. Mesmo
na Venezuela, em 2004, a urna era dos EUA e imprimia o voto. Só
um país usou o sistema brasileiro: o Paraguai...
Questões – Em 15/10/1996,
quando foi publicada a primeira denúncia das falhas da urna, duas
questões não tinham resposta satisfatória do TSE.
E continuam em aberto, oito anos depois. Na prática, a resposta
é a mesma dada pelos contrabandistas internacionais: "la garantia
soy io!"
A primeira é quanto ao sigilo
do voto. Se o mesário identifica o eleitor num terminal ligado à
urna, para liberar a votação, não há garantia
de ser impossível ligar o voto ao eleitor e assim descobrir em quem
ele votou. Mesmo os programas para embaralhar e criptografar dados podem
ser anulados por quem tiver acesso à chamada "porta-dos-fundos"
dos programas (método indireto de chegar ao código, usado
pelo programador mas não revelado ao cliente).
O TSE alega ter de impedir que um
eleitor vote duas vezes. Entretanto, há casos em que mesários
liberam por engano a urna com outro número de título eleitoral
e, quando o eleitor correto vai votar, é impedido: já votaram
por ele. Como aconteceu com dois candidatos a vereador em Niterói.
O TSE não faz esse controle, até por que isto revelaria as
falhas do processo. Assim, não há desculpa válida
para essa estranha identificação do eleitor, em vez do mesário
usar uma senha qualquer...
A segunda questão básica
é que não há segurança absoluta de que a informação
eletrônica seja inalterável - como no famoso escândalo
Proconsult, em que parte dos votos destinados a um candidato era desviada
para seu adversário. Ora, para cumprir o preceito da inviolabilidade
do voto, o único meio até hoje é fazer com que ele
seja impresso e conferido pelo eleitor (num visor da máquina) no
momento da votação, ficando depositado fisicamente na urna
para eventual conferência.
Impugnação –
Em todas as últimas eleições brasileiras, os partidos
políticos mais atentos tentam impugnar os métodos usados.
Como explica o engenheiro de segurança em computação
e consultor do Congresso Nacional, Amílcar Brunazo Filho, sistematicamente
o TSE posterga ou nega esses pedidos, mas nas eleições seguintes
tenta discretamente corrigir os problemas denunciados, o que contribui
para melhorar aos poucos o sistema eleitoral eletrônico.
Em 2000, o protesto era por não
ser mostrado aos fiscais o programa de criptografia: agora é apresentado.
Em 2002, não era permitida a conferência adequada dos programas
carregados na urna: em 2004, os partidos podem usar seu próprio
programa de verificação. O absurdo da história é
que os políticos não se interessam muito em fiscalizar as
eleições: só o PT e o PDT se habilitaram para essa
verificação.
Em 2004, o PDT apresentou pedido
de impugnação com quatro itens, bem significativos da gravidade
dos problemas existentes, e o PT estudava também apresentar seu
protesto.
O primeiro ponto do protesto pedetista
é porque em 2003 foi criado o registro digital do voto, para tentar
substituir o voto impresso e conferido pelo eleitor. Assim, o voto é
gravado no computador e poderia ser impresso para auditoria posterior.
Mas, como o eleitor não conferiu o voto, se houver alguma adulteração
no programa a impressão dos votos apenas repetirá o resultado
eletrônico. Na forma como foi aprovada, a lei até facilitaria
o "voto de cabresto pós-moderno": o eleitor poderia votar para prefeito
e em seguida digitar um número para vereador inexistente. Esse número
(pré-combinado) ficaria registrado e poderia ser depois conferido
por quem quisesse: assim, o eleitor sinalizaria ao "coronel" em quem votou
para prefeito.
Percebido o problema, o TSE alterou
a lei, pela resolução 21.744, de maio/2004, decidindo que
no caso de voto nulo será gravado um código padrão
em vez do número digitado. E também decidiu que o arquivo
digital não será entregue aos partidos e outras entidades
para suas análises estatísticas. Então, o TSE reconhece
o risco de divulgar tais informações, apesar do que alegou
para convencer os políticos a aprovarem a lei de 2003.
Surgem várias implicações:
a primeira é que não existe mais a desculpa da auditoria
posterior, para manter na urna um programa que permite imprimir esse arquivo:
a lei não prevê auditoria, então por quê o arquivo?
Ele é gravado na memória da urna, no decurso da votação,
em posições diferentes para não ligar o voto ao eleitor,
segundo se afirma. Mas, por ser digital, é fácil de ser copiado.
Só na urna está em dois lugares: um cartão de memória
flash
interno e um externo, de acesso simples (quem quer a informação
vai se preocupar com um mero lacre?). Uma cópia criptografada é
gravada no disquete que transfere os dados para o sistema totalizador.
Este, por sua vez, copia o arquivo do disquete. E o programa recuperador
de dados, usado para a manutenção do sistema em caso de pane,
também faz mais uma cópia. Que garantia há de que
esses arquivos continuem em segurança, principalmente após
as eleições?
Algo muito grave, a resolução
do TSE mostra que nem sempre é registrado no arquivo digital o que
o eleitor digitou. Além disso, pelo Código Eleitoral em vigor,
só um juiz pode decidir sobre nulidade do voto, mas o que vemos
é a urna decidir se o voto é nulo e como será gravado.
Tudo isso ocorre por causa do registro digital do voto - que Amílcar
chama de "lei do voto virtual às cegas", já que fica gravado
na urna algo que o eleitor não sabe o que seja.
O segundo motivo para a impugnação
pelo PDT, em 2004, é que, embora os partidos políticos já
possam usar um programa próprio para a conferência dos programas
de assinatura digital, tal verificação só pode ser
feita na própria urna: o certo seria conferir os dados num computador
externo, e não o fiscalizado decidir como quer ser fiscalizado.
Complexo demais - O terceiro
item impugnado critica a complexidade do sistema eleitoral eletrônico.
Em 2000, quando ele era composto por 10 mil arquivos, a Unicamp apresentou
relatório recomendando que fosse simplificado para permitir uma
auditoria eficiente. Ao invés, em 2002 o sistema veio com 30 mil
arquivos. A Sociedade Brasileira de Computação (SBC) também
criticou que, com tal complexidade, toda a confiança no sistema
era baseada nos funcionários do TSE e não no processo em
si. Agora, em 2004, já são mais de 60 mil arquivos. Para
auditá-los, os partidos têm só 3 dias (dos cinco dias
previstos, o primeiro é perdido com a instalação dos
programas e o último com a compilação dos mesmos).
Não há meio de conferir mais do que 1% do código-fonte
usado no sistema.
O quarto item decorre daí:
a complexidade surge por que o TSE usa a cada eleição mais
um sistema operacional: em 1998 e 2000 era o sistema VirtuOS, em 2002 as
urnas tinham Windows CE 4.0 e as de 2004 usarão Windows CE 4.2.
Para cada sistema - todos rodando ao mesmo tempo, em diferentes lugares
do País - há novos programas proprietários, que não
podem ser auditados. Daí a luta para que se use um programa de código
aberto e padronizado.
Mas, surgiu um detalhe: por quê
em 2004 o TSE não comprou licenças adicionais de uso do Windows
CE 4.0, em vez das de uma nova versão? Ficou patente a pressão
da Microsoft para que o sistema seja atualizado, com todos os custos decorrentes.
Obsolecência Planejada. Questionado a respeito, o TSE demonstrou
desconhecer os termos das licenças de uso dos sistemas Windows,
que até permitem à Microsoft mudar unilateralmente os termos
do contrato - aberração legal notada pelo professor Pedro
Resende, da Universidade de Brasília. Impugna-se assim que o TSE
não conheça os termos do contrato de licença da Microsoft.
Amílcar completa: "Só
existe essa preocupação toda por não haver voto impresso
para ser auditado, que seja conferido pelo eleitor - mesmo que num visor
da urna - um momento antes de ser guardado. Assim, é preciso ficar
conferindo o código-fonte, em busca de inconsistências e brechas
para violação do sigilo e alteração nos votos.
A Microsoft já reconheceu existirem pelo menos 16 portas-dos-fundos
no Windows".
Pressão – Apesar do
TSE se ufanar de que o Brasil está na frente em tecnologia eleitoral,
os fabricantes da urna são americanos: a Unisys em 2002 e a Diebold
em 2000 e 2004. A Diebold - que comprou a brasileira Procomp - forneceu
também os programas específicos, como a adaptação
para o Windows 4.2. Na Califórnia, essa empresa foi proibida de
operar, por ter tentado encobrir uma falha no sistema de totalização
nos votos. Que foi parecida com a que em 2002 atribuiu 41 mil votos negativos
ao então futuro presidente Lula: os técnicos paralisaram
o sistema totalizador, corrigiram o código-fonte e reinstalaram
o sistema, tudo isso sem a presença dos fiscais, e não declararam
o que tinham feito. Em 2000, aliás, já tinha acontecido algo
parecido. A diferença é que na Califórnia a fiscalização
é independente, não é feita sob controle dos próprios
fiscalizados...
A lei 10.740 de 2003 foi aprovada
pelo rolo compressor do TSE: na ata de votação, um senador
cita que o ministro Sepúlveda Pertence, presidente do TSE, lhe disse
que era para aprovar a lei assim mesmo, depois o TSE faria as correções
que julgasse necessárias. O mesmo ministro esteve na Câmara
Federal, em reunião com as lideranças partidárias,
declarando que tinha pressa em que a lei criadora do registro digital do
voto (objetivando acabar com o voto impresso) fosse aprovada logo e sem
alterações. Foi aprovada no mesmo dia, em sua presença.
Então, como os deputados e
senadores são muitas vezes réus em processos pendentes de
julgamento no TSE, basta o juiz pedir ao réu - o legislador - que
abra mão de sua função de legislar, passando tal prerrogativa
ao juiz. Às favas a independência entre os Poderes da República.
Nem falamos de hackers, Abin,
interesses externos. Mas, quem quiser saber mais pode participar, na Internet,
dos debates do Fórum do Voto-E.
(*) Carlos
Pimentel Mendes é jornalista, editor do jornal eletrônico
Novo
Milênio. |