Capítulo X - Os colonos
Algumas notas sobre alguns dos primeiros povoadores e conquistadores de
São Vicente
Para uma terra de tudo desprovida, imensa, sem esperanças de minas, habitada por indígenas ferozes, para essa terra só viriam homens que o rei
mandasse em serviço, ou catequistas-apóstolos, que uma fé ardente arrebatasse para o sacrifício, ou então degredados por força das leis criminais,
ou nela ficariam náufragos de expedições ousadas e temerárias, ou desgraçados fugidos de navios, onde a vida era pior que a que eles encontrariam
entre os canibais.
Foram poucos, muito poucos, os que vieram habitar o Novo Mundo em princípios
do século 16. Alguns nomes aparecem nas Atas das câmaras municipais e nos Inventários e Testamentos, que merecem atenção. E,
felizmente, não foram eles fidalgos.
Ao retirar-se para Portugal, nos meados de 1533, Martim Afonso de Souza deixou
menos gente, do pessoal de sua frota, do que a que encontrou no porto de S. Vicente, em 1532, ao que suponho.
As terras de S. Vicente nenhum atrativo tinham para reter gente aventureira,
sequiosa de se enriquecer e rapidamente.
A região era habitada por um gentio bárbaro, cruel, comedor de carne humana.
No litoral, na baixada, os alagadiços, em que mais se formavam mangues que canaviais, poucos e insignificantes engenhos poderiam produzir açúcar,
e sem meios de exportação. E não só de açúcar se vive.
Só alguns séculos depois, iria ser ele convertido em bananais.
Na serra, na Paranapiacaba, que se empina asperamente diante do mar, as terras
são as piores que constituem o Estado de S. Paulo. Escarpadas, de dificílimo e perigoso acesso, voltadas para o antártico, e, por isto, sujeitas a
contínuos nevoeiros, úmidos, garoentos ou chuvosos, açoitadas por frios e devastadores ventos do Sul, essas terras nada produziam.
Não obstante o seu conhecido espírito de vigorosa iniciativa e de perseverante
decisão para o trabalho, os paulistas ainda não conseguiram transformar as vertentes de Paranapiacaba em zona de produção e de proveito.
Apesar de todos os esforços, das construções de diversas
estradas de diferentes espécies, algumas magníficas, que desde muito tempo, e que atualmente ligam a opulenta capital do Estado ao seu esplêndido
porto marítimo, situado em Santos, nessas terras nada existe, a não ser talvez a captação das águas pela companhia Light, continuando todas, mesmo
hoje, mais ou menos, como no tempo de Martim Afonso de Souza [1], vestidas de matas ordinárias que à distância, dão a encantadora ilusão de florestas, mas que não se prestam para nenhuma
cultura, nem permitem chácaras de recreio, quintas de repouso ou mesmo casas de moradia.
Os donatários de largas sesmarias, concedidas por Martim Afonso durante a sua
estada em S. Vicente, aí não se fixaram.
Pero de Goes foi-se logo embora; fez-se donatário da Paraíba do Sul, onde
também não foi feliz, e só voltou, para a Bahia, com Tomé de Souza, como seu capitão do mar. De Ruy Pinto e de Francisco Pinto nunca mais se ouviu
falar, ou pelo menos, deles só há menção nos documentos coevos para a guerra aos carijós, que, aliás, não fizeram. Só ficaram aí os que já se
ocupavam do tráfico de escravos indígenas e alguns poucos mais.
Pode-se considerar porém o povoamento de S. Vicente, oficialmente, com o
estabelecimento do primeiro governador do Brasil. Pelo menos é desse tempo que se encontram documentos locais, que o fazem presumir, na
correspondência de Tomé de Souza e de seus companheiros com a metrópole, nas cartas dos jesuítas aos seus superiores, nas Atas da Câmara de
Santo André e nas de S. Paulo, nos Inventários e Testamentos dos primitivos tempos, nos arquivos dispersos e estragados de algumas ordens
religiosas. Difícil é encontrar informações nos arquivos portugueses. Tudo mais desapareceu ou não existiu ou funda-se em lendas e tradições
discutíveis.
Todo esse povoamento se fez muito lentamente, muito vagarosamente, chegando
mesmo a tal abatimento, que, em certa época – (carta do padre Manuel da Nóbrega ao provincial de Portugal em 1557 – Cartas Jesuíticas do Brasil,
vol. 1º, pág. 174), Manuel da Nóbrega escreveu da Bahia que "a capitania de S. Vicente se estava despovoando, pela pouca conta e cuidado que
el-rei e Martim Afonso têm"; e lembrou que seria bom ter a Companhia lá um ninho onde se recolhesse, quando de todo S. Vicente se despovoasse,
como já disse.
Manuel da Nóbrega estava verificando a pouca conta e cuidado que o rei e o
donatário tinham pelo povoamento; e, prevendo o seu abandono completo, previdentemente sugeria que a Companhia de Jesus assegurasse aí, além da
catequese, a posse e domínio.
Mas os portugueses, por iniciativa própria, e os mestiços, mamelucos, iam
conservar para o Brasil as terras de S. Vicente e os seus sertões, como vamos ver.
Desses que aí já estavam, dos que ficaram, e dos que vieram após 1549, até o
fim do segundo governo de d. Francisco de Souza (1612), podem-se respigar algumas poucas e lacunosas informações.
Entre esses há algumas figuras bem
interessantes, que estão pedindo melhor e maior estudo, que sem dúvida ainda será feito. Entre eles foi João Ramalho, uma das mais curiosas.
***
§1º - JOÃO RAMALHO E ANTÔNIO
RODRIGUES
João Ramalho é uma curiosa figura, uma das mais curiosas figuras da costa do
Brasil, e, sem dúvida alguma, a mais curiosa no porto de S. Vicente e nas suas cercanias.
Foi um dos primeiros, e talvez o primeiro português que aí se fixou.
Sobre ele muito se tem escrito em monografias e ensaios, de origem religiosa
ou profana, em todas as épocas, alguns enchendo volumes.
Todos os que se interessam pela Capitania de S. Vicente, têm se ocupado desse
homem que Martim Afonso de Sousa já achou "quando cá veio". Muita conjetura, muitas deduções, algumas engenhosas outras grosseiras, têm sido
feitas sobre esse indivíduo, cuja singularidade chama a atenção.
Encontrando esse nome e o de Antônio Rodrigues, figurando na sesmaria
concedida a Pero de Goes por Martim Afonso de Sousa, a 12 de outubro de 1532, onde eles se declararam estantes no Brasil de 15 a 20 anos, alguns
escritores foram levados a supor que só esses dois europeus por aí viviam, quando entretanto, havia outros, senão muitos pelo menos uns poucos,
nas terras que iam constituir a Capitania de S. Vicente. Desses outros pouca coisa se sabe.
O padre Leonardo Nunes, o primeiro catequista que se fixou em S. Vicente, fala
mais de uma vez, em 1550 e 1551, de pessoas que estavam na capitania havia mais de 30 e 40 anos, portanto, desde 1510 e de 1520. É assim que, em
carta de 24 de agosto de 1550, refere que em S. Vicente havia muitas pessoas que de 30 a 40 anos não se tinham confessado e estavam em pecado
mortal (Cartas Jesuíticas, vol. 2º, pág. 61).
Ainda em carta de 20 de junho de 1551, informava que em S. Vicente muitas
pessoas havia, que de 20 a 30 anos a esta parte nunca deixaram de comer carne na quaresma e nos mais dias proibidos, tendo pecado e estando sãos"
(Cartas Jesuíticas, vol. 2º, pág. 66). A isso já me referi
na página 50.
Antônio Rodrigues, o companheiro de João Ramalho, e que também como língua
da terra é nomeado na sesmaria de Pero de Góis, foi uma figura apagada; possuiu depois terras em Tumiaru, e, unindo-se a uma filha de Pequirobi,
entrou na genealogia paulista.
Sem maior crítica, tudo o que nesses primeiros tempos aconteceu ou se fez de
mal, que se destruiu, foi imputado a João Ramalho, que se destacava no meio acanhadíssimo, mais que insignificante do sertão americano, entre o
litoral de S. Vicente e o planalto de Piratininga.
E, assim, se formaram tradições fantásticas e romances tenebrosos que
enevoaram, enegreceram, tornaram lendária a sua memória. Sobre ele, às vezes, contradições flagrantes se encontram no mesmo cronista. Assim Pedro
Taques conta-nos fatos cujas circunstâncias são diametralmente opostas. Na Nobiliarquia Paulistana – (R. I. H. G. B., vol. 33, 2ª
parte, pág. 302 a 304 – Título Alvarenga Monteiro) relata que João Ramalho, natural de Barcelos, comarca de Viseu, veio de Portugal na
companhia de Martim Afonso de Sousa em 1530"... Entretanto na História da Capitania de S. Vicente (mesma revista, vol. 9, pág 149) narra
que "João Ramalho, homem nobre, de espírito guerreiro e de valor intrépido, que já muitos anos antes de vir Martim Afonso a fundar S. Vicente, em
1531, tinha vindo ao Brasil e fincando nas praias de Santos foi lá achado pelos Piratininganos, que o trouxeram ao seu rei Tevereçá que, por
providência de Deus, se agradou dele e lhe deu sua filha, que no batismo se chamou Isabel"...
As contradições e fantasias, entre os outros cultores das coisas do nosso
passado, não são menos flagrantes.
Frei Gaspar da Madre de Deus, memorialista beneditino (Memórias para a
História da Capitania de S. Vicente, ed. de 1797, págs. 30 e 31) informa que ao saber da chegada de uma armada ao porto de S. Vicente, em
1531, Tibiriçá, capitaneando mais de 500 sagitários, com João Ramalho à frente, desceu do planalto para ataque, que não se realizou porque esse
seu genro, reconhecendo que a armada era de Martim Afonso, de compatriotas conseguintemente, negociou e estabeleceu a paz entre os aborígines e os
portugueses, por essa forma facilitando a colonização no Sul da América.
Criticando acerbamente frei Gaspar, Cândido Mendes de Almeida faz de João
Ramalho um perverso, mas letrado; e identifica-o com o discutido Bacharel, dá-lhe saber e títulos científicos (R. I. H. G. B., vol.
40, pág. 277, 2ª parte).
Simão de Vasconcelos, cronista da Companhia de Jesus (Crônicas da Companhia
de Jesus no Brasil, ed. de 1845, l. I., págs. 47 e 93), narra que no tempo da catequese iniciada pelo padre Leonardo Nunes (de 1549 em diante)
"havia em S. Vicente um João Ramalho, homem por graves crimes infame e excomungado", acrescentando que "daqueles Ramalhos, árvore ruim e de pior
fruto, foram os maiores males que a própria peste, a suscitar rancores". É verdade que ele não enumera quais os graves crimes cometidos, nem diz a
causa da excomunhão, mas lança-lhe tremendo anátema e o condena formalmente.
E são numerosos os que assim escrevem, e por ser longa a lista, faz-se menção
apenas dos primeiros, mais conhecidos e mais autorizados cronistas. Há também deduções feitas pelos que estudaram as cartas dos jesuítas,
atribuindo a João Rama lho diversos atos que não passam de hipóteses, sem fundamento autêntico, conforme ensina estudo feito por Vale Cabral (Anais
da Biblioteca Nacional, vol. 73, págs. 203 e seguintes).
Diante disso é dever confessar que não
é fácil descrever, circunstanciada e verdadeira, a vida de João Ramalho. Mas alguma coisa pode-se afirmar com segurança sobre essa figura
pré-colonial na América, apoiada em documentos autênticos, profanos e religiosos, recentemente publicados. É o que tento fazer aqui, reconhecendo,
entretanto, que muita coisa ficará obscura, sem solução e que será mais de lacunas que de esclarecimentos a biografia de João Ramalho.
***
Como e por que veio João Ramalho ao
porto de S. Vicente, e quais os meios que aí o trouxeram? Teria ele sido um náufrago acolhido pelos indígenas ou um fugitivo de bordo de algum
navio que aí arribasse? Teria sido abandonado por alguma esquadra que por aí passasse, ou seria um degredado para a costa do Brasil, como
costumavam fazer as justiças do rei de Portugal, ou teria sido impelido para alguma nova aventura num século de aventuras?
Diante da atual documentação, que se encontra nos nossos arquivos, essas
perguntas absolutamente não encontram respostas; e a respeito, como tem acontecido, só se podem fazer conjeturas, que na maioria dos casos nenhum
valor merecem.
Não obstante ter ele estado em contato direto com os altos representantes do
rei de Portugal, como Martim Afonso e Tomé de Sousa, e em contato mais íntimo ainda com os capitães-mores-loco-tenentes dos donatários, um dos
quais, Jorge Ferreira, foi seu genro, segundo os genealogistas, João Ramalho nada a eles referiu sobre a razão de sua vinda.
Tendo tomado parte na governança da terra, na Câmara de Santo André e na de S.
Paulo, aí nada disse nem fez escrever.
Aos jesuítas, com quem tratou, nada confessou; à sua numerosíssima prole
confidência alguma fez a respeito. Sobre tal acontecimento guardou sempre o mais completo silêncio e sobre isso reina mistério absoluto, que
jamais será desvendado.
Quando chegou a S. Vicente?
Sobre sua chegada já se pode dizer alguma coisa próxima da verdade, mas sem
precisão. Na já referida sesmaria concedida a Pero de Goes, nas terras de Piratininga a 12 de outubro de 1532, assinada por Martim Afonso de
Sousa, escrita por Pero Capico, e como testemunha Pedro Gonçalves, que na armada veio como homem de armas, é ele também indicado juntamente com
Antônio Rodrigues como línguas desta terra, e nela estantes de 15 e 20 anos, conforme o que juraram.
Em outubro de 1532, de acordo com os dizeres dessa sesmaria, havia 15 a 20
anos que João Ramalho e Antônio Rodrigues estavam na terra do Brasil. É possível que a estada de 15 anos se refira a João Ramalho e a de 20 anos a
Antônio Rodrigues, se atentar-se para a ordem em que estão escritos esses anos; mas é possível também que essas datas, assim vagas, se refiram a
ambos, sabida, como é, a incerteza da contagem do tempo por parte dos europeus encontrados na América, nos princípios de 1500. Quer num, quer
noutro caso, João Ramalho teria chegado a S. Vicente entre os anos de 1512 a 1517, que tal é a diferença de 15 e 20 anos para 1532, data da
sesmaria.
Parece, entretanto, que João Ramalho
teria chegado em 1512, cotejando-se esta com outras referências de datas posteriores.
***
Ele era português; mas qual a sua
terra de origem?
Pedro Taques afirma que ele veio de Barcelos, comarca de Viseu. Tomé de Sousa,
na sua já referida carta de 1º de junho de 1553 (Hist. da Col. Port. no Brasil, vol. 3º, pág. 364) relata que ele era natural do termo de
Coimbra.
Alguns indicam Vouzelas ou Boucelas como o lugar de seu nascimento.
João Ramalho não deu informações precisas sobre a terra de seu berço. Dela
veio estando casado com mulher, que lá deixou e da qual nunca mais teve notícia, supondo-a morta, quarenta anos depois. O padre Manuel da Nóbrega,
na carta de 31 de agosto de 1553 ao padre Luís Gonçalves da Câmara, diz que João Ramalho era parente do padre Manuel de Paiva, o celebrante da
missa no planalto, a 25 de janeiro de 1554. (Páginas de História do Brasil, pelo padre Serafim Leite, págs. 92 a 94).
Não estará longe da verdade quem disser que João Ramalho fazia parte da
feitoria, estabelecida por iniciativa particular no porto de S. Vicente, e, sem perder o contato com essa feitoria, estabeleceu-se no planalto.
Morou em lugar chamado Jaguaporecuba, próximo a Ururaí, como se vai ver.
Na carta de sesmaria, concedida por Jerônimo Leitão aos índios de Piratininga
em 1580 (Registro Geral, vol. 1º, pág. 354) escreve-se a palavra Jaguaporecuba cuja penúltima sílaba está roída por traças. Mas no mesmo 1º
volume desse Registro, pág. 150, se encontra a transcrição da provisão em que João Soares, em 1607, é nomeado capitão-mor dos índios da
aldeia de Guarapiranga, da aldeia-nova de Guanga e de Jaguaporecuba.
Por outro lado, no inventário de Francisco Ramalho, casado com a índia
Justina, inventário iniciado a 7 de novembro de 1618 (vol. 5º, pág. 255) há uma declaração de Francisco Ramalho, em que este, em 1604, se obriga
....."a levar e a sustentar a sua custa até minha casa, que é na aldeia de Guanga" ...
Este Francisco Ramalho, segundo os genealogistas, era filho ou neto de João
Ramalho, em todo o caso era deste descendente.
A Aldeia de Guanga, do que se depreende da nomeação de João Soares, estaria,
talvez, próxima a Jaguaporecuba, onde morava a descendência de João Ramalho. Como quer que seja, houve em S. Paulo, além de outras, as aldeias de
Guanga e de Jaguaporecuba, cuja palavra "Jaguaporecuba" é completada pela menção na sesmaria, concedida por Jerônimo Leitão aos índios de
Piratininga, e que ia desde Carapicuíba a Ururaí, ficando esta no único caminho, do planalto para o litoral, que então havia.
As terras dos índios de Ururaí confrontavam com as de João
Ramalho, onde chamavam Jaguaporecuba, pelo menos na época da concessão feita por Jerônimo Leitão. Assim se verifica no trabalho de Toledo Rendom
[2].
Parece que ele não morava na vila de Santo André, nem morou na vila de S.
Paulo; com a sua numerosa descendência vivia nas suas terras, que possuía antes mesmo que lhe fossem dadas em sesmaria. E isso se pode deduzir da
narração de Schmidl, que, falando no covil de João Ramalho, não se refere, à vila de Santo André, já então criada e aclamada.
Em 1564, em S. Paulo, quando recusou o cargo de vereador, os seus companheiros
de governança vão à casa da Luís Martins, onde ele se achava pousado, insistir pela aceitação do cargo; e, entre outras razões, que ele
apresenta para persistir na recusa, dá a de que se achava em terra de contrários dessa vila, dos contrários da Paraíba (Atas da Câmara
de São Paulo, vol. 1º, págs. 34 e 37).
Ele foi capitão de Santo André e alcaide-mor do campo, que abrangia toda a
região de serra acima, por nomeação de Tomé de Sousa.
Nesse tempo havia um só caminho, vereda de índios, que comunicava o planalto
com o litoral.
Por esse caminho Ulrico Schmidl e seus companheiros, em junho de 1553, vindos
por terra de Assunção, no Paraguai e gastando seis meses, desceram ao porto de S. Vicente.
Na descrição dessa viagem, Ulrico Schmidl, estando na povoação de João
Ramalho, não se refere a lugar denominado Santo André.
Jamais escreveu a palavra Santo André; e seria lógico que o fizesse, se por lá
tivesse passado ou lá tivesse estado, pois que a vila de Santo André já existia ao tempo de sua viagem (Vide Hist. da Colonização Portuguesa no
Brasil – carta de Tomé de Sousa, da Bahia, a 1º de junho de 1553).
Ulrico Schmidl, atraído à América pelas maravilhas que se contavam a respeito
do Novo Mundo, soldado de fortuna, aventureiro alemão, esteve na povoação de João Ramalho; mas não o viu, porque ele se achava ausente, em S.
Vicente; foi recebido pelos filhos e descendentes, e foi bem recebido; mas deles teve má impressão, não referindo, porém, nenhum fato ou ato que
os desabonasse. Muito vago nos seus dizeres, um pouco desconfiado pela longa e dificílima viagem através dos sertões descaroáveis, onde dominavam
selvagens cruéis e pérfidos, as suas observações, colhidas em breve espaço de tempo, talvez em horas, pouco valor devem ter para se conhecer o
caráter de João Ramalho e de seus descendentes.
Aliás, à primeira vista, logo se conclui que essas informações são injustas,
fantasiosas e, em certa parte, confusas. Esta confusão pode ser atribuída ao autor da descrição da viagem, ou ao seu tradutor, visto que, na
tradução espanhola, que li, de Edmundo Sarrick (Santa Fé, 1938), nas vinte e poucas linhas, em que refere a sua estada na povoação de João
Ramalho, declara Schmidl que chegou a um ponto, que ao mesmo tempo chama localidade, vila, pueblo, casa, e, por tal
forma embaralhado, que o tradutor ou comentador, em nota (nota 625, pág. 174) se vê obrigado a declarar que foram empregados no texto alemão as
palavras stteden, e em seguida stettlen, que o redator substituiu por flecken (ef. 8º, 407).
Diz-se aí que "chegaram a um pueblo que ele "reputou como covil de
latrocínio", cujo chefe, felizmente, não estava em "casa"; mas que foi bem recebido pelos filhos. Não dá qualquer outra indicação por
onde se possa saber, que espécie de casa, de pueblo era esse.
Não menos injustas são as suas informações, pois que, bem recebido "numa casa
de cristãos", ele a classifica de covil de latrocínio e dá graças a Deus de dela sair. São também fantasiosas; não tendo tratado com João Ramalho
e nada dele tendo ouvido, conta em segunda mão, que ele era um despeitado porque, dispondo de 5.000 homens, estava sujeito ao rei de Portugal,
senhor apenas de 3.000 homens ou coisa equivalente, atribuindo-lhe intuitos de rebelião num tempo em que João Ramalho já era o alcaide-mor do
campo, por nomeação de Tomé de Sousa, o que indica o prestígio de que gozava e a sua submissão a d. João III.
Em relação ao Brasil, a pequeníssima narração de Ulrico Schmidl só tem valor
para mostrar que João Ramalho habitava o planalto, no caminho para S. Vicente, porto de embarque para a Europa, o que também é conhecido por
documentos de maior valia. É pueril a narração de Ulrico Schmidl nessa parte.
Não tem fundamento a hostilidade profunda que se atribuiu a João Ramalho aos
padres da Companhia de Jesus, por ter sido mudada a sede da vila de Santo André, para junto da igreja onde foi celebrada a missa no dia da
conversão de S. Paulo, em 25 de janeiro de 1554, como já se disse.
João Ramalho, depois de tal mudança, continuou alcaide-mor do campo,
onde estavam situados os dois lugares; sendo de notar que se ele fora eleito por diversas vezes vereador em Santo André, continuou a ser eleito
vereador em S. Paulo, servindo sempre na governança da terra.
Ele mereceu antes, e continuou a merecer sempre, a preferência das altas
autoridades coloniais, dos governadores gerais, de Martim Afonso de Sousa por seus loco-tenentes, dos homens bons e do povo da terra em que
habitava.
Foi, quando esteve na Capitania de S. Vicente, em princípios de 1553, que Tomé
de Sousa, governador geral do Brasil, acrescentou a Martim Afonso a vila de Santo André, e o nomeou alcaide-mor do campo (carta da Bahia de 1º de
junho de 1553, já citada).
O segundo governador geral, d. Duarte da Costa, em um regimento datado de 11
de fevereiro de 1556, dirigido a Braz Cubas, então capitão-mor-loco-tenente em S. Vicente, proibiu a todos o trânsito pelo campo para o Paraguai e
expressamente declara "avisareis a João Ramalho, alcaide e guarda-mor do campo que não deixe passar nenhuma pessoa para ele, sem mostrar vossa
licença nem os próprios moradores de Santo André" (vol. das Atas de Santo André, vereança de 11 de fevereiro de 1556, pág. 37).
Em agosto de 1556, Jorge Ferreira, capitão-mor de S. Vicente, em ausência de
Braz Cubas, e por ordem de d. Duarte da Costa, nomeia Baltasar Nunes porteiro e alcaide da vila de Santo André, mas determina expressamente que "faça
o que lhe pelo capitão e alcaide-mor João Ramalho desta dita vila e povoação for mandado em prol e serviço de Deus e de el-rei nosso senhor" (Atas
de Santo André, pág. 42). Se foi necessário um alcaide e porteiro para Santo André, ficou ele inequivocamente sob as ordens de João Ramalho,
capitão-mor da vila e alcaide do campo.
Dos moradores da Capitania de S. Vicente, dos homens bons de Santo André foi
também alvo de respeito e consideração, que o elegeram vereador da Câmara, apesar de a esse cargo se escusar, sob o fundamento de
incompatibilidade com o de alcaide-mor e guarda do campo, que já exercia (Atas de Santo André, pág. 58). Mas afinal aceitou e os exerceu
cumulativamente durante o ano de 1557 (Atas de Santo André, págs. 60, 62, 63, 64, 65, 66, 67 e 68). Ainda em 1558 serviu a chamado dos
novos eleitos (idem pág. 72).
E não foi na governança um oficial que se limitasse a receber juramentos ou a
impor multas por infrações de posturas. Foi ele um dos signatários, senão o inspirador, da reclamação a Jorge Ferreira, reivindicando
imperiosamente direitos de Santo André, e energicamente protestando pela apuração da eleição de oficiais feita na Câmara dessa vila para vigorar
em 1557, conforme "a jurisdição deixada por Tomé de Sousa e de que foi metida de posse por Antônio de Oliveira, capitão e Braz Cubas provedor
da fazenda real" (Atas de Santo André, págs. 57 e 58 fls.).
Não se encontram elementos para afirmar ou para negar que ele tivesse tomado
parte na governança da terra nos anos de 1558 a 1561, porque da Câmara, que nesses anos funcionou em Santo André e em S. Paulo, desapareceram os
respectivos livros de atas.
Mas em 1562, a 28 de maio, João Colaço, capitão-loco-tenente por Martim Afonso
de Sousa, atendendo a que
"por vozes e eleição João Ramalho havia sido
escolhido para fazer a guerra, que então se esperava, nomeia-o capitão dessa guerra com amplos poderes, como si fosse ele em pessoa, determinando
que todas as pessoas lhe obedecessem em tudo que fosse necessário para essa guerra, sob pena de prisão, de multa de vinte cruzados, pagos da
cadeia, e de degredo de um ano para a Bertioga, sendo a metade da multa para o acusador e a outra metade para as despesas da guerra." (Atas,
V. 1º, de S. Paulo, págs. 14 e 15)".
A 24 de junho de 1562, os oficiais da Câmara de S. Paulo Antônio de Mariz,
Diogo Vaz, Luís Martins e Jorge Moreira dão a João Ramalho juramento sobre um livro dos santos evangelhos para bem e verdadeiramente servir esse
cargo de grande e suma responsabilidade nesse momento crítico (vide Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, pág. 14 em que estão lavradas a
vereança da Câmara e provisão do capitão-loco-tenente).
A Câmara, por sua vez, ordenando o acabamento dos muros e baluartes para
defesa da vila (Atas, vol. 1º, pág. 16), em 1563 requereu a João Ramalho que fosse buscar pólvora (idem pág. 25), para defesa da vila.
Foi a época trágica de 1562, em que se revoltaram os índios amigos, alguns já
aldeados, dirigidos pelo próprio irmão de Tibiriçá, aliados aos carijós, que investiram contra a vila de S. Paulo para destruí-la e exterminar os
seus habitantes, pondo termo à catequese religiosa e ao povoamento civil, se conseguissem o seu intento (vide Apontamentos de Az. Marques,
na Cronologia desse ano, e cartas de José de Anchieta).
Ninguém ignora a ascendência que João Ramalho exercia sobre Tibiriçá, por
diversas vezes seu sogro e que, por conseqüência, a atitude de João Ramalho teria influído para que o morubixaba se conservasse fiel à obra
civilizadora, que se realizava em Piratininga. Ninguém até hoje pôs em dúvida o poderio que ele teve sobre os numerosos selvagens que por aí
andavam, mesmo desprezando os exageros de Ulrico Schmidl; todos sabem quão grande foi a influência por ele exercida sobre a sua numerosa
descendência mestiça, aparentada por casamentos com as principais pessoas da capitania, e, por conseqüência, o conceito em que era tido pela
grande maioria dos moradores, condições essenciais para a eleição e nomeação de capitão para fazer guerra ao gentio volúvel e, então, revoltado.
Com um capitão dispondo de tais elementos, e com a superioridade do armamento
dos portugueses, a guerra, nesse momento, foi decisiva, e os indígenas em revolta foram rechaçados e completamente derrotados.
As cartas dos jesuítas não mencionam a cooperação eficaz de João Ramalho, nem
a colaboração eficiente da vila de S. Paulo na defesa da então nascente povoação.
Segundo o uso observado, os jesuítas deviam escrever cartas, dos lugares em
que se achavam, aos seus superiores narrando os fatos ocorridos nas casas, nos colégios e discorrer sobre as dificuldades ou progressos da
catequese; nelas não se referiam eles às autoridades civis locais, raras vezes mencionavam nomes ou fatos estranhos às missões religiosas que
desempenhavam em relação aos indígenas. Quando muito, alguns poucos descreviam a terra e os seus recursos naturais. Não coordenavam elementos para
a história, limitavam-se a se referir aos negócios internos da Companhia. É natural, pois, e de boa-fé, o silêncio dos Jesuítas a respeito.
Fazia uma das exceções a essa regra o padre Manuel da Nóbrega, que, por vezes
se estendia sobre as condições da terra e os meios de a valorizar, sobre o seu futuro, sobre a ação das autoridades civis, dando orientação,
indicando providências que julgava necessárias, louvando ou censurando abertamente até o próprio rei.
Mas as Atas da Câmara de S. Paulo estão publicadas, suprindo essa
lacuna.
Em 1564 João Ramalho foi ainda eleito vereador em S. Paulo (Atas de S.
Paulo, vol. 1º, pág. 34) ofício que recusou, como já ficou referido, apesar da instância excepcional dos outros oficiais, seus companheiros de
vereança, que incorporados foram à casa de Luís Martins, onde João Ramalho estava de pouso, insistindo pela aceitação do cargo, ao que ele
respondeu que era um homem velho que passava dos setenta anos, e estava em um lugar em terra de contrários desta vila, digo dos contrários da
Paraíba, e que estava também como
degradado
(?) no dito lugar e que outro fosse chamado para servir o dito cargo.
Se se pode chamar vida pública o exercício de vereador de S. Paulo em 1564,
foi ele quem dela deliberadamente se retirou. Foi substituído por Lopo Dias.
João Ramalho prestou bons serviços a Martim Afonso, à colonização e à
catequese e os seus atos não são de um rebelde, de um homem infame, de um excomungado por graves crimes. Aliás, antes e por largos anos, no meio
de índios nus nos quais não havia noção de propriedade, de respeito à vida alheia, de constituição da família, de organização de sociedade, de
autoridade, de sentimento de pátria, de idéia de Deus, antropófagos, nômades, sem quem os orientasse, fazendo guerras alimentares, só cuidando de
comer e de se reproduzir, difícil seria encontrar para João Ramalho o metro da infâmia ou a capitulação de crimes. Inculto, como era, a sua vida
seria talvez repreensível ou delituosa numa sociedade civilizada.
Nos primeiros tempos as suas relações com os padres jesuítas (e mesmo depois)
não poderiam ter sido cordiais.
Índios selvagens e broncos, portugueses, na sua maior parte, brutos e de baixa
classe, com aqueles convivendo dezenas de anos, os descendentes destas duas espécies, soltos nos campos e nas matas, sem regras e sem incômodos,
todos haveriam de estranhar e não poderiam apetecer ficar de joelhos em igrejas pobríssimas, a fazer preces e sofrer penitências, e com restrições
que a civilização exige para que possa haver sociedade civil.
Disso deviam saber, ou pelo menos isso prever, os padres da Companhia de
Jesus.
Aliás o ato infame, positivado, narrado pelo pe. Simão de Vasconcelos foi o de
João Ramalho entrar na igreja e querer assistir missa, a que o padre Leonardo Nunes se recusou terminantemente a celebrar enquanto o infame, o
excomungado daí não se retirasse. Então um dos filhos de João Ramalho, armado de pau lançou-se ao sacerdote para matá-lo, no que foi obstado por
uma mulher que se interpôs. É evidente que o ato violento não partiu de João Ramalho, nem o padre Simão de Vasconcelos diz que ele o tivesse
ordenado (Crônica da Cia. de Jesus, l. I, pág. 47).
O irmão Pero Correia (Cartas Avulsas, vol. 2º, pág. 92) em 8 de junho
de 1554 refere-se a este ou a idêntico episódio nos termos seguintes: "uma destas (índias) se achou umas dez léguas daqui, onde quiseram tratar
mal o nosso padre e o ameaçaram com um pau e o ameaçador foi um homem que há 40 anos que está nesta terra e tem bisnetos e sempre viveu em pecado
mortal e anda excomungado, e o padre não quis dizer missa com ele e daqui veio, depois da missa acabada, a querer maltratá-lo, porque ele é
possante, mas a índia ali pregou muito rijo e com grande fé oferecendo-se a padecer de companhia com o padre, se cumprisse. Eu não me achei ali,
mas contaram-me os dois irmãos muito boas línguas, um deles se chama Manuel de Chaves e o outro Fernandes, moço de 15 até 16 anos". Aí não
se menciona o nome de João Ramalho, mas apenas há referência a um homem que estava nessa terra há mais de 40 anos. Com mais de 40 anos de estada
nessa terra havia, além de João Ramalho, muitos outros e com muitos filhos mamelucos na costa do Brasil, na capitania de S. Vicente.
Pero Correia relata o fato por ouvir dizer a dois outros irmãos e por modo
diferente ao relatado pelo padre Vasconcelos. Seria, portanto, o Irmão Correia uma testemunha referente, que só tem o valor das referidas, que não
foram ouvidas.
O episódio, apaixonadamente narrado pelo padre Simão de Vasconcelos em suas
Crônicas, é verossímil e pode ser verdadeiro. Mas ponderadas as circunstâncias de tempo e lugar em que o fato se realizou, parece-me que a
excomunhão e a expulsão da Igreja foram meios contraproducentes usados pelo padre de Jesus contra um régulo com influência sobre os índios e com
prestigio sobre os principais da terra.
Aliás, essas medidas violentas jamais foram aconselhadas pelo Cristo que
mandava oferecer a outra face, quando uma era ferida, que não condenou a adúltera e que dizia Non veni perdere animas sed salvare", como,
nessa mesma época, repetia o padre Aspicuelta (Cartas Avulsas, vol. 2º, pág. 52).
Os padres da Companhia deveriam saber que, em todos os países e em todas as
classes, havia a mancebia e a concubinagem e que muitas vezes os filhos, que delas resultavam, ficavam altos prelados da Igreja ou governadores, e
que seria excessivo julgar com tal severidade nas terras da América, quando tais fatos eram encontrados entre portugueses asselvajados e índias
selvagens.
Além disso, era conhecido pelos vicentinos e pelos estrangeiros que por aí
passavam, e pelos próprios padres da Companhia, o prestígio de que gozava Ramalho sobre os homens principais da capitania, com os quais tinha
casado as suas filhas mamelucas.
Até Tomé de Sousa não censurou Ramalho, antes o prestigiou nomeando-o capitão
de Santo André e alcaide-mor do campo, dando disso notícia ao rei de Portugal (carta de 1º de junho de 1553, no vol. 3º da Colonização no
Brasil).
É possível que João Ramalho, procurando a Igreja, no momento da celebração da
missa, estivesse animado de boas e submissas intenções. De outras não fala Simão de Vasconcelos.
Manuel da Nóbrega, ao chegar a S. Vicente, quando de sua viagem com Tomé de
Sousa em 1553, teria recebido más informações a respeito de João Ramalho, e, em carta de 15 de junho desse ano, as transmitia o padre Luís
Gonçalves da Câmara, em Portugal, escrevendo:
"nesta terra está um João Ramalho. É muito antigo
nela e toda a sua vida e a de seus filhos é conforme a dos índios e é uma petra scandali para nós porque a sua vida é o principal estorvo
para com a gentilidade, que temos, por ser ele muito conhecido e aparentado com os índios.
Tem muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs e tem filhos delas, tanto o pai como os filhos. Vão à guerra com os índios e as suas festas
são de índios e assim vivem andando nus como os mesmos índios. Por
todas as maneiras temos provado e nada aproveita e até já o deixamos de lado. Este, estando excomungado, por não querer confessar e não querendo
os nossos padres celebrar com ele..." (Novas Cartas Jesuíticas, publicadas pelo padre Serafim Leite, pág. 46).
Subindo, porém, a serra e chegando ao planalto, cerca de dois meses depois, e
tendo encontrado João Ramalho e com ele tratando, a linguagem do pe. Manuel da Nóbrega já é bem diferente, como se pode ler na carta, que a 31 de
agosto de 1553 escreveu ao mesmo pe. Luís Gonçalves da Câmara, com a sua habitual franqueza e costumada visão:
"nesse Campo está um João Ramalho, o mais antigo
homem que nesta terra está. Tem muitos filhos e muito aparentados com todo este sertão. E o mais velho deles levo agora comigo ao sertão por mais
autorizar o nosso ministério. João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais desta terra. De
maneira que nele, e nela e em seus filhos esperamos ter grandes meios para conversão destes gentios. Esse homem, para mais ajuda, é parente do pe.
Paiva, cá se conheceram. Quando veio da terra, que havia quarenta anos e mais, deixou a sua mulher lá, viva, e nunca mais soube dela, mas que lhe
parece que deve ser morta, pois já vão tantos anos. Deseja muito casar com a mãe destes seus filhos. Já para lá se escreveu e não veio resposta
deste seu negócio. Portanto, é necessário que V. Rma. envie logo a Vouzela, terra do pe. Mestre Simão, e da parte de Nosso Senhor lhe requeiro;
porque si este homem estiver em estado de graça, fará Nosso Senhor por ele muito nesta terra. Pois estando em pecado mortal, por sua causa e
sustentou até agora. E, pois, isto é cousa de tanta importância, mande V. Rma. logo a saber a esta informação de tudo isto o que tenho dito".
(Páginas de História do Brasil, Serafim Leite, pág. 93).
Esta carta, só há pouco tempo publicada, revela de modo a não deixar dúvida,
que João Ramalho não embaraçava a catequese jesuítica, e que, ao contrário, deixava o seu filho mais velho acompanhar e guiar, no sertão, o pe.
Manuel da Nóbrega, para mais autorizar o ministério religioso.
Vivia maritalmente com índias da terra, filhas dos maiorais; mas desejava
casar-se com a mãe de seus filhos, cumprindo assim um sacramento, o do matrimônio, cuja realização deveria ser precedida da confissão,
outro preceito da igreja, o que quer dizer que iria obedecer as regras da religião católica. Não se tinha casado, o que muito desejava, porque
primeiro viveu entre selvagens, sem cura de alma, e ainda, porque não sabia se a mulher, que deixara em Portugal, era viva, receando sem dúvida a
bigamia, condenada pelas leis civis e canônicas. Esse casamento era tão necessário que o pe. Manuel da Nóbrega, com a maior instância possível,
requeria em nome de Nosso Senhor, e suplicava quase, mandasse indagar de tudo em Vouzela. E considerando "uma causa de suma importância",
reiterava o pedido anteriormente feito.
Isto se passava em 1553, antes da revolta dos índios, em 1562. É possível que
tal conversão fosse obtida pelo esforço persuasivo do pe. Manuel da Nóbrega; mas mostra ao mesmo tempo disposições do alcaide-mor do campo, para
voltar ao abrigo católico como ovelha tresmalhada. Além de salvar a alma, de colocar o régulo em estado de graça, no entender do pe. Manuel da
Nóbrega, esse matrimônio seria um grande exemplo para os demais colonos, santificando e legitimando-lhes o lar e sendo um grande passo para a
conversão do demais gentio, com o qual era João Ramalho por seus filhos aparentado.
Essa mulher, cujo nome indígena era Bartira, recebera o de Isabel no batismo,
outro sacramento católico, que não se realizaria sem anuência de João Ramalho.
Era ela filha de Tibiriçá, o chefe indígena amigo dos jesuítas e sogro (?) de
João Ramalho, o qual também se batizara.
A sua descendência, em filhos, netos e bisnetos, todos cristãos, era tão
numerosa, que Tomé de Sousa julgava coisa inacreditável e não o ousava dizer a d. João III (carta citada). Ulrico Schmidl, cujos comentários não
são simpáticos ao régulo, declara que era de cristãos a povoação a que chegara, antes de descer para S. Vicente.
Os genealogistas não estão perfeitamente de acordo, quanto ao número e aos
nomes de todos os filhos de João Ramalho, tendo sido encontrados papéis antigos, em mãos de pessoas de crédito, que a isso se referem, mas
que se contradizem.
Em atas da Câmara de S. Paulo, em concessão de datas, em inventários se
encontram porém, declarações em que alguns de seus descendentes se reconhecem seus parentes.
Assim na sesmaria concedida aos índios de Ururaí por Jerônimo Leitão (Reg.
Geral, vol. 1º, pág. 354) escreve-se que era limítrofe com a de João Ramalho e de seus filhos, i. é., de João Ramalho e de Antônio de Macedo.
Na vereança de 16 de julho de 1580 (Atas, vol. 1º, pág. 166) João Fernandes, filho de João Ramalho, é multado por não ter comparecido à
procissão de Santa Isabel. Matias de Oliveira se declara neto de João Ramalho, quando requer uma sesmaria de terras na capitania de S. Vicente (Sesmarias,
vol. 1º, pág. 41. Publicação oficial do Arquivo do Estado de S. Paulo). Outras referências se encontrarão com mais acurado exame.
Nele, em João Ramalho, chefe entre os gentios e de grande influência sobre os
habitantes da capitania – como sem ambages escreveu Manuel da Nóbrega –; nela, em Isabel Bartira, sua companheira de muitos anos; neles,
nos filhos do casal, esperava o superior dos jesuítas na costa do Brasil um grande meio para conversão do gentio.
Não se sabe se o casamento se
realizou. E, se não se realizou, não foi por culpa do pe. Manuel da Nóbrega, nem de João Ramalho e de sua gente. Provavelmente, conforme o
costume, de tudo procrastinar, que hoje ainda dura nas coisas do maior relevo e importância, no Brasil e em Portugal, nenhuma providência se
tomou.
***
João Ramalho, português, de origem
humilde, era inculto; desenhava apenas, o seu nome nos livros da Câmara, em Santo André e em S. Paulo; mas desenhava-o de maneira diferente da
usual, intercalando entre o nome e o sobrenome um semicírculo, voltado para a esquerda, enquanto que a maior parte de seus companheiros usavam uma
cruz, de diversas e variadas formas, algumas inscritas em círculo, o que hoje ainda caracterizam os analfabetos que assinam de cruz.
Nessa originalidade, de que não foi ele o único, nesse sinal Horácio de
Carvalho encontrou o Kaf hebraico e, daí em longo estudo, concluiu que João Ramalho era judeu. Foi uma conjetura excessiva, pois que não se
vê o alcance, que teria um homem simples, natural, rústico, tendo vivido entre selvagens durante dezenas de anos, e vivendo depois entre
compatriotas também rústicos, em conservar sutilezas de assinatura que demonstrassem a sua origem semita.
Tudo, ao contrário, indica que, se ele não era um católico praticante, exerceu
todos os atos solenes, nas Câmaras, jurando e fazendo jurar sobre livro dos Santos Evangelhos para o bom cumprimento dos cargos que devessem
exercer. Estava ele pronto a casar-se catolicamente com a mãe de seus filhos; consentiu no batismo de sua companheira e de seus numerosos
descendentes.
Os representantes de d. João III, o rei inquisidor, nem o superior dos
jesuítas na costa do Brasil, tratariam com um suspeito de judaísmo, e pela maneira por que o fizeram.
Essas são também conjeturas que faço, não há dúvida, que afastam e se opõem a
outra bem frágil de judaísmo por causa de um suposto Kaf.
Naquele tempo, os habitantes da capitania de S. Vicente, depois de iniciada a
cristianização, faziam os seus testamentos quando partiam para o sertão, onde contava morrer e onde muitos pereciam, ou quando estavam em artigo
de morte.
João Ramalho fez o testamento a 3 de maio de 1580, segundo cópia tirada do
livro de notas de Lourenço Vaz, tabelião de S. Paulo, livro rubricado por João Soares, que frei Gaspar da Madre de Deus possuiu.
Esse testamento existiu, porque diversas pessoas também o viram e o leram.
Mas ao ler esse testamento, frei Gaspar da Madre de Deus equivocou-se lendo
nele que João Ramalho declarara em 1580 estar na terra do Brasil havia mais de 90 anos, o que colocaria a sua vinda anteriormente ao descobrimento
do Brasil por Pedro Álvares Cabral. Equívoco natural em face da má e fantasiosa letra dos escrivães coevos.
Outros afirmam terem lido 70 anos, menos vinte anos, portanto, designando data
que mais ou menos coincide com a declaração que fez, quando recusou a vereança de S. Paulo em 15 de fevereiro de 1564, alegando ser homem velho
que passava dos 70 anos e com a declaração na sesmaria de Pero de Góis (vide Testamento de João Ramalho na R. I. H. G. de S. Paulo,
vol. 9, pág. 563 e seguintes. Vide também Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, pág. 37).
Teria chegado à costa do Brasil nos seus 20 anos e teria morrido depois dos
80.
Embora muito discutido esse testamento, não foi ele publicado, nem tampouco o
inventário de seus bens, por não terem sido encontrados no arquivo do Estado de S. Paulo.
Não era Barcelos, como escreveu Pedro Taques, nem Broucella, como interpretou
frei Gaspar, mas Boucella ou Vouzella, freguesia e comarca de Viseu, província de Beira Alta, em Portugal, a terra onde nasceu João Ramalho.
Talvez então pertencente à Coimbra?
A vila de Santo André não foi, entretanto, fundada por João Ramalho, conforme,
segundo informações de antigos cronistas paulistas, repeti no estudo sobre seu testamento publicado na R. I. H. G. de S. Paulo, em 1904, no
citado volume 9º, pág. 563.
A freguesia de Vouzella compreendia entre outras aldeias a de
Valgode, equivalente sem dúvida ao Balbode, interpretado no testamento, donde provavelmente era natural Catherina Affonso
[3].
Foi ele de vigor físico bem raro, pois que Tomé de Sousa (carta citada)
informa que, apesar de já ter bisnetos, não tinha cãs no rosto nem nos cabelos, e fazia nove léguas a pé antes do jantar.
Foi, não há dúvida alguma, homem de grande poder de vontade, de suma energia,
de muita habilidade; porque um dos primeiros, sendo talvez o primeiro, a chegar a S. Vicente, pôde se impor a selvagens broncos e cruéis,
dominá-los a ponto de poder dispor de milhares de arcos, ser por eles "venerado", formar um lar, numa terra em que os que vieram depois, e
sendo principais da capitania, nele constituíram família. Exerceu todos os primeiros cargos locais da colônia, recebeu das altas autoridades civis
da costa do Brasil provas inequívocas de confiança e distinção, e foi julgado pela mais alta autoridade religiosa dessa mesma costa, necessário
para o melhor êxito da catequese.
Não foi um santo, nem um cenobita ou anacoreta, nem teve tendências para
mártir.
Teve naturalmente muitos defeitos, mas também teve as qualidades varonis dos
portugueses de sua condição, que naquele tempo viveram. Era de trato difícil, gostava de mandar e estava acostumado a ser obedecido. Grosseiro e
tenaz.
Cometeu os pecados que naquela época a religião católica considerava
gravíssimos, e alguns ainda hoje o são, "a falta de confissão", "não ouvia missa", "amancebou-se na terra", fez as guerras de sua gente contra as
tribos inimigas, e, com viver solto e independente, viveu a vida de selvagem, onde só selvagens viviam, alimentando-se de caça e de pesca, de mel
e de frutas, sem comércio cristão, único que poderia fazer a vida conversável, na frase expressiva de Pero Lopes de Sousa, quando se refere, em
1532, aos homens da feitoria do porto de S. Vicente.
Foi, porém, uma das mais curiosas figuras, talvez a mais curiosa figura da
costa do Brasil, nos seus primeiros tempos.
§2º - LOPO DIAS
Lopo Dias era português. Aparece o seu nome na Câmara de Santo André, pela
primeira vez, em 5 de outubro de 1555, multado em 25 réis por não ter comparecido a fazer um caminho da vila, que então era conservado à mão comum
(Atas de Santo André, pág. 16).
Em 31 de março de 1558 o povo se reúne e, juntamente com os oficiais da Câmara
de Santo André, deliberam a reparação dos muros e construção de guaritas para defesa da vila, porquanto chegavam novas que os índios do planalto
iam atacar e destruir a vila, havia pouco tempo criada por Tomé de Sousa. Todos se obrigaram a fazer essas obras indispensáveis até sua completa
execução, ajudando-se uns aos outros, para defesa de todos (Atas de Santo André, pág. 74).
A vida aí não corria sem perigos e era necessário manter a povoação. Não eram
muitos os moradores de Santo André. A Câmara se compunha então dos oficiais Antônio Magalhães, como juiz, João Ramalho, como vereador, João Eanes,
como procurador de Conselho, e Diogo Fernandes, escrivão. Com o povo e com os oficiais, assinam apenas, ao todo, 16 moradores, entre os quais está
Lopo Dias.
Mudada a sede da vila, em 1560, de junto da ermida de Santo André para junto à
igreja de S. Paulo, Lopo Dias continua a prestar os seus serviços à administração municipal. Em 28 de dezembro de 1562 e em 28 de agosto de 1563 é
eleito almotacé; em 21 de fevereiro de 1564 é eleito vereador em substituição de João Ramalho, que a esse cargo se escusou, declarando ter mais de
70 anos.
Em 12 de maio de 1564 é, como vereador, um dos signatários da representação a
Estácio de Sá, para que permanecesse em S. Vicente com a sua esquadra para defesa da capitania sempre ameaçada, principalmente a vila de S. Paulo,
"situada entre gente de várias qualidades e forças, que há em toda a costa do Brasil, como são os tamoios e os tupiniquins, que quebrando as pazes
feitas sempre matam no sertão muitos homens brancos, entre os quais Geraldo, Francisco de Sarzeda e João Fernandes".
Os tamoios, ajudados pelos franceses, atacavam as vilas de Santos e de S.
Vicente, por mar e por terra, e de todas elas levavam escravos, gados, mulheres e homens. Os tupiniquins se levantaram e puseram cerco a S. Paulo
durante dias, em 1562, destruindo mantimentos e gados.
A representação é longa e nela também se refere a mudança da sede da vila pelo
Governador Mem de Sá, em 1560, a requerimento do povo de S. Vicente, e de Santos e dos padres da Companhia de Jesus (Atas da Câmara de S. Paulo,
vol. 1º, págs. 42 a 45). Os livros da Câmara de S. Paulo correspondentes a 1565 até 1567 desapareceram, e nada se encontra durante esse período
sobre a vida de Lopo Dias em S. Paulo. Mas a 19 de fevereiro de 1576 é eleito vereador, e almotacé em 1583 (Atas da Câmara de S. Paulo,
vol. 1º, págs. 91, 197).
Aqui termina a vida pública de Lopo Dias, se a esses atos pode-se chamar vida
pública, na pequenina vila de S. Paulo. Mas ainda ele aparece, como parte do povo, numa grande reunião, convocada pela Câmara de S. Paulo, cujos
oficiais no ano de 1592, eram João de Prado e Pero Álvares, como juízes, Fernão Dias e Antônio Preto, como vereadores, e Alonso Peres como
procurador do conselho, para tomar conhecimento da provisão do capitão-mor Jorge Correia, que mandava entregar as aldeias dos índios, na capitania
de S. Vicente, aos padres da Companhia de Jesus.
Compareceram a essa reunião 77 pessoas, das quais 72 votaram contra a
deliberação de Jorge Correia, pois que a administração das aldeias deveria continuar a pertencer à Câmara, cabendo aos jesuítas a doutrinação dos
índios, o que não se lhe impediu nem se devia impedir.
Entre os 72 contrários à provisão de Jorge Correia estiveram Lopo Dias e o
vigário Lourenço Dias (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, pág. 446 e seguintes). Foi esse o primeiro choque ostensivo entre jesuítas e
colonos, foi a ruptura franca, aberta, de uma luta latente que existia desde os princípios da capitania.
Lopo Dias casou-se com Beatriz Dias (Inv. e Tes., vol.
2.º, pág. 113) filha de Tibiriçá, ou neta por João Ramalho. Os linhagistas não estão de acordo sobre se a mulher de Lopo Dias era índia ou meio
sangue indígena. De seu casamento houve, pelo menos, dois filhos: Suzana Dias e Belchior Carneiro. Suzana Dias casou-se com Manuel Fernandes
Ramos, natural de Moura, em Portugal [4]. Netos ou bisnetos de índios, esses Fernandes são conhecidos, entre os cronistas paulistas, como os Fernandes Povoadores.
O outro filho de Lopo Dias e de Isabel Dias, chamou-se Belchior Carneiro,
também neto ou bisneto de índia, fez diversas entradas ao sertão e nele morreu, como cabo de bandeira em 1607, entre os Bilreiros (Inv. e Test.,
vol. 2º, págs. 111 e seguintes), a mandado de Diogo de Quadros, em busca de índios para trabalho em minas de ferro em S. Paulo.
Foi Belchior Carneiro, que sabia ler e escrever, e escrevia bem o seu nome,
casado com Hilária Luís Grou, outra mestiça, filha de Domingos Luís Grou, do qual adiante se fala.
Em 1608, "por não se achar presente Lopo Dias e por ser muito velho em idade (Inv.
e Test., vol. 2.º, págs. 124 e 130) o juiz de órfãos faz curador dos filhos, todos menores, de Belchior Carneiro, a André Fernandes, deles
primo-irmão.
O próprio Lopo Dias vem a juízo e confirma a sua velhice em requerimento em
que diz:
"pesa-me senhores juízes escusar
ser curador de meus netos, filhos de Belchior Carneiro porque não ...
[5] de o poder ser, assim por minha idade, como por me ter entregue ... padres do Carmo para irmão seu assim podem fazer
curador quem lhes parecer e aqui me assino – 1 de janeiro de 1609. Lopo Dias."
(Inv. e Test., vol. 2º, pág. 132).
§3º - DOMINGOS LUÍS GROU
Domingos Luís Grou, da família Annes ou Ianes, de Portugal, veio para o Brasil
tentar fortuna, e aqui casou-se com Fulana Guaçu, filha do cacique de Carapicuíba, segundo a Genealogia de Silva Leme (vol. 1, pág. 15).
Um de seus netos, Luís Ianes Grou, no testamento que fez em 21 de outubro de
1628, no arraial de seu tio, Mateus Luís Grou, nas cabeceiras da Ribeira, sertão de Ibiaguira, declarou ter 55 anos e 8 meses de idade, ser filho
legítimo de Luís Ianes Grou e de Guiomar Rodrigues, declarando também que numas contas feitas no inventário de sua avó, Maria da Penha...
(Inv. e Test., vol. 7, pág. 430).
O inventário de Maria da Penha não foi encontrado no Arquivo do Estado de S. Paulo. Mas os antepassados paternos dos
Grou eram de Portugal e lá ficaram, o que me autoriza a afirmar que a avó então referida era a filha do cacique de Carapicuíba, e mulher de seu
avô, Domingos Luís Grou, e chamava-se Maria da Penha, nome que, sem dúvida, recebera no batismo.
A verdade é que o primeiro Domingos Luís Grou possuía uma data de terra, que
vizinhava com a sesmaria concedida aos índios de Piratininga, junto ao Rio Carapicuíba, como reza a provisão de Jerônimo Leitão passada a 12 de
outubro de 1582, em S. Vicente, e registrada na Câmara da vila de S. Paulo em 26 de agosto de 1522 (Registro Geral, vol. 1º, págs. 354 a
357). Citando o pe. Simão de Vasconcelos, na vida do pe. José de Anchieta, Antônio de Alcântara Machado narra que no ano de 1570, dois moradores
de S. Paulo, "um deles nobre e conhecido por Domingos Luís Grou, ambos casados e ambos com família" tendo cometido um assassinato, fugiram com os
seus para o sertão, metendo-se de companhia com os bárbaros, que estavam com os nossos em guerra, estimulando-os a que acometessem e pondo em
assombro e medo toda a capitania".
Nessa ocasião Anchieta resolveu intervir, conjurando o perigo. Obteve dos
camaristas "salvo-conduto e perdão daqueles delinqüentes" e em companhia do pe. Salvador Rodrigues e do secular Manuel Veloso e de alguns índios
desceu o Anhembi. A canoa em que iam naufragou, e o pe. Anchieta foi salvo por um índio, e o lugar, que era encachoeirado, ficou a chamar-se
Abaremanduava que quer dizer "cachoeira do padre" (Cartas Jesuíticas, vol. 3º, pág. 554).
É esse sem dúvida o episódio referido pelo padre Pedro Rodrigues na vida do
padre José de Anchieta (Anais da Biblioteca Nacional, vol. 29, pág. 219) quando conta que "sucedeu que dois homens, de consciências largas
e de nome, temendo o castigo de suas grandes culpas, se levantaram e com suas famílias, se foram meter com os gentios inimigos pelo que, com
razão, se temiam não viessem com poder de gente a destruir a capitania. Vendo o pe. José que não havia contra esse perigo forças humanas e
confiado só nas de Deus se determinou de ir em pessoa a buscar os alevantados e reduzi-los a obediência do seu capitão levando-lhes largos perdões
de todo o passado. Foi com ele o pe. Vicente Rodrigues e outros homens e um índio esforçado".
Houve o naufrágio da canoa em que iam e o índio salvou o Pe. Anchieta, depois
de dois mergulhos, que duraram meia hora debaixo d’água. Trouxe o padre Anchieta os dois homens alevantados para a vila. Mas, daí a um ano, um
desses homens (e que não é nomeado) "quis tornar ao sertão, mas o capitão recusou-lhe a licença, e por isso ele o maltratou por tal forma que um
filho do capitão o matou a flechadas. O episódio do naufrágio foi posteriormente a 1572, quando Anchieta veio a S. Vicente com o bispo d. Pedro
Leitão e o visitador da Companhia, pe. Ignácio de Azevedo.
Com Antônio de Macedo, filho de João Ramalho, Domingos Luís Grou e mais 50
homens fizeram uma entrada ao sertão, que muito preocupou a Câmara da Vila de S. Paulo, supondo-os todos mortos pelos índios, o que a levou a
fazer em 1590 um ofício ao cap. Jerônimo Leitão tudo narrando com minúcias (Atas, vol. 1º, págs. 388 a 390).
Um filho de Domingos Luís Grou, de nome Mateus Luís Grou, meio sangue
indígena, já foi o cabo da entrada ao sertão de Ibiaguira; uma filha, Hilária Luís, casou-se com Belchior Dias Carneiro, outro meio sangue
indígena, neto de Tibiriçá (vol. 2º, pág. 111), que morreu em 1607, no sertão dos Bilreiros, para o lado dos Carijós, comandando uma bandeira que,
a pretexto de procurar metais, fora cativar índios para trabalhar nas minas de ferro, por determinação de Diogo de Quadros, e era cunhado de
Mateus Luís Grou; e outra filha – Maria Luís Grou – casou-se com Simão Álvares, outro mestiço índio, um dos comandantes de terço das tropas de
Antônio Raposo Tavares o destruidor das reduções do Guairá.
Domingos Luís Grou desapareceu na entrada, a que se refere a Câmara,
feita com Antônio de Macedo, devorado pelos índios.
Encontra-se a confirmação de sua morte em 4 de Junho de 1594, conforme deduzo
do seguinte extrato por mim feito em 1902, dum livro de notas da vila de S. Paulo, do tabelião Belchior da Costa, que me foi confiado pelo dr.
Luís Gonzaga da Silva Leme – livro muito estragado – e a quem logo o restituí.
"1594 – Junho – 4. Maria Afonso, viúva de Marcos Fernandes dá em dote a
sua filha Francisca Alvares, para que se case com Antonio de Zouro, um pedaço de chão, terça parte da data da câmara pegado a outro que ela
comprou de Domingos Luís Grou, já defunto, e pegado com a data de Gaspar Collaço Villela no arrabalde da villa de S. Paulo, e também vende parte
desses chãos a seu sobrinho Alonso Peres Calhamares casado com sua sobrinha..."
§4º - PEDRO AFONSO
Pedro Afonso, ilhéu dos Gagos e Afonsos, de Portugal, segundo Silva Leme (obra
citada) casou-se com uma tapuia, índia resgatada, e desse casamento procedem Maria Afonso, casada com Marcos Fernandes, pai de Simão Alvares, como
disse acima, um dos capitães de terço das tropas de Antônio Raposo Tavares, o destruidor do Guairá, e avô igualmente de Maria Luís Grou, mulher de
Frederico (ou Fradique de Melo), outro capitão de terço das mesmas tropas (Silva Leme, Genealogia citada – vol. 1º, págs. 2 e 3).
§5º - BRAZ GONÇALVES
Braz Gonçalves, português, casou-se com a filha do cacique de Ibirapuera
(Santo Amaro) que no batismo recebeu o nome de Margarida Fernandes (Inv. e Test., vol. 11, pág. 11) e ambos tiveram descendência numerosa.
Seus filhos tomaram parte em diversas entradas ao sertão. Esses nomes Braz Gonçalves, Baltasar Gonçalves, repetem-se com freqüência na família, e
as designações, Braz Gonçalves, o velho, Braz Gonçalves, o moço; não os distinguem uns dos outros, porque essas designações são
dadas em diversas épocas, quando o velho já tinha morrido e o moço já se tornara o velho, e assim também era indicado.
Assim, o Braz Gonçalves, casado com a filha do cacique de Ibirapuera, era
designado como Braz Gonçalves o velho, no inventário de seu filho Braz Gonçalves, o moço, começado no sertão do Paracatu em 1603, e
é feito curador de seus netos, e destituído dessa curatela, em 18 de maio de 1613, por ser homem que nunca aparecia na vila e devia muito (Inv.
e Test., vol. 21, pág. 37). Faleceu antes de 15 de abril de 1620 (idem, vol. 26, pág. 39). Entretanto, em 10 de outubro de 1636, no sertão dos
Carijós, chamados Arachans, no arraial de Diogo Coutinho de Melo, se faz o inventário de Braz Gonçalves, o velho, casado com Inocência
Rodrigues, evidentemente outro de igual nome (Inv. e Test., vol. 11, pág. 129).
A mesma confusão se pode estabelecer com Baltasar Gonçalves. Assim, Afonso
Sardinha, no seu testamento (Az. Marques, Apontamentos) declarava que foi casado com Maria Gonçalves, irmã de Baltasar Gonçalves; Clemente
Álvares foi casado com Maria Gonçalves, filha de Baltasar Gonçalves (Inv. e Test., vol. 1º, pág. 17). E não se pode afirmar se esses
Baltasar Gonçalves eram os irmãos de Braz Gonçalves, ou do genro do cacique de Ibirapuera, não obstante no livro de Atas (Reg. Geral,
vol. 1º, pág. 5 em 1583) haver declaração formal de que um Braz Gonçalves era irmão de um Baltasar Gonçalves.
Nesse tempo os próprios apelidos – Gonçalves, como os de Fernandes, Rodrigues,
Dias – eram usados por pessoas que nenhum parentesco tinham entre si. Assim encontram-se tais sobrenomes designando pessoas de diferentes
famílias. Além disso os filhos do mesmo casal tomavam nomes diferentes dos seus pais, assinando os de seus avós ou padrinhos, o que também traz
confusão ao investigador.
§6º - PEDRO DIAS
Sobre Pedro Dias, falecido em 1590, casado com Maria da Grã, filha de
Tibiriçá, cujo nome indígena era Terebê, Silva Leme recolhe tradição, que não encontra fundamento nos documentos locais de São Paulo, nem nos
documentos jesuíticos até agora conhecidos, e segundo a qual, ele fora irmão leigo dos jesuítas, de cujos votos fora desligado para realizar tal
casamento. Falecendo ela, casou segunda vez com Antônia Gomes, filha de Pedro Gomes e de Isabel Afonso, que era filha de Pedro Afonso e da Tapuia,
meio sangue indígena. Silva Leme dá à sua numerosa descendência em Título de Dias no vol. 8º, pág. 3 e seguintes. Do primeiro matrimônio é
filha Clara Parente, casada com Gonçalo Madeira, cujos inventários estão publicados no vol. 13, pág. 461, dos Inventários e Testamentos.
Da sua segunda mulher, Antônia Gomes, teve Pedro Dias o filho, Francisco Dias
Velho, que foi capitão-mor povoador da ilha de Santa Catarina.
De Clara Parente e Gonçalo Madeira são filhas Agueda Rodrigues casada com
Manuel Preto, o fundador da capela de N. S. do Ó, e Maria Jorge, casada com Francisco Barrete, irmão do capitão-mor Roque Barreto e de Nicolau
Barreto, chefe de Bandeira. Os três Barretos eram filhos de Álvaro Barreto (Inv. e Test., vol. 2º, pág. 221 e vol. 3º, pág. 236)
A numerosa descendência de Pedro Dias e de Terebê é descrita por Silva Leme no
volume 8º da sua Genealogia, em 102 páginas, na qual se encontra a boa gente de S. Paulo.
Poder-se-iam encontrar ainda, com investigação mais atenta e mais
pacientemente minuciosa, outras filhas de caciques, ou de não caciques, ligadas a europeus, fazendo essa mestiçagem audaz, forte, tenaz pelos seus
pais, valentes, dura, sofredora das asperezas e agruras do sertão, por suas mães.
§7º - SALVADOR PIRES
Salvador Pires casou-se com Mécia Açu, neta ou bisneta de Piquerobi, maioral
da aldeia de Ururaí. Faleceu em S. Paulo, no seu sítio de cultura, acima da cachoeira Patuaí no rio Tietê, em 1592. Na sua numerosíssima
descendência encontram-se os maiores nomes da Capitania de S. Vicente. Seu filho, Salvador Pires de Medeiros, ocupou os principais cargos da
República e "na sua fazenda Ajuhá, teve grandes culturas e uma dilatada vinha, da qual todos os anos recolhia excelente vinho malvasia em muita
abundância", segundo Pedro Taques. Fundou a capela de Santa Inez, cuja devoção tomou por ser este o nome de sua mulher, d. Inez Monteiro de
Alvarenga, cognominada a Matrona, em respeito às suas grandes virtudes. Assim assevera Silva Leme na sua Genealogia (vol. 2º, pág.
123) repetindo Pedro Taques.
Salvador Pires era carpinteiro ou pelo menos exerceu esse oficio em S. Paulo (Atas,
vol. 1º, pág. 76).
Foram Salvador Pires e Mécia Açu sogros de Bartolomeu Bueno da Ribeira, de
cujo casamento com Maria Pires nasceu, entre outros. Amador Bueno, que a História denominou o Aclamado.
Os genealogistas não estão de acordo sobre o pai do primeiro Salvador Pires.
Se foi João Pires, este funcionou na Câmara de Santo André (Atas, v. 1º, pág. 11) e d. Duarte da Costa refere-se a perdão do crime, por ele
cometido, em matar um índio com açoites, contanto que fizesse o caminho do mar (R. I. H. G. B., vol. 49, pág. 562).
§8º - PERO LEME
Segundo os genealogistas e os dizeres de seu testamento (Taques, Silva Leme,
Inventários e Testamentos, vol. 1º, pág. 25) Pero Leme era português da Ilha da Madeira, casado com Luzia Fernandes, da qual teve a filha
Leonor, casada com Braz Esteves e todos vieram para S. Vicente pelos anos de 1550, onde foram vítimas dos saques e incêndios feitos pelos ingleses
por fins do século 16.
Aí em S. Vicente enviuvou e casou-se segunda vez com Grácia Rodrigues de
Moura.
Dos seus dois casamentos só teve filhas, sendo que a filha do 2º casamento não
teve geração. Parece que as suas mulheres eram portuguesas; na sua descendência, porém, há cruzamentos, se bem que a linha de sua primeira mulher
conservou-se sem mestiçagem até Fernão Dias Pais Leme, grande sertanista, que Olavo Bilac imortalizou no seu poema o "Caçador de Esmeraldas".
Ele morou primeiro em S. Vicente, porque no seu testamento feito nessa vila em
9 de setembro de 1592, já citado, fala em papéis de crédito, e por duas vezes, que lhe levaram os ingleses, e também de umas casas que tinha em
1582, vendidas por Paulo de Veres, cujos documentos também lhe levaram os ingleses.
Pero Leme foi povoador mas não foi conquistador. Morreu em São Paulo em 1600.
No testamento feito em S. Vicente, o escrivão, que o aprovou, declara que ele era fidalgo da casa real de el-rei, nosso senhor.
§9º - AFONSO SARDINHA
Não se pode afirmar ao certo quando Afonso Sardinha chegou à Capitania de S.
Vicente; mas parece ter sido ele um dos seus mais antigos moradores.
Residiu primeiro em Santos, porque no seu testamento (Azevedo Marques,
Apontamentos) fala, e por vezes, em papéis de crédito que lhe levaram os ingleses, e também de umas casas, que naquela localidade
possuiu, cujos títulos lhe levaram os ingleses.
Esses ingleses seriam os das armadas de Felton em 1587 ou de Thomaz Cavendish
em 1591-1592. Mas passou depois a morar na vila de S. Paulo e no seu termo, onde tinha trapiches de açúcar e gado em sua fazenda, vendia
marmelada, emprestava dinheiro aos capitães-mores de S. Vicente e alugava casas aos vigários, fazia vir negros da África e comprava peles em
Buenos Aires. Tudo em pequena quantidade, pois que para a metrópole só havia uma viagem marítima cada ano, e essa, bem precária. Mais raras e mais
precárias deveriam ser as viagens para outros pontos.
Lorde Macaulay (Ensaios Históricos, vol. 1º, pág. 246 em estudo sobre
Lorde Clive) informa que as relações com a Europa eram infinitamente pouco freqüentes. A viagem para o Cabo de Boa Esperança, que, em 1860 se
fazia em três meses, consumia normalmente ainda por 1730, mais de seis meses, num tempo em que a Inglaterra já começava a dominar os mares e a sua
marinha era superior à portuguesa. Nesse mesmo estudo sobre Lord Clive, informa ainda que, numa de suas viagens, Lorde Clive foi obrigado a
aportar no Brasil, onde aprendeu algumas palavras portuguesas, gastando na sua viagem um tempo imenso, tais os riscos e dificuldades que as
navegações do Atlântico ofereciam.
José de Anchieta (Cartas Jesuíticas, vol. 3º, pág. 85) reclamava
paciência para as informações enviadas de S. Paulo de Piratininga para a Europa, pois que para lá "de ano em ano parte apenas um navio".
Dada a lentidão das coisas coloniais, o pequeno valor que elas representavam e a pouca importância que a elas se davam, não é temerário supor que
em 1583, a comunicação marítima com a metrópole fosse ainda anual.
Foi ele, entretanto, uma das principais figuras da capitania e dela foi
conquistador e povoador. Era analfabeto e sua assinatura era feita com uma cruz com três hastes.
Afonso Sardinha parece ter sido homem jeitoso; pertencia à classe dos que hoje
são chamados "despistadores", sabendo conduzir-se entre as duas correntes que dividiam a capitania – jesuítas e colonos – agradável a
ambas, sem suscetibilizar nenhuma, para se filiar à vencedora.
Vivia bem com os jesuítas, e havia resolvido, desde 2 de novembro de 1592,
deixar-lhes por sua morte em testamento público todos os seus bens, o que se realizou a 9 de julho de 1615 (Azevedo Marques, na sua Cronologia)
mas votava com os colonos, impedindo que as aldeias fossem entregues aos padres da Companhia de Jesus.
Os jesuítas eram contrários às guerras contra os índios, e influíam sobre o
capitão-mor Jorge Correia, para que as não fizesse (Azevedo Marques, Cronologia – Atas, vol. 1º, págs. 446-8).
Não tomou parte na governança da vila de Santo André, tendo-se em vista que o
seu nome não consta nas atas publicadas.
As atas da Câmara da vila de S. Paulo começam em 1562 e vão até 1564, e
continuam em 1572, havendo, pois, um hiato de oito anos nos papéis municipais paulistas. De 1562 a 1564, o nome de Sardinha não aparece entre os
da governança da terra e nada se pode saber até 16 de março de 1572, data em que recomeçam as atas.
Em 1572 foi ele eleito vereador e nomeado almotacé em 1575. Foi de novo eleito
vereador em 1576 e em 1590 (Atas da Câmara desses anos, vol. 1º, págs. 46, 59, 89, e 377).
Em abril de 1578, no inventário de Damião Simões, aparece ele se obrigando
pelo pagamento de uma foice de resgate avaliada em 150 réis, arrematada por Bento Frias (Inventários e Testamentos, volume 1º, pág. 8).
Em 20 de abril de 1592, foi nomeado pelo capitão-mor Jorge Correia para
capitão da gente da vila de S. Paulo e seus termos (Registro Geral, vol. 1º, pág. 51).
A Câmara de S. Paulo, composta dos juízes João de Prado e Pedro Álvares, dos
vereadores Fernão Dias e Antônio Preto, a 2 de maio desse ano (Atas, vol. 1º, págs. 439 e 440), fez objeções e criou dificuldades para
registrar essa nomeação, sob o fundamento de que "a vila nunca tivera outro capitão senão o capitão da terra". O procurador do conselho, Alonso
Peres, achou procedente essas razões, mas alegou, entretanto, que a terra estava ameaçada e que os inimigos estavam a jornada e meia da vila.
Todos ficaram concordes a respeito, resolvendo, porém, esperar o capitão-mor,
Jorge Correia, para tratar sobre o assunto, não impedindo, entretanto, que Afonso Sardinha exercesse as suas funções sem, porém, mandar registrar
a provisão (Atas, vol. 1º, págs. 439 e 440). A vila de S. Paulo estava com efeito ameaçada de sério ataque por parte dos índios inimigos.
A 23 de agosto de 1592 (Atas, vol. 1º, pág. 445) os oficiais da Câmara
se reuniram para tratar da necessidade de uma entrada ao sertão da capitania "para ver o estado dos nossos inimigos", com os quais estavam
em guerra, havia dois ou três anos (Atas, vol. 1º, pág. 442), já tendo protestado perante o capitão-mor. Leram, então, e também aos
moradores da vila que todos foram convocados, o capítulo de uma carta do capitão Jorge Correia que dizia que "se parecesse bom se fizesse o
salto", e logo foi deliberado que se fizesse a guerra com o maior "ímpeto de gente e com toda a brevidade" e que Jorge Correia mandasse a gente de
Itanhaém e de S. Vicente.
Houve, porém, sério rebate dos índios contrários, sendo grave a situação e
"estando os nossos atemorizados", Jorge Correia mandou Afonso Sardinha ao sertão, em seu nome, ver o estado em que estavam os índios contrários ou
dar-lhes guerra com a maior segurança podendo levar todos os índios da capitania (30 set. 1592, Reg. Geral, vol. 1º, pág. 59). Queria
contemporizar.
Jorge Correia ainda quis contemporizar alegando o perigo da guerra no mar com
os piratas estrangeiros, e mais ser necessário pedir socorro ao Rio de Janeiro. A Câmara, porém, vigorosamente repeliu as alegações protelatórias.
Essa entrada se fez, pois que no inventário de Catarina Unhate, em 1613, foi
avaliado o índio Francisco, "Pés Largos", da viagem de Afonso Sardinha (Inv. e Test., vol. 1º pág. 270). Dada a forma vaga com que eram
feitos os inventários, a cativação do índio Francisco poderia ter sido feita, entretanto, antes ou depois desse ano e por Afonso Sardinha, o
moço, pois que ambos entraram ao sertão em diversas épocas. O padre Manuel da Fonseca, porém, na Biografia do Padre Belchior de Pontes,
a qual foi escrita em 1752, narra que a aldeia de Carapicuíba fora povoada por índios trazidos do sertão por indústria de Afonso Sardinha, que por
sua morte os deixou ao Colégio de S. Paulo (pág. 118).
Quando foi nomeado capitão para entrar ao sertão, em 1592, Afonso Sardinha, o
velho, fez o seu extenso testamento lavrado por tabelião, a 2 de novembro desse ano, e nele declara que do seu casamento com Maria Gonçalves (vide
Azevedo Marques, Cronologia, Testamento de Afonso Sardinha, o velho) não houve filhos, não tendo ele herdeiros forçados, pois que
Afonso Sardinha, o moço, seu filho, foi havido na constância do matrimônio. Era portanto adulterino, sem direito a herdar.
Casado com Maria Gonçalves, deixou-a herdeira de toda a sua fazenda "a portas
fechadas" e, de combinação com ela, todos os bens do casal, após a morte de ambos, ficariam aos jesuítas. Nomeou-a testamenteira juntamente com o
irmão Baltasar Gonçalves, seu cunhado, morador de S. Paulo. Não morreu nessa entrada, durou até proximamente 1616.
Conhecidas a escassez feminina européia e a facilidade dos
costumes indígenas, Afonso Sardinha, o moço, deveria ter sido um mameluco. Aliás, essas ligações, de que resultavam os mamelucos, eram
comuns na Capitania de S. Vicente, e os Inventários e Testamentos referem sempre muitos bastardos, palavra que naquele tempo chegou a
significar filho de branco com índia, segundo diz o padre Manuel da Fonseca, na biografia do padre Belchior de Pontes
[6].
Os cronistas antigos de S. Paulo, dada a identidade de nomes, confundem os
feitos dos dois Sardinhas, atribuindo os do pai ao filho e vice-versa, o que sucede, como já notei, com muitos outros colonos. Pela narração feita
não se pode saber com certeza o que pertence ao velho e o que pertence ao moço.
O próprio Azevedo Marques, nos seus Apontamentos, verbo Afonso
Sardinha, quando reproduziu o que escreveu Taques, sobre esses dois colonos, declara (págs. 2 e 3 em nota) expressamente que esse genealogista
confundiu os dois Afonso Sardinha. Apesar de reconhecer a confusão, não a esclareceu e ao contrário a manteve.
O autor dos Apontamentos informa que Pedro Taques, na Nobiliarquia
das principais famílias da Capitania de S. Vicente, diz a respeito de Afonso Sardinha o seguinte: "Foi o primeiro descobridor das minas de ouro,
prata, ferro e aço em todo o Brasil pelos anos de 1589 em as serras seguintes: na de Jaguamimbaba, que ao presente tempo se conhece com o
nome de Mantiqueira; no sítio que agora se diz Lagoas Velhas do Geraldo, distrito da freguesia da Conceição dos Guarulhos, termo da
cidade de S. Paulo; na de "Jaraguá, onde fez o seu estabelecimento minerando, e aí faleceu" etc.
Não diz Az. Marques de que Título da Nobiliarquia extraiu essa
informação. Na obra, porém, do genealogista paulistano no Título Taques Pompeu (Rev. do Inst. Hist. Geogr. Bras., vol. 33, primeira
parte, pág. 93) se lê a respeito de Afonso Sardinha: "o afamado paulista, primeiro descobridor de minas de ouro em todo o Estado do Brasil, em S.
Paulo nas serras de Iguamimbaba, que agora se chama Mantaguyra, na de Jaraguá, termo de S. Paulo, na de Vuturuna,
termo de Parnahyba, na de Hybiraçoyaba, termo de Sorocaba".
Da mesma forma no seu trabalho, sob a epígrafe Informação sobre as minas de
S. Paulo, publicado também pela R. I. H. G. B. (vol. 64, págs. 5 e 6), Pedro Taques diz textualmente que "Afonso Sardinha, e seu filho
do mesmo nome, foram os que tiveram a glória de descobrir ouro de lavagem nas serras de Jaguamimbaba e de Jaraguá (em S. Paulo) e na
de Ivuturuna (em Parnahyba) na de Biraçoyaba (Sertão de Sorocaba) ouro, prata e ferro pelos anos de 1599".
Nesses dois trabalhos, principalmente no segundo, que é especial sobre as
minas de S. Paulo, para o qual os seus cuidados seriam maiores, Pedro Taques, não escreveu que Afonso Sardinha, na "Serra de Jaraguá
tivesse feito o seu estabelecimento minerando, e aí tivesse falecido."
Azevedo Marques resumiu mal a notícia de Taques, no Título Pompeu; e,
nesse caso, deve o seu resumo ser recebido com reserva, salvo se outra tivesse sido a fonte de informação, que o autor dos Apontamentos
transmitiu, a qual não encontrei para ser analisada.
Esse resumo infiel de Azevedo Marques tem induzido a erros todos os estudiosos
que se têm ocupado do assunto, sem, entretanto, ir às fontes originais.
Depois da publicação das Atas e
Registro Geral da Câmara da Vila de S. Paulo e dos Inventários e Testamentos pelo arquivo do Estado de S. Paulo, todas as
informações dos velhos cronistas devem ser afiladas por esses documentos. Os antigos cronistas muito exageraram sobre a fidalguia e riqueza dos
primeiros colonos. De boa-fé, sem dúvida, com o intuito de elevar os seus antepassados.
***
O descobrimento de minas de ouro,
prata e outros metais, nesse tempo, não dava ao descobridor a propriedade das terras em que estivessem elas situadas, ainda mesmo que fossem
devolutas. Mesmo que o descobrimento de minas fosse feito em terras do próprio descobridor, não se tornavam essas minas sua propriedade, pois que
tais minas, desde d. Manuel e seus sucessores até os Filipes de Espanha e até os Braganças restaurados, o direito sobre as minas era regulado
pelas Ordenações Manuelinas, compreendidas e compiladas no Código Felipino.
Este Código, na Ord. l. 2º, títs. 26 e 28, § 16, acolhendo a
Ord. Manuelina do l. 2º, Tít. 20, §15, declarava que os veeiros e minas de ouro e prata, ou qualquer outro metal, eram direitos reais, isto é,
pertenciam ao domínio real. Os descobridores dessas minas estavam sujeitos às regras da Ord. Felipina, l. 2º, tít. 34 e seus parágrafos,
que reproduziam disposições dos tempos de d. Sebastião e do cardeal rei d. Henrique. Os descobridores deveriam manifestar os descobrimentos e
registrá-los perante determinadas autoridades, recebendo depois nelas demarcações precisas, para exploração, com tempos fixados, inteiramente à
sua custa, sob pena de as perderem. Para as minas descobertas eram nomeados provedores, guardas-mores, etc., que davam as demarcações ao
descobridor e a outras pessoas, pagando todos a quinta parte do ouro extraído à Fazenda Real (os célebres quintos) "em salvo de todos os
custos".
A aquisição da propriedade das terras nas costas do Brasil, originariamente
dada por alvarás ou cartas régias, foi delegada primeiro aos donatários das capitanias hereditárias e depois aos governadores gerais e aos
conselhos municipais, que em regra as faziam, aqueles por cartas de sesmarias, e estes por datas nos rossios das vilas, quando, nos seus forais,
houvesse para isso autorização.
D. Francisco de Sousa, governador geral do Brasil, se achou em S. Paulo desde
16 de maio de 1599, por causa dos negócios das minas, como se dirá mais minuciosamente adiante.
A 19 de julho de 1601, no regimento dado a Diogo Gonçalves Lasso,
determinou-lhe "que não consentisse que pessoa alguma possa por ora ir às minas descobertas nem tratem de descobrir outras, salvo Afonso Sardinha,
o velho, e Afonso Sardinha, o moço, aos quais deixo ordem do que neste particular poderão fazer, que vos mostrarão, por serem os
ditos descobridores pessoas que bem o entendem" (Reg. Geral, vol. 1º, fls. 123 a 125).
Em 1601 o representante do rei absoluto – governador geral do Brasil – proibiu
a ida de qualquer pessoa às minas descobertas e as por descobrir. E, se permitiu a ida aos dois Sardinhas, deve-se concluir que também a eles
podia proibir. Permitiu a ida dos Sardinhas às minas, não porque fossem eles delas proprietárias, mas porque eram descobridores e entendiam de
minas.
Pelo direito, então em vigor, e pela aplicação que dele fazia o governador
geral do Brasil, nos regimentos expedidos, há que concluir que os dois Sardinhas não podiam ser proprietários das minas do Jaraguá ou de quaisquer
outras na capitania de S. Vicente.
Também não possuíram datas ou sesmarias que lhes dessem a propriedade de
terras no Jaraguá. Pelo menos nada consta a esse respeito nos arquivos locais, que consultei e estão publicados, encontrando-se, porém, documentos
que os fazem proprietários de terras em outros lugares.
No seu testamento minucioso, feito a 2 de novembro de 1592, publicado por
Azevedo Marques nos seus Apontamentos e já aqui referido, Afonso Sardinha declara que por seu filho natural, Afonso Sardinha, o moço,
já havia feito o que devia, dando-lhe 500 cruzados nos quais entravam "as terras em que ele estava, em Amboaçava, as quais se estenderá da ribeira
da aguada dos índios do forte até outra ribeira, que vem para Amboaçava, entrando pela mata adentro ali onde fiz minha demarcação".
As terras doadas a Afonso Sardinha, o moço, estavam, pois, em Amboaçava e
confrontavam com as do doador seu pai.
De fato, nesse lugar estavam, como se vê na carta de data concedida a Estêvão
Ribeiro, o moço, em 1609, cujas terras na Embiaçava, partiam da tapera de Afonso Sardinha, o moço, até a borda da capoeira de
Afonso Sardinha, o velho, ao longo de uma lagoa que está correndo para o caminho do forte (Registro Geral, vol. 1º, pág. 162).
Cumprindo o prometido no testamento, Afonso Sardinha e sua mulher, em 15 de
julho de 1615, fizeram doação de todos os seus bens à Companhia de Jesus, segundo a Cronologia de Azevedo Marques, o que está confirmado na
escritura pública dessa data, publicada no vol. 44, fls. 360 dos Documentos Interessantes.
Depois da expulsão dos jesuítas, em 1759, no tempo do marquês de Pombal, todos
os bens da Companhia foram confiscados pela Fazenda Real.
O conde de Bobadela, capitão general do Rio de Janeiro e de S. Paulo,
cumprindo ordens do rei, e por carta de 13 de setembro de 1762, mandou fazer o seqüestro desses bens em S. Paulo, como se pode ver no volume 44
dos Documentos Interessantes do Arquivo do Estado de S. Paulo, e no auto de seqüestro e confisco consta:
"ALDEIA DE CARAPICUÍBA"
"Affonso Sardinha e sua mulher Maria Gonsalves fizeram
doação de 'toda a sua fazenda' à Capela de N. Snra. da Graça do Colégio e Igreja de S. Paulo, a qual o seu teor é o seguinte: Saibam
quantos de escritura e doação virem que no ano do nascimento de N. S. J. C. de 1615 aos 9 dias do mês de Julho, etc."
(vol. cit; pág. 360).
Essa escritura mostra que a doação abrangeu
toda a "sua fazenda, moveis e de Rais, peças escravas de Guiné e da terra, terras, casas e gado, e da mais fazenda e benfeitoria que possuião e
tinham de seu nesta vila de S. Paulo e todo o mais que em qualquer parte que estivessem e se soubesse ser sua e por algum modo lhe pertencesse
tirando o que tinham dado por dotes ou esmolas a saber quinhentas braças de terras que tinham dado a Pero da Silva
[7] as quais lhe tinham prometido em dote de casamentos" (idem, pág. 361)... "As terras desta doação de Afonso Sardinha são as em que se
acha situada a Aldeia vulgarmente chamada 'Carapicuíba' no distrito de S. Paulo na qual se acham os Índios administrados que foram dos ditos
padres e de que reza a doação retro"... (idem, pág. 363)... "Algumas terras mais pertencem a esta doação como há uma sesmaria de terras em
Ybatata até a Embuapava, como consta dos títulos dela..." (idem, pág. 367)
[8].
Por esse auto de seqüestro feito nos bens da Companhia de Jesus, vê-se que
todos os bens que possuía Afonso Sardinha, e que haviam sido doados aos jesuítas, passaram à Fazenda Real, aí se declarando inequivocamente, onde,
em S. Paulo, estavam eles situados. Nele não se encontra a menor referência a terras no Jaraguá.
Além disso, outros documentos, também oficiais, vêm confirmar a localização
das terras de Sardinha, em outros lugares.
Assim, no volume 1º de Sesmarias, publicado pelo
Arquivo do Est. de S. Paulo (págs. 35 e 36) está registrada a data de terra de Afonso Sardinha, a 3 de novembro de 1607, na qual, alegando ser
morador antigo na vila de S. Paulo e na capitania de S. Vicente, que sempre prestara serviços a S. Majestade, em bem da terra, tendo fazenda e
trapiches de açúcar no rio Jerobatiba, pedia que lhe fossem dados os alagadiços que estão ao longo desse rio, dum lado e doutro, o que lhe foi
concedido pelo capitão-mor Gaspar Conquero. Nesse mesmo livro de Sesmarias está o auto de posse da data concedida (págs. 37 e 38) no qual
consta que o capitão-mor Gaspar Conquero "estando no termo da vila de S. Paulo, no lugar que se diz Ubat...
[9] onde mora Afonso Sardinha, no ano de 1607 deu a este posse dos alagadiços e campos conteúdos na data concedida".
Esses dois documentos estão estragados pelas traças, mas se completam, e são
ainda completados por outro (ainda no mesmo livro I de Sesmarias, fls. 42 a 44) em o que capitão-mor Gaspar Conquero, a 22 de janeiro de
1609, concede a Fernão Dias, a Pero Dias e a outros uma data de terras nas cabeceiras que tem Afonso Sardinha, sobejos das terras que foram de
Domingos Luís Grou, partindo de Carapicuíba até a barra de Jerobatiba.
Na sua Genealogia Paulista (vol. 6º, pág. 18 a 19 em nota), Silva Leme
informara que Afonso Sardinha morava em Ubatãtã, e cita manuscritos de Pedro Taques como fontes dessa informação.
Essa moradia se encontra confirmada na vereação de 9 de setembro de 1623, na
qual os oficiais da Câmara, reconhecendo a danificação dos caminhos e serventias da vila, mandam consertar a ponte que está na fazenda, da que foi
de Afonso Sardinha, onde chama Ibatãtã (Atas, vol. 3º, pág. 51).
Ora, com esses documentos, ora citados e examinados, como
sejam: a) o testamento de Sardinha, o velho, dando a seu filho terras em Amboaçava partindo com as suas; b) a escritura de doação feita
pelo Sardinha, o velho, aos jesuítas, de todos os seus bens, em qualquer lugar em que se achassem; c) o arrolamento desses bens confiscados
aos jesuítas no qual se encontra a doação de toda a sua fazenda e em que estava a aldeia de Carapicuíba, mas em que não há referência sequer a
posse ou domínio no Jaraguá; d) a concessão de sesmaria de Ibatãtã em Embuapava; e) a concessão de terras e o auto de posse das mesmas ao longo do
rio Jerobatiba dum lado e doutro; f) a confrontação indicada na sesmaria de Fernão Dias, Pero Dias e Estêvão Ribeiro e de outros, cabeceiras que
tem Afonso Sardinha, sobejos de Domingos Luís Grou, partindo de Carapicuíba; g) a indicação da morada do velho Afonso Sardinha em Ubatãtã, todos
esses documentos, repito, publicados e que podem ser examinados e criticados, mostram que a moradia e a fazenda de Afonso Sardinha, o velho,
estavam situadas em terras que partiam em Amboaçava, abrangiam a aldeia de Carapicuíba, ao longo do rio Jurubatuba em ambos os lados, e o Ibatãtã,
onde ele morava [10]. A sesmaria de terras que ele obteve em Ibatãtã até Embuapava nada
rendia (Documentos Interessantes, vol. 44, pág. 367).
Esses lugares Carapicuíba, Emboaçava, Butãtã ao longo do Rio Pinheiros, antigo
Jerobatiba, até a sua barra, estão à margem esquerda do rio Tietê (antigo Anhembi), e não abrangem o Jaraguá, que está situado à margem direita do
Anhembi, do Tietê, do tradicional rio paulista.
É provável que os Sardinhas tivessem minerado em Jaraguá; mas não eram
possuidores de terras no Jaraguá, nem lá se enriqueceram. As minas do Jaraguá foram sempre escassas, como se sabe.
Descrevendo a extrema pobreza dos habitantes da vila de S. Paulo, e se
referindo a d. Francisco de Sousa, nessa vila estante de 1599 a 1602, frei Vicente do Salvador narra que o governador "entretinha o tempo que
lhe restava do trabalho das minas, que era mui grande, e mui maior não ser sempre de proveito porque como é ouro de lavagem umas vezes se lavrara
pouco ou nenhum, mas outras se acharam grãos de peso e de que ele enfiou um rosário, assim como saíam redondos, quadrados ou compridos que enviou
a Sua Majestade" (frei Vicente do Salvador, História do Brasil, pg. 382).
Frei Vicente do Salvador, que foi contemporâneo de d. Francisco de Sousa e
que, segundo parece, esteve com ele em S. Paulo conforme alguns escritores, mostra que bem pouca coisa em ouro se tirou em todas as minas dos
arredores de S. Paulo.
A vila de S. Paulo, nessa época era paupérrima, assim nota frei Vicente do
Salvador, na sua História do Brasil. E era verdade. A casa de morada de Afonso Sardinha, o velho, deveria ser pobríssima como então
eram todas, como se vê nos inventários feitos nessa época.
Em 2 de agosto de 1584, época quase contemporânea do descobrimento do ouro em
Jaraguá (do descobrimento, não da exploração) os oficiais da Câmara e os homens bons da terra se reuniram nas pousadas de Jorge Moreira "por
não haver casa do conselho porque a que havia estava caída da cobertura, mandaram ajuntar o povo e com o parecer de todos logo todos a uma voz
disseram que era bom e lhe parecia bem que se fizesse uma casa do conselho nova e coberta de telhas" (Atas, vol. 1º, pág. 244).
Aos 19 de julho de 1583, muitos meses antes, já a Câmara funcionava nas
pousadas de Baltasar Gonçalves, por não haver casa de conselho, e notava a necessidade de consertar "a cadeia, porque a sua cobertura quebrou e
o telhado de palhas caiu sobre as paredes e eles não ousavam tirar a palha e descobrir as paredes, porque sendo estas de taipa, dariam consigo no
chão". Isso fora verificado em 30 de dezembro de 1583, "e não fora consertado, porque o conselho era pobre não tendo dinheiro para consertar"
(Atas, vol. 1º, págs. 225 e 226).
Os edifícios principais da vila –
Cadeia e Casa do Conselho - estavam nesse estado miserável pela pobreza e, acrescente-se, pela negligência de seus habitantes. Por esse estado de
ruína é lícito avaliar as condições das casas dos habitantes da vila e seu termo.
***
Os dois Sardinhas eram sertanistas e
fizeram entradas ao sertão. Das entradas do velho já aqui se encontra referência; das do moço, além das referidas nas Atas
(volume 2º, fls. 47 e 150), informa Azevedo Marques na sua Cronologia, que "em 1604, Afonso Sardinha, o moço, fez testamento no
sertão escrito pelo padre João Alves, e nele declarou 'possuir 80.000 cruzados em ouro em pó, que o tinha enterrado em botelhas de barro'".
Em 1604 o padre João Alvres
[11]
estava realmente no sertão, e na bandeira de Nicolau Barreto, da qual ele e o padre Diogo Moreira eram capelães conforme expressamente declaram
essas qualidades por escrito na quitação, que passam, por missas cantadas e rezadas por alma de Manuel de Chaves, aí morto por uma flechada que
lhe deram os Tupiães (Testamento de Manuel de Chaves, Inv. e Test., vol. 1º, págs. 461 e 489). Se Sardinha, o moço, fez testamento
no sertão em 1604, parece que lá não morreu. Não consta que tivesse sido feito lá inventário dos bens de pessoa declarada tão rica. Segundo se
pode deduzir do testamento de seu filho, Pero Sardinha, em 1615, ele provavelmente ainda vivia, já tendo, porém, morrido em 1616, quando foi feito
o inventário desse filho em São Paulo, porque é ao avô que o juiz do inventário manda perguntar se quer nele herdar.
A extrema miséria, em que morreu Pero Sardinha, mostra que ele nada herdou de
seu pai Afonso Sardinha, o moço. Este, como todos os moradores de S. Paulo, nessa época, era pobríssimo. Nada teria ele deixado a seus
filhos; se tivesse deixado, Pero Sardinha no testamento não iria implorar ao avô a compra do filho da escrava Esperança. Ao contrário, declara ele
que nada possui, e, na falta de seu avô, é à sua irmã que implora a libertação da criança que ele tinha por seu filho, do mesmo nome que seu pai e
seu avô.
O fato, que relata Azevedo Marques, sobre os 80.000 cruzados, pode ser
verdadeiro. Mas a quantidade de ouro em pó, enterrado em botelhas de barro, é, sem dúvida alguma, muito exagerada. Evidentemente 80.000 cruzados
em todas as espécies, mas somente em ouro em pó, nessa época em que um boi valia 1$500 e uma vaca 1$200, um sítio em Pinheiros se avaliava por
16$000 e uma casa na vila com seu quintal por 10$000 (vide inventários do tempo) e o capitão-mor-loco-tenente e ouvidor do donatário ganhava 50
mil réis anuais, e pagos pelas rendas da capitania, a quantia de oitenta mil cruzados é quantia fabulosa (vide livro nº 54 da Câmara de S.
Paulo, numeração antiga de 1602. O traslado no vol. 1º do Registro Geral, pág. 39 está incompleto). Mas ainda em 1607 o capitão-mor ganhava
50$000 (Registro Geral, vol. 1º, pág. 143).
Capistrano de Abreu também já achava exagerada tal quantidade de ouro, dizendo
que deveria haver muito ogó no monte (Capítulos de História Colonial, pág. 193, edição da Casa Capistrano, por Capistrano de Abreu – 1928).
E torna-se mais acentuado o exagero dessa quantidade de
ouro, se se levar em conta que, na vila de S. Paulo, paupérrima e atrasadíssima, e, nesse tempo, com pouquíssimos e ignorantes habitantes
[12]
um bastardo, cujo pai em 1592 declara em testamento ter "por ele já feito o que devia dando-lhe 500 cruzados", pudesse ter guardado, doze anos
depois, 80.000 cruzados em ouro em pó e os tivesse enterrado sem que ninguém o soubesse. É de notar ainda que Afonso Sardinha, por mais hábil
sertanista que fosse, e entendedor de minas, não poderia ter conhecimentos especializados para exploração, como o declarava d. Francisco de Sousa.
As grandes minas gerais só foram descobertas no século 18.
Os processos de mineração eram então grosseiros, rudimentares, e consistiam na bateia que exigia numeroso pessoal e imenso tempo, dando o ouro de
lavagem, que não poderia ser feito às escondidas dos moradores da vila
[13].
D. Francisco de Sousa, no regimento já referido
[14],
dado em 1601 a Diogo Gls. Lasso, menciona, como motivo da proibição da ida às minas, descobertas e por descobrir, a "falta de mineiros"
para o respectivo benefício, mineiros que mandara vir e os estava esperando, a fim de que as achassem intactas e vissem que se falou
verdade a S. M. (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 124).
Intactas deviam, ainda em 1601, ficar as minas, era a ordem do
governador geral, e se os Sardinhas foram autorizados a lá ir e a descobrir outras, não podiam explorá-las.
As chamadas minas do Jaraguá, Bituruna, foram também descobertas por Clemente
Álvares (Atas, vol. 2º, pág. 172) que as manifestou em 1606, procurando-as, segundo disse, desde 14 anos, época mais ou menos em que também
as descobriram os Sardinhas, nada produziam ainda, dois anos depois do testamento de Afonso Sardinha, o moço, no sertão. E nada tinham
produzido, porque o próprio Clemente Álvares pede que se registre o seu descobrimento em Jaraguá para "não perder o seu direito, vindo oficiais e
ensaiadores que o entendam, por ele não o entender senão por notícia e bom engenho". No tempo em que as manifestou, em 1606, as minas de Jaraguá
ainda esperavam os mineiros e ensaiadores.
Não tinha ainda havido exploração, estavam ainda intactas, conforme
determinara d. Francisco de Sousa. Se houvesse produção, o Fisco, curioso e ávido, não teria deixado de arrecadar os quintos para receber
as porcentagens. As penas para quem guardasse ouro em pó eram severíssimas, e importavam em confisco desse metal, em multas pecuniárias, açoites
nas ruas públicas, degredo para Angola, devendo todos reduzir o ouro a barras, depois de quintado (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 93 e
94).
De 19 de julho de 1601, data em que o governador geral do Brasil em atividade
febril em S. Vicente para descobrimento de ouro, declarava intactas as minas de S. Paulo (regto. dado a Diogo Gonçalves Lasso, no
Registro Geral, vol. 1º, págs. 123 a 126) até setembro de 1602, época provável da partida da bandeira de Nicolau Barreto para o sertão, na
qual tomaram parte Afonso Sardinha, o moço, e o padre João Alvres, redator este do testamento do dito Sardinha (Inventários e
Testamentos, vol. 1º, pág. 489 e vol. 11, pág. 17), em um ano e dois meses, portanto, não poderia esse bandeirante, em terra muito pequena e
muito pesquisada, ter extraído das escassas minas 80.000 cruzados em ouro em pó, e muito menos ainda, enterrá-los em botelhas de barro.
Deve haver na informação referida por Azevedo Marques, quanto à quantidade de
ouro, ou erro de impressão ou de cópia, ou de escrita do padre João Alvres ou do ditado de Afonso Sardinha, o moço. Afonso Sardinha, o
velho, teria morrido em 1616, segundo Azevedo Marques (Cronologia).
Afonso Sardinha, o moço, teve pelo menos dois filhos, Thereza que se
casou com Pero da Silva, a quem o velho Sardinha fez doação de 500 braças de terra, e um filho que se chamou Pedro Sardinha.
Este morreu no sertão dos Carijós na bandeira de Lázaro da Costa em 8 de
dezembro de 1615. Silva Leme, na Genealogia Paulistana (vol. 6º, pág. 186, em nota, e vol. 1º, pág. 76) dá a descendência de uma filha de
Afonso Sardinha, que ele chama de Luzia. A notícia desta descendência está confusa, a começar pelo nome da filha de Afonso Sardinha,o moço,
casada com Pero da Silva, que se chamava Tereza e não Luzia, como se vê no testamento de seu irmão Pero Sardinha (Inv. e Test., vol. 3º,
pág. 397).
Pero Silva, casado com Tereza Sardinha, foi inventariante dos mesquinhos bens
do bandeirante, seu cunhado, conforme se vê no seu inventário feito em São Paulo, em 10 de abril de 1616 (Inv. e Test., vol. 3º, pág. 397).
Quando recentemente demolida, 1896-97, a Igreja do Colégio da Companhia de
Jesus, em São Paulo, foi encontrada a pedra tumular, que marcava o lugar em que foram sepultados Afonso Sardinha, o velho, e sua mulher.
Dessa pedra foram tiradas fotografias, publicadas no nº 1 da revista São Paulo Antigo e São Paulo Moderno, pelos editores Vanorden & Cia.
Essa pedra está hoje no Museu Paulista.
Pelo estudo feito neste parágrafo, baseado nos documentos autênticos locais,
deve-se concluir que nenhum dos Afonsos Sardinhas teve propriedade em Jaraguá; que a fazenda de Afonso Sardinha, o velho, onde ele morava e
tinha trapiches de açúcar, estava nas margens do Rio Jerobativa, hoje Rio Pinheiros, e mais que a sesmaria que obtivera em 1607 no Butantã nada
rendia e que todos os seus bens foram doados à Companhia de Jesus e confiscados pela Fazenda Real em 1762 em São Paulo. Se casa nesta sesmaria
houvesse, deveria ser obra dos jesuítas.
Pelo mesmo estudo se conclui que Afonso Sardinha, o moço, em 1609 ainda
tinha a sua tapera em Embuaçava, terras doadas por seu pai. Não poderia ter 80.000 cruzados em ouro em pó, enterrados em botelhas de barro.
Quem possuísse tal fortuna não faria entradas no sertão descaroável nem deixaria seus filhos na miséria.
§10 - BRAZ CUBAS
Braz Cubas é também morador antigo da Capitania de S. Vicente; mas este não
foi um conquistador. Pertence ele mais ao elemento "administração portuguesa", ao funcionalismo da colônia, no qual foi provedor da Fazenda
Real, arrecadador de direitos de el-rei, nosso senhor, uma espécie de inspetor aduaneiro, concorrendo para a fundação da povoação de Santos
e da construção da casa da alfândega e da Santa Casa de Misericórdia. Exerceu por vezes o cargo de capitão-mor em nome do donatário. Obteve muitas
sesmarias e datas em Santos, delas fez doações a ordens religiosas e era grande demandista, segundo se depreende dos documentos coevos e de uma
carta de Manuel da Nóbrega, na qual fala nos litígios que ele manteve com Pero Correia, que entrou para a Companhia de Jesus. Segundo alegação de
seus serviços, fez uma entrada no sertão à procura de minas, em companhia de Luís Martins, informando descobrimento de ouro em Jaraguá, entrada
analisada por Lobo Leite Pereira em estudo publicado no Arquivo Mineiro.
Essa entrada é posta em dúvida e só consta na carta que escreveu ao rei.
Braz Cubas só teve filhos bastardos.
§11 - BUENOS
Segundo Taques, na sua Nobiliarquia Paulista, publicada pelo Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, e seguida por Silva Leme, na sua Genealogia Paulista, Bartolomeu Bueno da Silva passou-se para S. Paulo,
em 1571, com seu pai Francisco Ramires de Porros e foi de nobre família de Sevilha. Esse pai voltou para Espanha em 1599, deixando-lhe procuração
passada a 20 de maio de 1599.
Segundo Américo de Moura, Povoadores dos campos de Piratininga, a sua
vinda para S. Paulo teria se dado em época posterior, e cita Carvalho Franco que afirma que Bartolomeu Bueno da Silva veio na armada de Diogo
Flores Valdez que, em viagem para o estreito de Magalhães, aportou em Santos. Nesse porto Bartolomeu Bueno, segundo a versão última, desertou da
armada e passou-se para S. Paulo, onde depois casou-se com Maria Pires, filha de Salvador Pires e de Mécia Açu.
Serviu os cargos da república desde 1587; em 1591 como almotacé (Atas,
vol. 1º, pág. 423), e vereador em 1616 (Atas, vol. 2, pág. 371).
Era analfabeto, pois todas as suas assinaturas são feitas por sinal que
adotou.
Era carpinteiro, como seu sogro Salvador Pires, e em 1587 foi designado juiz
de seu ofício como se vê na Ata da Câmara de S. Paulo, no vol. 1º, pág. 321.
Sua sogra Maria Pires era filha de Mécia Açu e por esta descendia de Piquirobi,
maioral da aldeia de Ururaí. Deixou Bartolomeu da Silva numerosa descendência, que se tornou notável na vida colonial de S. Paulo.
Um dos seus filhos, Amador Bueno, passou à História como o Aclamado,
pois aclamado foi rei de S. Paulo, quando da restauração do reino de Portugal, em 1640, por um movimento sem solidez, chefiado por seus genros
espanhóis. Recusou enérgica e sensatamente a coroa hipotética de rei de S. Paulo. Segundo Silva Leme, que seguiu Taques, o Aclamado
casou-se com Bernarda Luís, descendente de João Ramalho e de uma filha de Tibiriçá, o maioral indígena dos campos de Piratininga, e amigo dos
jesuítas.
Outro filho, Francisco Bueno, possuidor de um sítio no Jaraguá, foi cabo de
uma bandeira que em 12 de maio de 1637 se achava no sertão; e, no seu arraial morreu Estêvão Gonçalves, filho de Baltasar Gonçalves Mállio (Inventários
e Testamentos, vol. 11, pág. 200).
Um outro filho, Jerônimo Bueno, comandou bandeira que em 1637 estava no Sertão
do rio Taquari, e da qual fizeram parte Manuel Preto (vol. 11, pág. 176), João Preto (vol. 11, págs. 176-178) e outros. Pereceu no sertão com toda
sua tropa em 1644, segundo Pedro Taques e Silva Leme.
Um seu neto, Bartolomeu Bueno, por alcunha Anhangüera, lançava
aguardente nas rochas e a queimava, para fazer crer aos indígenas que possuía o poder de incendiar as águas dos rios, e, assim amedrontando-os,
mais facilmente aprisioná-los, segundo diz Pedro Taques.
Um filho deste Anhangüera, Bartolomeu Bueno, o segundo Anhangüera,
bisneto de sevilhano, foi aos 70 anos de idade o descobridor das minas de Goiás, as Minas dos Martírios, no tempo do governo de Rodrigo Cesar de
Meneses, já por ele divisadas, quando com doze anos acompanhara seu pai nas expedições aos sertões.
Descendentes desse sevilhano fizeram parte de ordens religiosas e foram frades
carmelitas, beneditinos, como frei Gaspar da Madre de Deus, e estadistas do segundo reinado, como o marquês de S. Vicente (Pimenta Bueno).
§12 - JOÃO DE PRADO
João de Prado era de tanto valor e prestígio na capitania, que os cronistas
jesuítas espanhóis fazem-no chefe da entrada em 1597, de que, entretanto, foi cabo João Pereira de Sousa, e na qual ele morreu, no sertão da
Parnaíba.
Ocupou todos cargos da governança da terra, e foi casado com Filipa Vicente,
ambos naturais de Olivença e a ambos Pedro Taques conferiu nobreza.
Para conciliar Pedro Taques com as leis da nobreza, é preciso talvez entender
os nobres, a que ele se refere, como pessoas respeitáveis, de valor moral, pela consideração de que gozavam na terra, visto como nos
inventários de Filipa Vicente, viúva de João de Prado, são eles declarados apenas pessoas honradas (Inventários e Testamentos, vol. 1º,
pág. 101).
Deixou também numerosa descendência.
§13 - DIOGO BRAGA
Diogo Braga era português. Quando Hans Staden chegou a S. Vicente, já o achou
com filhos homens, havidos de uma índia da terra, já cristãos e falando tão bem o tupi quanto o português. Isto por 1551.
§14 - FERNANDES E OUTROS
Houve nos primeiros tempos muitos outros conquistadores e povoadores da
Capitania de S. Vicente, os Fernandes, os "Pretos", os "Gonçalves" os "Camargos", os "Álvaro Netos", os "Bicudos", "os Campos." Além desses,
tantos outros cujos feitos não foram conservados e cujos nomes se encontram solitariamente na rudeza das atas das Câmaras, no intrincado dos
inventários e testamentos, e, ainda muitos outros, cujos nomes nem nesses papéis aparecem.
Os Fernandes, conhecidos nas crônicas como Fernandes povoadores, foram
fundadores de Santana de Parnaíba, de Itu e de Sorocaba; eram filhos de Manuel Fernandes Ramos e de Luzia Dias, esta filha de Lopo Dias, neta de
Tibiriçá (Inv. e Test., vol. 33, págs. 12 e seguintes, Pedro Taques e Silva Leme).
Havia aí homens de diversas raças e de diversas línguas – italianos,
flamengos, alemães, castelhanos, aragoneses, etc. além dos portugueses – como se pode ver na narração de Hans Staden, no processo de João Boulés,
e em outros escritos, o que era natural durante o domínio dos Filipes.
De alguns, principalmente dos que morreram no sertão, soldados e cabos de
bandeiras, se fará mais minuciosa referência, quando forem estudadas as respectivas entradas.
Mas outros, e muitos, dezenas no começo, centenas depois e milhares após o
descobrimento das minas, vieram ao Brasil, espontaneamente ou por força, e aí se casaram, se ligaram às índias prolíferas ou com as filhas ou
netas delas, deixando enorme descendência, cujos nomes não são indicados nas Atas da Câmara de S. Paulo, nem no Registro Geral, nem
nos Inventários e Testamentos, anônimos, que desapareceram nas bandeiras que anonimamente partiram para o sertão e lá foram aniquiladas.
Muitos dos que, em Portugal, mereceram ser degredados para as costas do
Brasil, nestas costas em que nos primeiros tempos não havia leis ou autoridades, viveriam apenas cometendo o crime da época, que era a
escravização da raça vermelha e da raça negra, crime que praticaram todos, nos séculos 15 e 16, e mesmo depois.
Não é possível nomeá-los todos e, só menciono alguns que se acham indicados,
em documentos e nos genealogistas, até o fim do segundo governo de d. Francisco de Sousa; por isso, encerro provisoriamente esta lista com um
tópico de Antônio Knivet na descrição, sem dúvida verdadeira em alguns pontos, mas indubitavelmente fantasiosa em muitas de suas partes. Escreve
ele referindo-se a Martim de Sá, seu cabo numa entrada, "Que poder tem o capitão para dar morte a este homem? Não viemos a estes sertões em
serviço do rei, se não em proveito próprio, e o capitão, não é mais que um bastardo do governador" (Salvador Correia de Sá) (R.I.H.G.B.,
vol. 41, pág. 237 da primeira parte).
O sertão onde eles estavam, segundo se depreende, era nas proximidades do vale
do Rio Paraíba, ainda na capitania de Martim Afonso. E o padre Manuel da Fonseca diz claramente o que era um bastardo nos primeiros tempos
coloniais.
Entretanto Salvador Correia teve um filho chamado Martim Correia de Sá, que
não era bastardo e este foi o pai do famoso Salvador Correia de Sá e Benevides, por sua mãe espanhola d. Maria de Mendonça e Benevides
(Camilo Castelo Branco, Serões de S. Miguel de Seide, vol. 2º, pág. 97).
Muitos foram os que se aliaram às índias com as quais deixaram numerosa e
abundante descendência. Desses, que os inventários dizem apenas "se ter notícia por serem mortos no sertão", não recolheram os genealogistas os
nomes nem as gerações.
Muitos dos seus inventários desapareceram, talvez a
maior parte, outros não tiveram inventários porque só possuíam os seus corpos e as suas vidas. Destes pode-se ainda com trabalho insano fazer a
genealogia, catando-os nas Atas da Câmara, no Registro Geral, nas referências dos inventários existentes. No momento só se pode
erguer o monumento do "Bandeirante Desconhecido", como após a Primeira Guerra Mundial se levantou o monumento do "Soldado Desconhecido".
[1]
Esta observação foi escrita em 1951.
[2] Toledo Rendom, R. I. H. G. B., vol. 4º, pág. 295.
[3] Notemos ainda que, por este documento, se vê, numa sesmaria passada por Gonçalo Monteiro, que este se declara vigário e capitão-loco-tenente
de Martim Afonso de Sousa, governador da capitania de S. Vicente; o que indica que a palavra vigário poderia ter sido empregada na sua
acepção rigorosamente etimológica, como mostrando aquele que substitui, que faz as vezes de outro.
Martim Afonso de Sousa não era um prelado, mas o donatário da capitania; o seu vigário não era, pois, por este motivo, um padre, mas um
capitão. Entretanto, um Gonçalo Monteiro foi vigário de S. Vicente por 1560, conforme se verifica no processo por heresia iniciado pelo padre Luís
da Grã contra João de Boulés (Anais da Biblioteca Nacional, v. 25, pág. 217). Fica assim retificado esse fato como também o da atribuição
de João Ramalho de ter fundado quer a povoação, quer a vila de Santo André da Borda do Campo, referidos no v. 9, da R. I. H. G. de S. Paulo,
pág. 563.
[4] Além das informações dos genealogistas, encontra-se a confirmação disto em Atas vol. 1º, pág. 133, em que se fala em Manuel Fernandes,
genro de Lopo Dias. Vide também inventário de Suzana Dias e dos companheiros de André Fernandes - Inventários e Testamentos, vol. 33, pág.
11 e Inventários de Belchior Carneiro, no qual declara a sua filiação. (vol. 29, pág. 111. Atas, vol. 1º, pág. 465) – Suzana Dias é
intimada a entupir um buraco que seu filho fez em um beco na vila (Atas, vol. 1º, pág. 468) Antônio Rodrigues, genro de Suzana Dias,
almotacé em agosto de 1593.
[5] A reticência indica palavras destruídas pelas traças.
[6] Vida do Padre Belchior de Pontes, pelo Padre Manuel da Fonseca, pág. 233.
[7] Pero da Silva foi casado com uma sua neta, Tereza, filha de Afonso Sardinha, o moço, e irmã de Pero Sardinha, conforme se vê no
testamento deste, publicado no vol. 3º, dos Inventários e Testamentos, págs. 395, 396 e 397.
[8] A casa, que hoje comemora o Bandeirante desconhecido, não foi edificada por Afonso Sardinha; teria sido bem mais tarde, e talvez pelos jesuítas,
na sesmaria desse povoado da Capitania de S. Vicente, que dela ficaram possuidores.
[9] O final está roído por traças.
[10] Não é difícil a identificação desses nomes, embora redigidos com a escrita caprichosa dos escrivães desse tempo; Jerobatiba ou Jurubatiba é o
atual rio de Pinheiros, Amboaçava, Imboaçava, Embuapava, grafias diferentes da mesma palavra, Ubat...... Ubãtã ou Ybatata é o atual Butantã.
[11] Padre João Alvres, clérigo, natural da vila de S. Paulo, filho e neto de conquistadores da capitania de S. Vicente, que assistia e morava em
Boigi miri, querendo fazer suas milharadas, requer ao Capitão Gaspar Conquero meia légua de terra no dito Boigi miri da outra
banda..................... Anhembi indo para a Paraíba, e fica esta...................... se o rio Anhembi, o que lhe foi concedido a 8 de março
de 1610, no Porto de Santos (Sesmarias, vol. 1º, pág. 89 e seguintes). Este clérigo ainda vivia em 9 de julho de 1630, conforme se vê na
carta do padre Justo Mansilla Vam Sunk (Documentação espanhola, publicada pelo Museu Paulista, vol. 2º, pág. 261).
[12] A Câmara informa em 1591 que 140 eram os moradores da vila (Atas, vol. 1º, pág. 410).
[13] John Mawe, que fez Viagens no interior do Brasil, no começo do século 19, descreve no capítulo V como se fazia a exploração de ouro no
Jaraguá. Declara que não havia mina, mas lavagem de ouro, feita a céu aberto, exigindo muito tempo
a muito
pessoal. E isso em tempo em que o Jaraguá pertencia ao capitão general Franca e Horta, dois séculos depois da descoberta aí feita. Não era
possível em 1602 haver minas com exploração clandestina que permitissem a Afonso Sardinha obter 80.000 cruzados em ouro em pó e os esconder em
botelhas.
[14]
Regimento dado a Diogo Gonçalves Lasso em 19 de julho de 1601 (Registro Geral, vol. 1º, págs. 123 a 126). |