Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/sv/svh069b.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/02/09 08:29:35
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE - DIÁRIO
As várias edições do documento de Pero Lopes

Leva para a página anterior

Quando Martim Afonso de Souza chegou ao Brasil com a primeira expedição colonizadora, em princípios de 1532, seu irmão Pero estava a bordo, registrando a viagem num extenso documento que ficou conhecido como Diário da Navegação de Pero Lopes de Souza, peça importante para o estudo da história do Brasil, embora bem pouco vista em razão das raras transcrições e reproduções. Sobre ele, Raul de Andrade e Silva escreveu este artigo, publicado nas páginas 41 e 42 da Poliantéia Vicentina - 450 Anos de Brasilidade 1532-1982, publicada no ano de 1982 em São Vicente/SP pela Editora Caudex Ltda.:


Imagem: reprodução parcial do original, na Poliantéia Vicentina

O Diário da Expedição Fundadora

Raul de Andrade e Silva

Ano efetivamente histórico, para São Vicente, este ano de 1982, quando se completam os quatro séculos e meio da fundação do seu núcleo inicial: a vila implantada por Martim Afonso de Sousa, marco primordial da colonização, em terras do Brasil. Antes, a presença dos súditos de Portugal, em pontos esparsos da extensa costa da sua possessão americana, se reduzira às raras e dispersas feitorias da época das primeiras expedições, de História tão nebulosa. Feitorias que não passavam de pontos de apoio ao tráfico do pau-brasil, estabelecimentos de povoamento irregular e instável. Assim, na abra de São Vicente, bem como na região de Cananéia, foi registrada a presença de povoadores pioneiros da época do Bacharel, Mestre Cosme Fernandes, e de seu genro Gonçalo da Costa.

Povoamento de caráter colonizador, só a partir da expedição de Martim Afonso. Com efeito, a expedição confiada ao mando do "...grão Martinho, que de Marte o nome tem co'as obras derivado...", na época celebração de Camões, a expedição de 1530 resume os objetivos das expedições anteriores: reconhecimento da costa, desta feita explorada em linha contínua, do Maranhão ao Rio da Prata; e defesa do litoral, com a repressão sistemática aos entrelopos franceses, que o visitaram para contrabandear o pau-brasil e assentar fortificações. Mas, a originalidade da expedição afonsina residiu na sua missão colonizadora, pois o capitão-mor devia erigir um ou mais núcleos de povoamento regular e vida administrativa organizada. Isto, sem contar o interesse português pela região platina, território até então litigioso, dada a incerteza da sua localização na esfera de domínio de uma ou outra das dinastias signatárias do Tratado de Tordesilhas.

Considerando-se todas as metas, compreende-se que a esquadra de Martim Afonso de Sousa fosse a um tempo frota de guerra e de transporte. Viajavam a bordo de seus navios os elementos essenciais às múltiplas missões e ao estabelecimento de rudimentares núcleos sociais. Colonos lavradores misturavam-se com marinheiros e soldados, arcabuzeiros e besteiros. Ao lado dos letrados, vinham os oficiais mecânicos. E com os instrumentos e apetrechos da marinharia, carregavam-se ferramentas e sementes. "Armada matriarca", chamou-a um historiador português, armada da qual desceram em São Vicente os fundadores do Brasil, os primeiros magistrados, tabeliães e munícipes, organizadores do primeiro núcleo de população regular e fixa. Ainda antes da arribada a São Vicente, denotava-se o objetivo colonizador: ao zarpar da Bahia de Todos os Santos, o capitão-mor ali deixou, sob a proteção de Diogo Álvares, o Caramuru, dois homens, providos de sementes, para que experimentassem que produções a terra podia dar. A expedição que partiu a 3 de dezembro de 1530 é, no dizer do historiador Carlos Malheiros Dias, "o primeiro comboio de emigrantes que fundeia nos portos do Brasil".

Além da nau capitânia, cujo nome se ignora, compunham a frota mais quatro navios: a nau S. Miguel, com Heitor de Souza por capitão; o galeão S. Vicente, a mando de Pero Lobo Pinheiro; as caravelas Princesa, comandada por Baltazar Gonçalves, e Rosa, por Diogo Leite.

Dessa viagem ficou um documento fundamental, descoberto por Francisco Adolfo de Varnhagen, ainda um jovem de 23 anos, em 1839. O seu título "Diário de Navegação de Pero Lopes de Sousa (1530 a 1532)", Varnhagen o tirou da cópia pertencente a frei Francisco de S. Luís. Além desta, conheceu o nosso historiador mais duas cópias: a primeira, que rejeitou por vários defeitos, a começar pela letra do manuscrito, que lhe pareceu do século XVIII; e, finalmente, a da sua preferência, a saber: códice que achou na Biblioteca Real do Paço da Ajuda e trazia o título de "Navegação que fez Pero Lopes de Sousa no descobrimento da costa do Brasil militando na capitania de Martim A. de Sousa, seu irmão, na era da encravação de 1530".

Este foi o texto impresso pela primeira vez por Varnhagen, e além desta saíram mais cinco edições: a de 1847, cuja autoridade foi contestada por Varnhagen, que por sua vez promoveu as de 1861 e 1867; e finalmente as edições críticas (5ª e 6ª) do comandante Eugênio de Castro, com prefácio de Capistrano de Abreu.

Além deste manuscrito, cujas anomalias adiante mencionaremos, há outras valiosas fontes para a história da expedição de 1530: Crônicas ou Anais de El Rei D. João III, com seus conselheiros, embaixadores e magistrados do Reino, em especial o seu amigo e conselheiro íntimo, vedor da Real Fazenda, d. Antônio de Ataíde, primeiro conde de Castanheira; e diversos documentos administrativos; alguns textos de cronistas espanhóis ou hispano-americanos, como Antônio Herrera e Ruy Diaz de Gusmão, úteis para o conhecimento da época da expedição; e os brasileiros Pedro Taques de Almeida Pais Leme (História da Capitania de S. Vicente - 1772) e Frei Gaspar da Madre de Deus (Memórias para a História da Capitania de São Vicente - 1797).

Voltando agora ao Diário, trata-se sem dúvida de um apógrafo ou cópia do original, que se perdeu. Mostrou o sábio paleógrafo português Pedro de Azevedo que a letra do manuscrito, aliás não de um único punho, é romano-restaurada (bastarda ou italiana) do 3º ou 4º quartel do século XVI, diferente portanto da gótica cursiva que usavam Martim Afonso e Pero Lopes; enquanto as linhas que encimam a folha 2 do códice estão escritas em letra já do século XVIII. Várias são as páginas em branco, as confusões de datas (dias e meses do ano), as omissões de registro dos dias decorridos.

O historiador Jordão de Freitas, diretor da Biblioteca da Ajuda, esmiuçou todas essas lacunas e imprecisões, no seu modelar estudo sobre A Expedição de Martim Afonso de Sousa (1530-1532) (na História da Colonização Portuguesa do Brasil, III, Porto, 1924).

Tanto ele como Varnhagen não oferecem explicações para essas anomalias. Mesmo assim, o historiador português rejeita expressa e categoricamente, como o fazem outros especialistas, a opinião do dr. João Mendes de Almeida, perfilhada por Francisco Martins dos Santos, segundo o qual, além de apógrafo, o manuscrito é apócrifo. Quanto à ausência de assinatura, ainda vá, mas apócrifo no sentido de desprovido de autenticidade não se pode aceitar, sem comprovação concludente e também à luz de outra documentação que ora confirme, ora corrija distorções, ora cobre omissões do Diário. E Jordão de Freitas taxativamente contesta a tese da apocrifia, nestes termos, que subscrevemos (ob. cit., p. 133):

"A autenticidade de tal narrativa, porém, em nada ficou prejudicada com as alegações ou observações feitas pelo dr. João Mendes de Almeida, as quais de forma alguma justificam ou autorizam esta sua arrojada conclusão..."

"A viagem de Martim Afonso de Sousa - ajunta o citado autor -, nos meses e anos apontados no Códice da Biblioteca da Ajuda, é um fato cuja realidade nos é imposta por vários documentos autênticos e incontestáveis, que adiante publicaremos".

O valor documental do Diário é um caso raro, na história das expedições ao Brasil, nos três primeiros decênios do século XVI. Expedições envolvidas pela atmosfera nevoenta, que obscurece o relato das viagens da primeira História do Brasil.

Em verdade, não se trata propriamente de um diário náutico, opina Jordão de Freitas. O documento é antes uma relação truncada do itinerário da frota e da viagem de Pero Lopes. Do Tejo saíra o irmão de Martim Afonso na nau capitânia. Mas, durante a expedição, assumiu o comando de uma caravela, que com outra perseguiu e tomou uma nau francesa; e depois capitaneou uma outra nau também capturada aos franceses e que ele mesmo denominou Nossa Senhora das Candeias. Relação e narrativa, provavelmente baseada num diário de bordo que se perdeu. Nem por isso se lhe pode contestar a veracidade da história.

Curioso que, no Diário, pouco e discretamente aparece o nome do capitão-mor. Ao contrário, Pero Lopes nos descreve, a par de muitas informações gerais, sua participação pessoal em numerosos lances, episódios e atos de decisão, coragem e audácia. Prefaciando as edições mais recentes do Diário, Capistrano de Abreu resume nestes termos a atuação de Pero Lopes, na expedição de 1530: "Das páginas mutiladas do Diário, ressalta a personalidade do autor, embarcando a 3 de dezembro comandando a nau em que vinha o irmão, transferido para a nau francesa, e crismada Nossa Senhora das Candeias, investido no comando geral na volta do Novo Mundo. Em todas elas, perpassa em pleno movimento, tomando a altura do sol, levando a sonda por vezes a duzentas braças, amainando velas, emendando os mastros, calafetando cascos, fazendo aústes (N.E.: substantivo masculino, derivado do castelhano ahustar. Náutica: Costura ou nó que se dá nos chicotes das amarras, para emendá-las umas às outras - Moderno Dicionário da Língua Portuguesa - Michaelis - Ed. Melhoramentos/UOL - 2009) para suprir âncoras, rebocando bergantins, trepando na gávea para descobrir o inimigo, subindo árvores alterosas par reconhecer o campo, pescando, pelejando". Tudo isto podia fazer o jovem comandante na pujança da sua idade, que andava ao redor dos vinte anos.

Por outro lado, com sua habitual sagacidade, nota aquele velho mestre cearense que o Diário fornece menos informação histórica do que seria de esperar. Observe-se, por exemplo, a brevidade da referência à instituição da Vila de S. Vicente, justamente o episódio mais capaz de motivar a comemoração que nos congrega. Eis o que a propósito apenas diz o Diário: "...A todos nos pareceu também esta terra que o capitam I. determinou de a povoar, e deu a todos los homẽs terra para fazerem fazendas; e fez hữa villa na hilha de S. Vicente e outra nove léguas dentro pelo sartam, à borda d'hum rio que se chama Piratininga; e repartiu a gente nestas duas villas e fez nellas oficiais; e poz tudo em boa obra de justiça, de que a gente toda tomou muita consolaçam, com verem povoar villas e ter leis e sacrifícios; e celebrar matrimônios e viverem em comunicaçam das artes; e ser cada hum senhor do seu; e vestir as injúrias particulares; e ter do dolos outros vens da vida sigura e conversável".

Com referência aos íncolas, entende Capistrano haver notícias apreciáveis no Diário, se bem que Pero Lopes não observasse bem os indígenas, sob o aspecto etnográfico: "A gente desta terra - escreveu o autor do Diário -, é 'toda alva', os homens muito bem dispostos, e as mulheres mui formosas, que nã hão nenhuma inveja às da rua Nova de Lisboa", e nada mais informou o documento sobre os índios da Bahia.

Na acidentada passagem pelo Rio da Prata, no mais longo trecho contínuo do texto, após o naufrágio da nau capitânia de Martim Afonso, que ficou na Ilha das Palmas, relatam essas páginas, plenas de peripécias, a expedição de Pero Lopes, num dos bergantins construídos no Rio de Janeiro, até o esteiro dos Carandins e o Cabo de Santa Maria antigo, ali plantando padrões de posse portuguesa. Posse que não vingaria, pelas razões consabidas. Diz o Diário: "o Rio de Sam Vicente hữa hora antes que o sol se pusece". No rumo do Norte, demandou o Rio de Janeiro, a Bahia, Pernambuco. Era natural que se vigiassem ainda uma vez os pontos da costa mais procurados pelos corsários franceses. Em 4 de agosto, avistou Pero Lopes uma nau, entre a Ilha de Santo Aleixo e o continente, ordenou os preparativos de ataque à nau inimiga. Neste ponto, trunca-se o relato até 4 de novembro, quando ele largou de Pernambuco, com seus dois navios (o galeão S. Vicente e a nau Nossa Senhora das Candeias), em demanda de Portugal.

Todavia, das últimas ações navais de Pero Lopes, ocorridas no período mencionado, à falta de informações do próprio Diário, sabe-se pela carta de d. João III ao conde de Castanheira, datada de Évora, em 21 de janeiro de 1533. Diz a carta: "... vyndo ele (Pero Lopes) do Rio da Prata, correndo a costa do Brasil veyo a ter a Pernambuco onde achou os franceses que tinhão feito fortaleza e l'ha tomou e os tomou a eles..." E em carta do dia anterior, 20 de janeiro, refere o soberano o fato de Pero Lopes ter trazido do Brasil "duas naus francesas, com trinta e tantos franceses", que deixou no Porto de Faro (Algarve), antes de apresentar-se ao rei em Évora, para dar-lhe conta da expedição ao Brasil.

Retornado à pátria, capitaneou ele uma das naus da armada de d. Antônio de Saldanha, que participaram com as frotas de Espanha e do almirante genovês André Doria, da vitoriosa expedição contra os muçulmanos, em 1535. Serviu ainda na armada guarda-costa do Reino, entre os Açores e as Berlengas. Não é certo que tenha voltado ao Brasil, onde a Coroa lhe concedera as capitanias de Itamaracá e Santo Amaro. Mas, em 1539, foi capitão-mor de uma esquadra com destino à Índia. De regresso, velejando nos mares orientais, esse predestinado marujo veio a encontrar a morte, em pleno oceano, em 1542.

A vila instalada por Martim Afonso, ergueu-se no sítio onde existiu o primitivo povoado, estabelecido pelos comandados do Bacharel, Mestre Cosme Fernandes, conforme opina Francisco Martins dos Santos. O Bacharel e seu genro Gonçalo da Costa tinham-se desavindo com o rei d. João III, porque Gonçalo da Costa se recusara a interferir junto ao sogro, a fim de que este abandonasse S. Vicente e voltasse a cumprir a sua pena de degredo em Cananéia.

Tais fatos são posteriores à época em que, nessas regiões, Pero Capico exerceu sua capitania sem conflitos com o Bacharel. Este, afinal, se retirou com seus parentes e apaniguados, índios e portugueses, em 1531, para Iguape, onde pouco depois encontrou Martim Afonso, com Francisco de Chaves; a este último o capitão-mor confiou, e a Pero Lopes, a entrada de 80 homens, partindo para o sertão em busca de ouro, e de lá nunca mais volvidos. Mais tarde, em 1534 e 1535, os agregados do Bacharel atacaram a Vila de S. Vicente. Tinham esses povoadores pré-afonsinos participado, com a gente de João Ramalho e Antônio Rodrigues, do tráfico de escravos, na Baixada Santista. E na expedição de 1530, vieram alguns homens que tinham já estado no litoral vicentino e no seu sertão imediato, desde os remotos tempos do Bacharel de Cananéia, como é o caso de Pero Capico e Henrique Montes.

Foi nesse cenário rude e selvático que Martim Afonso de Sousa levou a cabo a missão a nosso ver culminante da expedição, cujo comando lhe confiara o rei de Portugal. Ratificando os atos oficiais, levados a efeito por Martim Afonso em 1532, passou-lhe d. João III, em Évora, o foral de 6 de outubro de 1534, que diz: "Outrossim que o dito capitão governador e todos os seus sucessores 'possam fazer vilas todas e quaisquer povoações que se na dita terra fizerem' e lhes a ele parecer que devem ser as quais se chamarão vilas, e terão termo, jurisdição, liberdade e insígnias de vilas, segundo a forma e costumes de meus reinos, e isto porém se entenderão que poderão fazer todas as vilas que quiserem das povoações que estiverem ao longo da costa da dita terra..."

No documento que acabamos de ler, está claramente explícita a distinção entre "povoações", simples aglomerados de habitantes sem estrutura administrativa, e "vilas", núcleos demográficos que se tornavam "sede da Câmara Municipal", com todo o mais aparato legal e administrativo. E isto ocorreu na Capitania de S. Vicente, onde primeiro surgiram os povoadores pré-afonsinos, traficantes de escravos na marinha, onde se puseram às ordens do Bacharel, e serra-acima, onde se agregaram sob a chefia de João Ramalho. Depois, erigiram-se duas vilas, uma também à beira-mar, a outra no planalto, e esta é a fundação de Martim Afonso, a qual conferiu fixidez e regularidade ao povoamento, que se foi consolidando progressivamente, sob a tutela moral e religiosa da Igreja e sob a proteção do poder civil organizado. A base econômica desse processo de ocupação do solo foi a cultura da terra, com os canaviais, os engenhos de açúcar e a criação de gado. Neste capítulo, insere-se a história do venerável Engenho dos Erasmos.

Definia-se por esta forma a política de conquista da Metrópole portuguesa, com a exploração das terras ocupadas por emigrados do Reino, depois por seus descendentes, com o auxílio do braço escravo, tudo dentro do sistema monopolista do pacto colonial.

Nem por isso deixava a fundação afonsina de desvendar, às iniciativas do progresso e da cultura, um imenso e sedutor mundo virgem, prenhe de potencialidades incalculáveis. E S. Vicente cumpriu o grande destino histórico de abrir, para as conquistas da civilização, as portas do Brasil.


Brasão de Martim Afonso de Souza

Imagem publicada com o texto original, na Poliantéia Vicentina

Leva para a página seguinte da série