Praticagem: dilemas no ciclo negocial
Controlada
pelas cooperativas regionais, a relação negocial entre contratantes
dos serviços de praticagem apresenta distorções. O
engenheiro Nelson Carlini aborda o assunto, apresentando
sugestões para eliminar os equívocos que alteram preços
na atividade, essencial à segurança e à economia nacional,
sem alterar o atual sistema de trabalho. E a Confederação
Nacional da Praticagem (Conapra) contesta os argumentos
do engenheiro.
Negociações distorcidas
Nelson Carlini (*)
Assunto
recorrente na Marinha Mercante é a relação negocial
com a praticagem.
A função dos práticos
é primordialmente assegurar a boa navegação de embarcações
nas manobras de aproximação aos portos e na atracação
aos cais de atracação, terminais de carga, áreas de
fundeio, estaleiros de reparos e outras manobras que são parte da
vida econômica dos navios mercantes e da segurança das embarcações
de guerra. Um serviço essencial à segurança dos marítimos,
das embarcações, das cargas, do meio-ambiente, dos canais
de acesso aos portos e, portanto, à economia do País. Assessoram
tecnicamente no desenvolvimento de projetos de novos atracadouros, terminais,
melhoramentos no acesso e fundeio de embarcações de nova
geração, a cada evolução do tráfego
marítimo.
Este resumo não pretende ser
exaustivo, mas bem retrata a importância da atividade que estes técnicos
desenvolvem na área da Navegação. Estes profissionais,
como outros - capitães de navio, pilotos de aviões, cirurgiões
etc. -, em decorrência de sua especialização extrema,
necessitam boa formação, prática profissional constante
e aprimoramento contínuo para bem exercer suas atividades com qualidade
e segurança.
A atividade de praticagem está
relacionada a um determinado canal ou porto ou terminal ou conjunto de
terminais, onde a habitualidade na operação confere ao profissional
o conhecimento das dificuldades de operação, e também
a atualização permanente às condições
cambiantes da sua área de atuação.
Controle - Contrariamente
a muitas das funções que acima citei, o acesso à carreira
de prático é controlado, de modo a não habilitar profissionais
em demasiado número, e assim garantir a constante prática
e portanto a qualidade e segurança de operação.
Este controle e o conseqüente
agrupamento e coordenação da distribuição dos
trabalhos cotidianos levaram os práticos a se reunirem em cooperativas,
para bem exercer uma distribuição mais eqüitativa do
seu trabalho e oferecer seus serviços técnicos quando solicitados.
As distorções negociais
têm origem na coordenação, pelas cooperativas regionais,
das tratativas com seus clientes armadores (ou, por procuração
destes, os agentes marítimos). Aos contratantes não resta
alternativa técnica ou comercial senão atingir um acordo
com a cooperativa de práticos regional ou nacional.
A forma da contratação,
os preços, a disponibilidade de profissionais para o serviço,
a venda casada de serviços de transporte e a cobrança de
adicionais encontram dificuldade extrema de flexibilização,
em decorrência da monopolização de fato que existe
na oferta deste serviço técnico especializado.
Ganhos - Já muito se
propala os altos ganhos destes profissionais, que não seriam objeto
de controvérsia se não afetassem, em muito, os custos de
operação de transporte marítimo de cargas. Em alguns
casos chegando a inviabilizar escalas em portos menores e transferências
de cargas do modal rodoviário para o marítimo.
A interferência da Diretoria
de Portos e Costas, no sentido de arbitrar os custos negociados entre práticos
e armadores, quando se atinge impasses negociais, tem servido para diminuir
os exageros e minimizar os abusos. Não permitem, entretanto, que
a dinâmica do mercado leve os valores e formas de contratação
a níveis compatíveis com a atividade de transporte marítimo
de cargas e a necessidade permanente de se garantir maior eficiência
e custos menores.
A capacitação técnica
dos profissionais autorizados a praticar, e o seu constante aperfeiçoamento,
são tarefas precípuas da autoridade responsável pela
segurança da navegação, não sendo este ponto
objeto de qualquer objeção dos transportadores mercantes;
a ingerência no plano negocial das relações do trabalho,
no entanto, deveria ser deixada a cargo das partes contratantes.
As maiores objeções
a serem ponderadas ao se adotar esta liberação negocial,
caso existisse abundância de pessoal e descartelização
das cooperativas, seriam a perda da qualidade dos profissionais pela não
habitualidade da prática e a capacidade de imposição
de manobras mais arriscadas.
Mudança - Uma alternativa
- que viria a conciliar os interesses e preservar a segurança das
pessoas, do meio-ambiente e da atividade econômica - seria a transferência
da obrigação de fornecer profissionais garantidores do acesso
seguro de navios, às autoridades portuárias ou administradoras
de hidrovias, onde couber.
Estas organizações,
sob controle da União Federal, têm por obrigação
preservar as boas condições de exploração econômica
do transporte aquaviário, sujeitas às leis reguladoras de
proteção à vida humana, ao patrimônio e ao meio-ambiente
e ao interesse das comunidades e dos usuários através dos
Conselhos de Autoridade Portuária.
As administrações dos
portos ou das hidrovias contratariam os profissionais em regime permanente,
com salários compatíveis com a função de capitães
de cabotagem ou longo curso, com curso de especialização
de praticagem na área de atuação, e se ressarciriam
dos custos através das taxas de acesso ao porto ou canal.
Estas taxas seriam homologadas pelos
Conselhos de Autoridade Portuária ou de Usuários (no caso
das hidrovias) e os serviços disponibilizados de forma permanente,
24 horas por dia e durante 365 por ano. A Marinha de Guerra, no controle
da segurança da navegação, tem a responsabilidade
da formação e da periódica verificação
da habilitação dos profissionais. Em caso de não haver
provimento dos serviços pelas autoridades portuárias/hidroviárias,
por qualquer motivo, caberia à Marinha o fornecimento do serviço,
com pessoal próprio ou requisitado especialmente, até que
a situação normal seja restabelecida.
Com este sistema, estaríamos
garantindo segurança na navegação, a preços
compatíveis, atendendo aos interesses dos agentes econômicos
- embarcadores, operadores portuários, armadores -, submetidos à
ação das autoridades e ao sadio regime concorrencial de mercado.
(*) Nelson
Carlini é engenheiro naval.
Redução e ônus
assumidos
Roberto dos Santos Belotti (*)
O
serviço de praticagem certamente antecedeu e provocou a inclusão,
no código de leis de Hamurabi, de penalidades impostas ao prático,
em casos de acidente ou perda de navio, ao mesmo tempo em que fixava o
preço do serviço, tornando-o imune às pressões
dos que exploravam comercialmente a atividade da navegação.
Quarenta séculos após,
a execução do serviço ainda é mundialmente
reconhecida como essencial, com importância diretamente proporcional
ao desmesurado crescimento dos navios e ao grau de nocividade das cargas
hoje transportadas.
No País há citações
documentadas de atividades de práticos, em Rio Grande, desde 1737,
culminando com a promulgação, em 1808, do regimento para
os Pilotos Práticos do Rio de Janeiro. Desde então a atividade
é regulamentada pelo Estado sob controle da Marinha.
O acesso à profissão
é feito mediante concurso público, com prolongado período
de treinamento, a cargo e às expensas da entidade de praticagem
local, aplicado aos aprovados e classificados, já então registrados
como praticantes de prático. Quando atingido um grau de adestramento
satisfatório, o praticante de prático é submetido
a exame para prático. O concurso e o exame são feitos por
iniciativa e supervisão da autoridade marítima. Nesta formação,
são incorporados o conhecimento e o uso de todos os avanços
tecnológicos que interessam ao exercício da atividade - que,
como o próprio nome insinua, exige prática constante.
Por isso, a atividade é exercida
por quadros limitados, em números fixados pela autoridade marítima
para cada ZP (Zona de Praticagem), sem qualquer interferência da
praticagem local, que, por doutrina, não mais o contesta. Este número
é fixado de modo que a freqüência de navios no porto
permita, a cada prático, a execução de um número
mínimo de manobras, fixados pela autoridade marítima. que,
se não atingido, provocará a suspensão da habilitação
de prático. A recuperação da habilitação
exigirá que este prático acompanhe, sem remuneração,
igual número de manobras de outro prático.
O prático se identifica como
um dos componentes de um braço técnico do Estado, este representado
pela autoridade marítima, empregado para garantir a segurança
da vida humana, dos navios, suas tripulações e cargas, dos
canais de acesso e instalações em águas restritas
e, com muita ênfase, a proteção do meio ambiente aquático
e áreas adjacentes. E o faz aplicando suas qualificações
técnicas e dotes pessoais, investindo pesado em infra-estrutura,
procurando viabilizar e agilizar as trocas comercias de interesse de sua
região, à qual se integra.
Cíclico - Cumpre agora
registrar que na matéria que ora analisamos, movimento cíclico
e repetitivo a que as praticagens já se acostumaram, é dado
realce aos aspectos econômicos e de custos que, a seguir, provaremos
inteiramente divorciados da realidade.
O correto entendimento exige que
se considere que 95% de comércio exterior brasileiro, por via marítima,
é feito por navios estrangeiros, com fretes em dólar. Assim
é necessário retornar ao penúltimo movimento cíclico
contra as praticagens, em 1987, quando, em efeito bola-de-neve, formou-se
um grupo de pressão em que atuavam mais de vinte entidades, algumas
sem qualquer proximidade com a atividade, propondo soluções
idênticas às hoje propostas, sempre rejeitadas pelas potências
marítimas mundiais.
Naquele ano, sob supervisão
da autoridade marítima, reconhecendo poucos exageros, o Conapra
negociou com as representações de tomadores do serviço,
nacionais e estrangeiros, reduzindo os preços anteriormente praticados.
Na época havia paridade entre o real e o dólar.
Ato contínuo, espontaneamente,
as praticagens constituíram sociedades civis uniprofissionais, abdicando
os práticos de direitos celetistas tais como repouso semanal remunerado,
férias, 13º Salário, FGTS, adicionais noturno, sábados,
domingos, feriados, insalubridade e periculosidade. Ao mesmo tempo, desoneraram
os tomadores do serviço de recolhimento à Previdência
da ordem de 28% dos valores acima. Em suma, a redução de
custos sobre preços já reduzidos foi brutal. Em contrapartida,
os práticos assumiram os ônus da atual condição
de empresários-empregadores.
As novas exigências referentes
à ampliação e ao aprimoramento da infra-estrutura,
com aquisição de equipamentos e contratação
de quadros funcionais, foram atendidas pelas praticagens, com recursos
próprios, sem financiamentos a juros favorecidos ou prazos de carência,
sem qualquer acréscimo nas tabelas, muito embora alguns custos sejam
permanentes.
Assim restam-nos indagações:
Como
entender tentativa de alteração de um sistema que ofereceu
tantas vantagens e apresenta um índice de acidentes dos menores
do mundo?
Como
entender um tomador de serviço que pagava US$ 1.000 em 1988 se insurgir,
em 2002, contra o valor de US$ 600, quando exportadores e importadores
brasileiros se queixam de fretes crescentes em dólar no período?
Como
aceitar o rótulo de monopólio quando se é obrigado
a tentar acordo com os usuários do serviço, sendo prevista
a fixação do preço pela autoridade marítima
em eventual desacordo?
Como
aceitar o rótulo de monopólio se o prático é
legalmente obrigado a prestar o serviço, mesmo que discorde do preço?
Como
temos convicção da redução de custos que propiciamos,
aos navios nacionais e estrangeiros, como identificar o "propósito
oculto" deste movimento?
Por
último, causa-nos estranheza que tais questionamentos ocorram em
nosso País, onde, numa praticagem de longa distância, executada
por dois práticos, a tabela local resulta em um custo de US$ 4 por
milha náutica, aí incluída a infra-estrutura, enquanto
que, em porto similar no estrangeiro, para percorrerem a quarta parte desta
distância, cobram US$ 310 por milha náutica.
(*) Roberto
dos Santos Belotti é diretor-presidente da Confederação
Nacional da Praticagem (Conapra). |