Capítulo VII - Os jesuítas
A Companhia de Jesus, estabelecida em Roma por poucos, mas ardorosos membros, foi aprovada pelo papa Paulo III em 1540.
Sob a inspiração viva e a ação infatigável de Inácio de Loyola, como superior,
forma os seus principais membros os padres Pedro Lefèvre, Francisco Xavier, Simão Rodrigues de Azevedo, Diogo Laynez, Afonso Salmeron e Bobadilha.
Os jesuítas faziam voto de pobreza, de castidade e de obediência e se
organizaram para defender e revigorar a fé católica, então extremamente abalada pela Reforma e robustecer os princípios cristãos, por todos os
meios honestos, com o desprendimento dos bens terrestres e principalmente com o desprezo da vida. Organizou-se com um Superior Geral – Inácio de
Loyola – em Roma e com diversos Provinciais nas diferentes regiões do mundo, tantos quantos necessários.
O padre Simão Rodrigues de Azevedo ficou em Lisboa e foi em Portugal o
primeiro Provincial.
Aceita por d. João III, segundo se escreveu, a sugestão do padre Diogo de
Gouveia, por intermédio do padre Simão Rodrigues de Azevedo, foi adotada a idéia de evangelização dos indígenas do Brasil pelos padres da
Companhia de Jesus, e foram designados seis jesuítas que partiram com Tomé de Souza em 1549, primeiro governador geral do Brasil, cujos nomes já
foram indicados. Vieram mais quatro na esquadra de Simão Gomes de Andrade, em 1550.
Com d. Duarte da Costa, segundo governador geral do Brasil, em 3 de julho de
1553, ainda vieram sete. Entre estes últimos veio o Irmão José de Anchieta.
"Depois destes, em diversos anos, vieram outros padres e irmãos, que passaram
de 70 em 1584, os mais deles já recebidos e outros para cá se receberam, entre os quais vieram muitos bons latinos, outros filósofos, outros
teólogos e pregadores, entre estes vieram italianos, espanhóis, flamengos, ingleses, ibérnios e o mais deles portugueses". É o que se lê na
Informação do Brasil em 1584 (Vol. VI da R. I. H. G. B., pág. 425).
A companhia de Jesus e a sua ação constituem matéria já muito estudada e muito
discutida.
Foi ela, e tem sido, violentamente atacada, quer pelos meios que empregou,
quer pelos fins visados. Mas tem sido entusiasticamente defendida.
Entretanto, em alguns desses atacantes e defensores, se encontram profundos
erros de julgamento. Os homens e as suas instituições só podem ser julgados com imparcialidade de acordo com princípios em vigor, na época em que
existiram.
Todas as instituições nascem, crescem, se desenvolvem, querem dominar, sofrem,
se desnaturam ou se modificam ou acabam por desaparecer. A Companhia de Jesus, como instituição humana que é, nasceu, cresceu, se desenvolveu,
sofreu, se modificou, desapareceu, mas reapareceu. Os seus fins iniciais, visados por Inácio de Loyola, têm sido transformados nesses quatrocentos
anos de sua útil e tormentosa existência. Neste Brasil, desde 1549, desde a extrema pobreza e do extremo sacrifício, até a grande proprietária de
terras e de outros bens pelo recebimento de doações e de legados, desde a expulsão, desde a extinção até a volta e de novo, a ensinar a mocidade,
colaborando na civilização do Brasil, tem sido ela louvada e atacada. Para julgá-la é preciso determinar a época em que é analisada.
Nestes primeiros capítulos deste trabalho, de contribuição para o estudo da
formação e civilização de nossa terra, limitados ao século XVI e aos princípios do século XVII, e de acordo com os documentos locais, é de
rigorosa e imparcial justiça reconhecer que a ação coletiva da Companhia de Jesus foi elevada e que individualmente cada um de seus padres e
irmãos cumpriu, com rigidez inquebrantável, com dedicada fé, os seus votos para realização de seus fins.
A missão, a que os jesuítas se impuseram nas terras do Brasil para catequese,
foi inçada de imensas dificuldades e bem mais difícil que em qualquer outra parte do mundo. Aqui eles não vieram mudar ou transformar uma crença
para outra melhor; vieram criar crenças no espírito bruto de selvagens e no meio de selvagens.
Renan diz (S. Paulo, pág. 55) "que não se deve supor que a missão de S.
Paulo e de Barnabé, na Ásia Menor, foi muito mais difícil que a de Livingstone, sustentada por associações ricas.
S. Paulo e Barnabé não tinham recursos materiais de espécie alguma, viviam
como podiam mas exerciam as suas profissões nos lugares a que chegavam" cujos habitantes já tinham necessidades sociais e consumiam os produtos
fabricados. S. Paulo era tapeceiro, e nos lugares em que evangelizava podia viver de sua profissão. Mais difícil foi a obra de evangelização na
América.
No Brasil os primeiros jesuítas vieram catequizar índios boçais, nômades,
antropófagos, sem cidades ou vilas, sem laços sociais ou de família, sem outras necessidades que as de seus instintos, sem nenhuma idéia de uma
divindade, vivendo em desertos, onde tudo se devia criar.
Nos sertões ninguém exercia profissões remuneradoras, porque não havia quem
delas tivesse necessidade. Nóbrega e Anchieta nada tinham, nem mesmo promessas, porque dos índios nada podiam esperar. A Companhia de Jesus nada
lhes dava, a não ser a fé e a orientação. O rei dava-lhes para sua mantença um cruzado em ferro cada mês que equivalia no tempo a dois tostões, e
5$600 para vestuário e comiam com os criados do governador. E esse subsídio mesmo era aplicado no ensino dos meninos indígenas. O Padre Manuel da
Nóbrega, em 1552, ainda usava a mesma roupa que trouxera do reino (Cartas Jesuíticas, vol. 1º, págs. 129, 138 e 140).
Atravessando rios e matas, andrajosas deviam ser as suas vestes talares. O
próprio bispo e seu cabido tinham sorte idêntica, pois que a terra estava tão pobre que não tinha rendas para os sustentar (idem, pág. 141).
Caminhavam os jesuítas com alpercatas feitas com fibras do país por eles mesmos trançadas. Nos primeiros tempos a sua pobreza foi extraordinária,
vivendo de esmolas recebidas daqueles que deviam ensinar, em dependência destes portanto.
Nas cartas, que eles escreviam aos seus superiores, se encontram sempre
referências" aos bons ares" e "às boas águas"; mas, noto que se deve dar sempre atenção às estações do ano, em que se achavam, e aos lugares donde
escreviam. Se bem, que no Brasil, então percorrido, não houvesse diferenças climáticas bem definidas para as quatro estações do ano, sempre havia
tempos de intenso frio e de grandes calores.
E, assim eram, e ainda são, muito agradáveis e frescos em certas regiões os
dias desde fins de março até princípios de julho, e suportáveis nos outros meses; mas o calor é quase intolerável durante o verão no centro do
Norte, e, no inverno, o frio é intenso no planalto, principalmente para quem vivia ao desabrigo de toda a espécie. As cartas jesuíticas em regra
não trazem datas e são os seus intérpretes que procuram fixar-lhes as épocas.
Essas cartas discorrem sobre "os bons ares e as boas águas", o que quer
significar, e assim tem sido interpretado, o bom clima da terra. Mas, essas mesmas cartas falam continuamente nos curativos que faziam aos índios,
e freqüentemente nas suas próprias enfermidades e doenças.
Assim Manuel da Nóbrega andava sempre com as pernas inflamadas e tinha
inchação de estômago, moléstia, que segundo o seu dizer, era aqui quase mortal (Cartas, vol. 1º, pág. 149 e vol. 3º, pág. 160).
O padre Luís da Grã fazia a catequese com grandes tumores nos peitos (idem,
vol. 3º, pág. 95). O padre Antônio Pires esteve fraquíssimo por causa da maleita, (idem, vol. 1º, pág. 86). O padre Vicente Rodrigues tinha
contínuas dores de cabeça, que passavam por sugestão ou obediência a Nóbrega (idem, vol. 1º, pág. 130). O padre José de Anchieta era um
valetudinário, como ninguém ignora. Encontram-se nas cartas muitas notícias a respeito das moléstias dos padres.
Assim deveria ser, porque mal abrigados, mal alimentados com comidas escassas
e exóticas, mal dormidos, vergados sob o trabalho da catequese, sem higiene, em terras brutas, em descampados ou em matas cheias de cobras
venenosas, de feras bravias e de índios canibais, matas cujos rios, nas inundações periódicas, produziam mosquitos pestíferos, esses padres não
podiam gozar saúde.
Somente a santa resignação cristã, alimentada pelo desejo ardente de salvar
almas, poderia suportar uma existência de sofrimentos e de misérias. Só cantadores, poetas ou leitores superficiais de crônicas amenas, poderão
criar um folclore bucólico, nesse tempo, esquecendo a grande e essencial obra de saneamento que S. Paulo tem feito no seu território.
É possível que entre os índios se encontrassem alguns centenários; mas poucos,
o que causava menção aos observadores, e já adaptados, desde milhares de anos e por meio de gerações, ao viver selvagem. Para os adventícios,
porém, vindos de outros climas e com outros hábitos, a vida deveria ser, nesses primeiros tempos, um tormento.
As igrejas, que fundavam, eram mesquinhas, miseráveis, e nelas faltava tudo.
Nas aldeias, onde nada se produzia, encontravam a resistência dos colonos.
Apesar do desejo intenso de reduzir toda a indiada à fé católica e de reprimir
e castigar as heresias e desmandos dos forasteiros que se asselvajavam, não obstante o fanatismo religioso estabelecido pela "Santa Inquisição",
que funcionava terrivelmente por meio de cruéis autos-de-fé, apesar de tudo isso, os reis católicos, quer os de Portugal quer os Felipes de
Espanha, ciumentos de seus senhorios, absorventes no seu poder absoluto, esses reis jamais deram, no Brasil, apoio decisivo aos jesuítas, material
ou administrativo ou pecuário, para a obra de catequese ou de doutrina.
Reis por direito divino supunham não precisar de intermediários junto a Deus
ou preferiam outros intermediários.
Queriam a catequese dos aborígines, não há dúvida, mas nestes queriam vassalos
para descobrir minas e para segurar os seus domínios na América. Faziam esses reis uma política de equilíbrio, de bascule, como dizem os
franceses, isto é, davam uma pancada no cravo e outra na ferradura, como diz o provérbio popular.
Sustentavam os jesuítas fazendo leis proibindo a cativação dos índios; mas por
muitas vezes fizeram vista grossa a essa cativação apoiando os colonos, que só se abalançavam a descobrir minas com o intuito de cativar índios.
Os governadores guiavam-se por essa política, no tempo do absolutismo em que só a vontade do rei "nosso amo e senhor" predominava.
Por essa forma, ora estimulavam as bandeiras, ora perdoavam os bandeirantes
criminosos por entradas (Reg. Geral, vol. 7º, pág. 189, e vol. 2º, pág. III), tendo mesmo permitido a exportação de escravos; ora quintavam
essas entradas, isto é, reservavam o quinto dos cativos para a coroa (Reg. Geral, vol. 7º, pág. 114) e ora mandavam abrir devassas
rigorosas sobre essas entradas. Os donatários em geral nada podiam fazer nas suas capitanias por falta de meios materiais e os seus loco-tenentes
deixavam-se guiar pelos seus interesses ou pelas suas superstições.
Os jesuítas jamais se sentiram firmemente apoiados pelas autoridades civis, na
sua obra religiosa.
A um mameluco, a quem para evitar o pecado ou o mal José de Anchieta lembrava
que se acautelasse com a Santa Inquisição, esse mameluco respondia "acabarei com as Inquisições a flechadas" (Cartas, vol. 30, pág.
47).
Aliás, as próprias autoridades civis, no tempo de d. João III, também não se
sentiam muito seguras nos seus postos.
Não há dúvida que os reis precisavam dos jesuítas e os auxiliavam, mas também
precisavam dos colonos, daí essa política de equilíbrio. O que os padres da Companhia conseguiram nas possessões americanas foi quase que
exclusivamente obra própria, pessoal ou coletiva, junto aos governadores, capitães-mores, colonos e índios.
Em certo tempo, porém, os homens bons, os oficiais da Câmara entraram
em luta aberta e violenta contra os jesuítas chegando até a expulsá-los da capitania, século e meio antes que Pombal os expulsasse do reino.
A Companhia de Jesus, por sua vez, por doações e legados pios, veio a possuir
grandes propriedades com índios administrados. Tudo isso foi mais tarde; e mais tarde serão estudados esses episódios, na segunda parte deste
ensaio, fazendo concorrência aos colonos.
Na luta em prol dos preceitos católicos e dos sentimentos cristãos,
civilizadores, a que se dedicaram nos primeiros tempos, demonstraram todos os padres e irmãos um valor que chegou à temeridade, uma abnegação
ardorosa que foi ao sacrifício. A obediência aos seus superiores foi completa, e tão completa que chegava à submissão, foi tão completa que não
tinham vontade própria, só executando a vontade de cima, na qual reconheciam o saber e a bondade, sem refletir e sem discutir, mesmo quando
aparentemente essa vontade superior fosse contrária aos princípios que já lhes tinham sido pregados.
O seu viver foi puro.
A castidade foi tão observada que jamais ficou provada a sua quebra, não
obstante as lutas sem tréguas sustentadas com os colonos e as facilidades de um meio selvagem e corrompido, em que dominavam o desconhecimento
crasso e o desprezo impune das normas da moral.
Catequizaram índios boçais, bravios e doutrinaram europeus aventureiros e
audazes, que já se haviam habituado aos costumes soltos dos sertões índios e cruéis. Esses princípios, esses deveres foram observados de tal forma
que transformaram a muitos dos primeiros jesuítas em apóstolos, fazendo de alguns verdadeiros mártires e a outros aproximando-os de santos.
Alguns dos jesuítas e irmãos, que primeiro vieram ao Brasil, foram simples de
espírito, cândidos de coração, com fé ardente e fervorosa.
No Brasil a idéia dominante era salvar almas, desprezando e arriscando a
própria vida.
Dois entre eles se destacaram altíssimos, como montanhas resplandecentes em
planícies férteis; foram Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Se bem que iguais no fervor de sua fé, no devotamento em espalhar os ensinamentos
de Cristo, foram eles bem diferentes entre si. Sem dotes físicos que impusessem, pois que Manuel da Nóbrega era gago e Anchieta era quebrado das
costas, ambos pela só presença se faziam respeitar por todos.
Manuel da Nóbrega, filho de desembargador, formado em Cânones na Universidade
de Coimbra, desiludido das coisas do século, se filiou à Companhia de Jesus, e, já sacerdote, veio para o Brasil como superior de seus
pouquíssimos companheiros.
Nos primeiros tempos após a sua chegada, ao ver as terras do Brasil, "de bons
ares e de boas águas", cuja fertilidade louvava e cujo futuro descortinava, escassamente habitadas por indígenas primários, supôs ele a
possibilidade de um povoamento português e ideou a formação na América de um prolongamento do Portugal europeu.
Em cartas ao rei e ao provincial em Lisboa pedia que fossem enviados casais
que lavrassem e povoassem a terra, suplicava que de Lisboa mandassem órfãs que, com bons dotes aqui dados, encontrariam matrimônios fecundos com
portugueses, que já aqui estavam, lembrou mesmo que da metrópole poderiam ser despachadas "mulheres erradas, se de todo não houvessem perdido a
vergonha, porque todas encontrariam casamento".
Antecipava-se a Paul de Saint Victor que, atribuindo o caso a um viajante,
narra a crença em que estavam os colonos, que se casavam com mulheres deportadas para a Luisiânia, nas partes da América do Norte, que elas se
purificavam com a travessia do Atlântico. A maceração do deserto transmudava as transviadas da moral, e o oceano tinha certa virtude lustral
(P. de Saint Victor, Hommes et Dieux, pág. 487).
Instava Nóbrega para a vinda de pessoas casadas, "porque é certo mal empregada
esta terra em degradados, que cá fazem muito mal" (Cartas, vol. 1º, pág. 85).
Fez tratado de paz com os tupinambás de Cunhãbebe, que seria empresa vã e
temerária, se tal convenção com índios volúveis e sem leis, não importasse na separação dos tamoios de Iperoig dos do Rio de Janeiro, e, portanto
no enfraquecimento dos franceses, que "iam tomando pé nas costas do Brasil", e, conseqüentemente, no fortalecimento dos portugueses na terra que
se pretendia conservar. Construiu casas, fez colégios, edificou igrejas. Pensou em catequizar os carijós, ir até Assunção. Tinha ele vistas mais
largas que as do seu rei, mas mais limitadas que as da Companhia de Jesus. Via ele as coisas portuguesmente e a Companhia as via universalmente.
Poder-se-ia talvez, e já houve quem pensasse, que a orientação do padre Manuel
da Nóbrega influiria para a sua substituição na direção dos jesuítas nas costas do Brasil e no sertão. Nenhum documento o prova, nem de nenhum
documento, de qualquer espécie que seja, quer jesuítico, quer leigo, de tal se pode inferir.
Mas essa orientação de Manuel da Nóbrega, exposta com franqueza rude e sem
refolhos, por cartas escritas a d. João III e ao padre Simão Rodrigues de Azevedo, Provincial da sua ordem religiosa em Lisboa, explicaria talvez
a diminuição de sua autoridade missionária no Brasil, pouco depois partilhada com o padre Luís da Grã, e em seguida por este substituída, não
obstante referir-se ele às suas muitas moléstias e também ao término trienal de seu provincialato, que, entretanto, poderia ser renovado.
O rei fanático queria também o Brasil para presídio penitenciário, para
colocação das crianças abandonadas na metrópole e para exploração de minas. A Companhia de Jesus, católica, queria, porventura, realizar pelo
apostolado e pela evangelização a obra que os reis empreendiam com as armas para conquista de terras e de homens. Uns queriam a riqueza e o
poderio, a outra aspirava à conquista espiritual pela mansa doutrinação cristã, e todos desejavam o domínio do mundo.
Destituído da direção da catequese, Manuel da Nóbrega, como era de direito,
submeteu-se à regra de sua Companhia, e, obediente e silencioso, subordinou-se ao novo provincial do Brasil, limitando a sua ação à catequese
religiosa, até sua morte.
Manifestou, por vezes, visão de verdadeiro estadista na colonização do Brasil,
não obstante o padre Simão de Vasconcelos nas suas crônicas atribuir-lhe atos ridículos de comédia, que não se coadunavam com o caráter do
primeiro superior dos jesuítas nas costas do Brasil e ainda menos com o princípio da liberdade pela qual os jesuítas combatiam, na catequese que
faziam. Basta ler a venda simulada do padre Manuel de Paiva, na Bahia, a ordem para que esse mesmo padre rolasse por um morro abaixo e o
fingimento de enterrar vivo, em S. Vicente, a um caluniador (Crônicas da Companhia de Jesus, Livro 1º, págs. 49, 50, 77).
Lembrou Nóbrega, entretanto, ao padre Simão Rodrigues de Azevedo que... "a
capitania de S. Vicente se vai pouco a pouco se despovoando, pela pouca conta e cuidado que el-rei e Martim Afonso de Souza têm e se vão lá
passando para o Paraguai pouco a pouco e considerar eu os muitos irmãos que há em S. Vicente e o pouco que se fez aí e parecer-me que seria bom
ter a Companhia lá um ninho onde recolhesse, quando de todo S. Vicente se despovoasse".... (Cartas, vol. 1º, pág. 174).
A sua última carta publicada do Brasil é de 1561. E a única, que escreveu o
seu substituto, Luís da Grã, conforme a publicação feita pela Academia Brasileira de Letras, é também desse ano. (Cartas, vol. 2º, pág.
291) embora, durante o provincialato deste último, fatos importantes tivessem acontecido, como o processo de heresia por ele iniciado contra Jean
de Boulés.
Essa transformação de tribos selvagens em povos civilizados, também tentada no
Guairá, foi talvez um sonho da Companhia de Jesus, naqueles tempos de aspirações desmedidas, de aventuras incríveis, que iam ver as façanhas de
Cortez no México e as de Pizarro no Peru, que iam ler Cervantes ao descrever as proezas generosas e vãs do anacrônico d. Quixote.
Ela sonhou, talvez, poder realizar em novos e bravios continentes, pela
pregação, pela palavra e pelo exemplo abnegado, o que os reis de então conseguiam pelas guerras; e, como eles pretendiam, pretendeu ela (quem
sabe?) também estender-se pelo mundo; mas, afinal, sentiu que em S. Vicente tal sonho, como todos os sonhos, era irrealizável diante da
resistência tenaz dos colonos, da displicência interesseira dos governos e dos donatários, da bruteza indomável dos indígenas. Tal sonho também se
desvaneceu no Guairá, conforme ver-se-á em outra parte deste estudo.
Os seus meios não estavam em proporção a esses fins, se é que os teve.
José de Anchieta, nascido em Tenerife, nas Canárias em 1534,
de pais navarros, foi para Coimbra ainda muito moço, pois contava uns dezessete anos, e daí passou-se para o Brasil, com 19 anos, simples irmão da
Companhia de Jesus, em 1553. Tomou ordens sacerdotais na Bahia em 1566 [1].
Foi nesse meio virgem e bronco, habitado por índios selvagens e por
aventureiros portugueses, que ele viveu. Foi nesse Brasil, desprovido de todos os recursos materiais, intelectuais e morais, que ele formou e
cultivou a sua alta e rara inteligência. Poeta, compôs em latim à Virgem Maria um poema de milhares de versos; orador sacro, os seus sermões são
elevados e ainda hoje se lêem; naturalista, foi o primeiro a descrever a flora e a fauna do Brasil, cujas observações pessoais ainda valem;
teatrólogo, arranjou burletas e autos para com representação cênica converter os pequenos indígenas; filólogo, fez a primeira gramática
tupi-portuguesa, formando, por assim dizer, a língua que antes era incapaz de ser aprendida para ser falada. Seria unicamente um intelectual, como
hoje se diz, se tivesse abandonado as práticas da catequese, e se esquivasse aos incômodos e perigos da selva.
O padre Leonardo Nunes, não obstante o seu esforço multíplice e incansável,
que o fez denominar Abarebebê, o vigor de sua fé cristã, o devotamento à causa da Companhia instituída por Inácio de Loyola, e talvez por isso
mesmo, já tinha outro feitio, via no martírio o fim invejável de sua missão religiosa, para maior glória de Deus.
Expulsando João Ramalho de uma igreja, no dizer do padre Simão de Vasconcelos,
diante das ameaças dos mamelucos, ajoelhou-se e de mãos postas, esperou a morte violenta, o martírio, não vendo que assim deixaria de cumprir a
sua missão apostólica.
Deveria, nessa ocasião, procurar catequizar o régulo, se é que o fato é
verdadeiro, como parece, e não uma das gemadas do padre Simão de Vasconcelos, como a algumas das suas informações classifica Capistrano de Abreu (Cartas
Jesuíticas, vol. 3º, pág. 15).
Logo verificaram os padres, porém, que "os índios eram indômitos, nem se
continham pela boa razão" (Anchieta, Cartas, vol. 3º, pág. 36) "o gentio era tão carniceiro que parece impossível viver sem matar" (idem,
vol. 3º, pág. 182) e matar o próximo para comê-lo, "por tal forma bárbaros que parecem aproximar-se à natureza de feras que à dos homens" (idem,
pág. 46); "os índios têm por sumo deleite comer-se uns aos outros" (idem, vol. 3º, pág. 74) "certamente muito pouco fruto se pode colher se a
força e o braço secular não acudirem para domá-los e submetê-los ao jugo da obediência" (idem, pág. 41) "para este gênero de gente não há melhor
pregação do que espada e vara de ferro" (idem, vol. 3º, pág. 186). Esse gentio "era uma espécie de gente de condição mais de feras bravias que de
gente racional, ser gente servil que se quer por medo" (Manuel da Nóbrega, Cartas, vol. 1º, pág. 174).
Sem abandonar a catequese nas selvas, os primeiros jesuítas edificaram igrejas
que, atraíam as mulheres, e passaram a criar escolas onde ensinavam os meninos, considerando que, por meio delas e com estes, chegariam a
civilização dos outros, de todos.
Mas eles, os jesuítas, nos primeiros tempos, foram em pequeno número e eram
muito pobres; as suas escolas foram estreitas e as suas igrejas mesquinhas, nas quais não poderia haver a pompa do culto católico que a todos
impressiona, principalmente aos primitivos.
Mas os padres da Companhia não se limitaram só ao ensino, à doutrina; eles
também sangravam e davam remédios aos doentes, socorriam os que morriam no sertão, que era todo o Brasil daquele tempo, porque a catequese cristã
abrangia todas as manifestações da vida humana.
Também a sua ação não se circunscreveu aos silvícolas, quis abranger, e
abrangeu, também os colonos, os imigrantes, quer fossem governantes, quer fossem governados. Sobre estes, além da doutrinação, na ausência de
vigários, nesses tempos em que todos os poderes se confundiam, dispunham também de meios religiosos sobre atos da vida civil, que só tinham
validade e vigor, quando consagrados pela Igreja. Fora da Igreja, no começo do século 16, em Portugal, não havia vida civil na terra nem salvação
no céu.
Eles batizavam, celebravam esse sacramento, que fixava para o neófito o
ingresso no cristianismo, mas que era também um registro, que provava a entrada na vida civil, o nascimento, a maioridade, e com esta a plena
posse dos direitos individuais. Nos primeiros tempos casavam, e sempre induziam severamente para o matrimônio, celebrando um sacramento, mas que
era ao mesmo tempo o registro que provava a legalidade da família, a legitimidade dos filhos, instituindo o regime dos bens, o pátrio poder;
administravam a extrema unção, outro sacramento, que, como o enterramento, era uma espécie de certidão de óbito que provava a morte, dando
origem à transmissão dos bens, das heranças, da distribuição dos legados.
Eles dispunham da confissão, com a qual dirigiam as consciências,
orientando todos os atos da vida, estabelecendo a penitência, que abria às almas boas as portas para a felicidade eterna, e às más ou culpadas
ameaçavam com a condenação a terríveis penas no inferno para todo o sempre.
Essa ação, influindo energicamente para os casamentos dos colonos, que viviam
amancebados, ou em promiscuidade com as índias, concorreu para a formação legal da sub-raça – a dos mestiços – chamados mamelucos.
Procuraram influir nas autoridades locais; e, na metrópole, conseguiram
inspirar leis que proibissem as guerras e a conseqüente escravidão do gentio pelos colonos, intentando, em suma, subtrair os índios ao domínio dos
primeiros povoadores.
Ora, esta empresa, a que se dedicaram os jesuítas, contrariava abertamente os
interesses imediatos dos colonos, e por conseqüência, enfraquecia a posse que os reis queriam manter nos descobrimentos; alienava, portanto, a
ajuda da administração – "o braço secular" – tornando difícil "por falta da espada e da vara de ferro" a obra por eles desejada.
Essa luta existiu desde os primeiros tempos coloniais e constitui uma das
páginas interessantes da sua história.
Esse gentio feroz, carniceiro, inconstante, era uma sociedade humana que
começava ou, para melhor dizer, neles se podia ver como a civilização começa.
Apesar de tudo isso os jesuítas lutaram com
tenacidade e paciência, indo às selvas catequizar o gentio e procurando dirigir as aldeias, quando era ele reunido junto às vilas.
[1]
Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil, vol.
1º, pág. 29, nota. |