Igreja Matriz de São Vicente, construída em 1757, em
foto de 1935
Foto: coleção de Fernando M.Lichti in jornal A Tribuna, Suplemento de S.Vicente,
22/1/1992
"Aqui (Vila Valença - São Vicente) era só pasto, onde o pessoal trazia o gado para descansar e não
perder peso na viagem"
Em termos comparativos, é difícil dizer o que foi mais
importante para a vida de São Vicente nestes últimos 90 anos: se a inauguração do monumento comemorativo ao 4º Centenário do Descobrimento do Brasil
ou a reurbanização da Praça Barão do Rio Branco que aí está; se a Ponte Pênsil ou a nova ponte sobre o Mar Pequeno; se a Via Anchieta ou a Rodovia
dos Imigrantes; se a água que veio da Adutora de Itu ou o reservatório-túnel no Morro do Voturuá; se as linhas de bondes ou as avenidas de tráfego
expresso; se as violentas ressacas da maré ou a total desfiguração da Ilha Porchat; se a paulatina perda de áreas limítrofes para Santos ou a
emancipação de Praia Grande em um só golpe; se o Cassino Ilha Porchat ou o Jockey Club São Vicente; se o quarto centenário de 1932 ou os quatro
séculos e meio no ano passado [N.E.: 1982].
É difícil dizer, porque cada um destes acontecimentos, e tantos outros mais registrados dia
a dia por A Tribuna, desde seus primeiros números, contribuíram em sua época para afetar, de alguma forma, a evolução histórica da Cidade.
"Ali era um grande descampado onde a boiada pastava e descansava depois da viagem, antes de
ser levada para o matadouro". O ali, a que se refere o seu José Evaristo da Silva, era a área pertencente à Santa Casa da Misericórdia de
Santos, onde hoje estão os povoados bairros de Vila Valença e Jardim Independência.
Nas primeiras décadas deste século [N.E.: século XX],
São Vicente era toda verde. Afora as construções no Centro, onde remanesciam estoicamente alguns prédios da época colonial, o restante desta metade
da Ilha era formado de densa vegetação, eventualmente cortado por caminhos, picadas e linha do bonde. A abertura da avenida de acesso à Ponte
Pênsil, e a casa do João do Morro na encosta próxima à Biquinha, nem de leve afetavam a virgindade do Morro dos Barbosas, onde viviam grupos de
índios aculturados.
Praça Barão do Rio Branco em 1942
Foto: coleção de Fernando M.Lichti in jornal A Tribuna, Suplemento de S.Vicente,
22/1/1992
A Ilha Porchat, que era verdadeiramente ilha, cercada de água por todos os lados, estava
inteira; apenas no sopé, onde se chegava por uma ponte vazada de madeira, o cassino movimentava centenas de contos de réis entre um e outro show
de famosos artistas nacionais e internacionais. Os barões do café, os membros do corpo diplomático e os empresários da navegação construíam na Boa
Vista seus casarões em estilo europeu, muita grama e muita árvore, sem faltarem as cocheiras com puros-sangues para trotes e galopes nas areias
quase desertas da Praia do Itararé.
"Glória ao berço do Brasil" foi a manchete de primeira página de A Tribuna numa
sexta-feira, dia 22 de janeiro de 1932. Margeada por longa matéria alusiva ao 4º Centenário de Fundação da Cellula Mater, artístico desenho de uma
nau portuguesa saudava o fundador Martim Afonso de Souza. Seu Evaristo leu tudo aquilo e mais o noticiário nas páginas internas, com muita calma
pois era feriado nacional especialmente decretado pelo chefe do Governo Provisório, Getúlio Dornelles Vargas. Houve muita festa na Cidade, apesar da
inquietação política que pairava sobre São Paulo. Veio o 9 de Julho e São Vicente também teve seus heróis.
Entre umas e outras ressacas da maré, menos ou mais violentas, a Baía de São Vicente ia
pouco a pouco perdendo sua faixa de areia, devido, segundo alguns, à substituição do acesso de madeira à Ilha Porchat por uma compacta ponte de
concreto. Brotavam na orla do mar os "arranha-céus" Mirante, Gáudio, Icaraí e Grajahu, precursores de centenas de outros mais altos,
enquanto áreas de periferia, anteriormente destinadas à agricultura (com seus canais de irrigação) eram convertidas em loteamento.
A falta de água, que já era crítica para o morador vicentino, virava calamidade pública no
verão com a chegada dos forasteiros. Durante muitos anos foi um martírio ter-se de recorrer à Biquinha ou às fontes no Itararé ou Voturuá, em filas
intermináveis de garrafões e panelas à cata de água potável. A de torneira, quando havia, era armazenada em latões para o chamado na época "banho de
canequinha". Quem tinha recursos, mandava furar um poço artesiano no quintal ou então abastecia as caixas subterrâneas recém-construídas com água
comprada em caminhões-pipa. Apesar desta dificuldade, a Via Anchieta trazia nos fins de semana e temporadas mais e mais paulistanos para as praias
ainda limpas e de águas claras.
E aconteceu o surto imobiliário, ajudado pela parcial solução do problema do abastecimento
de água com o advento da Adutora de Itu. Aproveitando a tibieza da fiscalização e os "buracos" da legislação de obras, os edifícios de apartamentos
do tipo porta-e-janela pipocaram indiscriminadamente; as últimas casas antigas do Centro deram lugar a prédios comerciais e os bairros periféricos
já eram sólidos núcleos habitacionais, muitos deles favelas ou palafitas sobre o mangue.
Sem o "inconveniente" da Pedra dos Ladrões, que a insensibilidade do administrador
transformara em guias e sarjetas, e com os bondes fora de circulação, a Cidade recebia suas primeiras avenidas asfaltadas, na praia e na antiga
Linha 1. Era o progresso que chegava, trazendo também o telefone de disco em substituição ao de manivela da velha C.T.B.: o mesmo progresso que
trocara as flores, o gramado britânico e o coreto do Jardim da City pelo estranho, importuno e feio prédio dos Correios e Telégrafos.
Vieram os tempos bicudos. O funcionalismo municipal vivia à custa de esmolados vales nos
cofres vazios da Prefeitura ou convertendo em dinheiro as mercadorias que retirava fiado na Cooperativa. Um prefeito renunciou, um vice-prefeito
também, outro prefeito foi demitido pela Revolução e a Cidade andou aos trancos e barrancos nas mãos de interventores. O Morro dos Barbosas
vingou-se das seguidas violações que vinha sofrendo e, em memorável rasteira, derrubou o Edifício Vista Linda, felizmente sem vítimas fatais.
De abandono em abandono, o Bairro de Praia Grande não agüentava mais e acabou tornando-se Município. As pedreiras localizadas no Morro do Voturuá
começavam a aterrorizar os moradores na Vila Valença e Vila Misericórdia (hoje Jardim Independência). A cada chuva mais forte, coincidindo com maré
alta, ocorriam violentas enchentes na Vila Fátima e bairros vizinhos, destruindo habitações humildes e deixando centenas de desabrigados; era um
desespero só.
Depois vieram outros prefeitos, não tão bons quanto José Monteiro, que foi o melhor de todos
- no entender do seu Evaristo -, mas que procuraram assumir a realidade do chamado progresso e desenvolvimento; ajeitaram as finanças municipais,
iluminaram e pavimentaram avenidas e ruas de praias e bairros, reurbanizaram praças, construíram escolas e pré-escolas, brigaram com o Governo do
Estado por obras prioritárias etc. Viveram os adventos da Rodovia dos Imigrantes e da nova ponte sobre o Mar Pequeno, mas não conseguiram (e quem
conseguirá?) solucionar o problema das favelas onde hoje vivem 45 mil pessoas.
Antigo Jardim da City, atual Praça Coronel Lopes,
também conhecida como Praça do Correio
Foto: jornal A Tribuna de Santos, Caderno Especial Ano 90, 24/4/1983
E o futuro? Bem, o futuro a Deus pertence, diria talvez
seu Evaristo, com a experiência de quem viu sua cidade passar por tantas transformações ao longo das últimas décadas, onde a imprevisibilidade da
vida quase sempre desmentiu as perspectivas feitas com base no raciocínio e na lógica dos futurólogos e planejadores. Mas, seja qual for esse
futuro, São Vicente depende de decisões - principalmente ações - urgentes para solucionar os muitos e graves problemas que hoje
[N.E.: 1983...] enfrenta.
No momento, a Cidade tem nos contrastes a sua característica principal. Ao caminhar pela
chamada área turística do Município, seu Evaristo encontra hoje a orla da praia totalmente ocupada por grandes edifícios, que à primeira vista dão
idéia de um progresso discutível que São Vicente conheceu nos últimos tempos. Um pouco mais para trás, surge uma extensa área periférica que vai,
com grandes dificuldades, conhecendo os primeiros sinais da urbanização que, na orla das praias, já é coisa antiga. Mais para trás ainda na Cidade,
um enorme cinturão de favelas, abrigando 45 mil pessoas, sitia a parte insular do Município. E do outro lado do mar, após o Canal dos Barreiros,
está o Distrito de Samaritá, o território continental de São Vicente, muito maior do que a área insular e praticamente inexplorado em suas
potencialidades diversas.
Há algum tempo, os administradores vicentinos têm consciência de que as possibilidades do
Município dentro da ilha estão esgotadas e, na região insular, a atenção se volta agora para a busca de soluções que minorem alguns problemas que
ameaçam se tornar irreversíveis. Se o boom imobiliário na orla da praia incrementou o setor da construção civil e transformou São Vicente num
dos principais pólos de atração turística da Baixada, hoje é flagrante que a Cidade se ressente da falta de uma infra-estrutura para agüentar o peso
dessa posição, sob ameaça de ver comprometida uma das únicas fontes de renda municipal.
A concentração populacional nas praias provocou desequilíbrios no meio-ambiente, o mais
grave representado pela poluição do mar, resultado de um sistema de esgotos não planejado para suportar tamanha sobrecarga. Atualmente, a Cidade tem
apenas 16 por cento da área insular (centro e praias) com saneamento. A Sabesp, dentro de suas obras de expansão que já se arrastam há quase três
anos, pretende ampliar esse índice para 60 por cento, mas beneficiando apenas a zona periférica, não havendo no momento verbas para se redimensionar
o sistema na orla da praia, embora os técnicos da concessionária admitam que a situação ali é grave, com constantes extravasamentos de esgoto para o
mar, durante temporadas ou fins de semana prolongados. E seu Evaristo corre hoje o risco de nunca mais ver o mar vicentino tão belo e limpo que
atraiu para a Cidade tanta gente de fora. De que adianta um mar onde a gente já tem que pensar duas vezes antes de mergulhar, não é mesmo, seu
Evaristo? Por isso, a luta pelo saneamento básico continuará sendo um dos itens mais importantes do futuro de São Vicente.
Urbanizar a periferia representa uma outra tarefa árdua, especialmente em função dos altos
custos que o calçamento de ruas envolve hoje em dia, inviabilizando o outrora eficiente plano comunitário de urbanização, sem que até agora tivessem
surgido alternativas para substituí-lo. Nada, porém, se compara, em termos de gravidade para os problemas da região insular do Município, como as
favelas. De tempos em tempos, seu Evaristo abria as páginas de A Tribuna e constatava que mais uma invasão das chamadas áreas de marinha
ocorrera, com o rápido surgimento de mais um núcleo de sub-habitações. Hoje, os favelados, de acordo com as últimas estimativas (que já podem estar
defasadas com a realidade), somam 45 mil, o maior índice da Baixada.
O que fazer com toda essa gente, seu Evaristo? Essa questão vem sendo feita por todos os
últimos prefeitos de São Vicente e, sem dúvida, ainda continuará ocupando lugar de destaque nas administrações futuras, embora, a nível municipal,
pouco possa ser feito para resolver o problema, que exige condições financeiras que a Prefeitura vicentina dificilmente terá, mesmo num futuro mais
distante. Alguns defendem a urbanização desses núcleos, que hoje já contam, em grande parte, com água encanada e luz. Tal proposta representaria uma
ampliação dos esforços para urbanizar a zona periférica, logicamente com obstáculos ainda maiores aos atuais. Outros, contudo, entendem que a
transferência das favelas seria a melhor opção, como meio de se ordenar o traçado urbano da cidade. Mas, transferir para onde?
Construção do Jardim da City (na Praça Coronel Lopes),
com as obras do novo coreto ampliado
e à esquerda a sede do Santos Atlético Clube, depois sede do E.C. Beira Mar, cerca de 1950
Bem em frente às duas maiores favelas do Município, Saquaré e México-70, do outro lado do
Canal dos Barreiros, fica o Distrito de Samaritá, abrigando hoje uma população em torno de 15 mil habitantes, divididos em três núcleos maiores -
Vila Ferroviária, Parque das Bandeiras e Jardim Rio Branco - e outros agrupamentos menores.
Os defensores da tese da transferência as favelas vêem em Samaritá a alternativa ideal para
abrigar conjuntos habitacionais que seriam ocupados pelos favelados da região insular. Área é que não falta, já que a maior parte do distrito é
deserta. Os que defendem a não transferência e a urbanização das favelas colocam como empecilho a resistência natural à mudança desses milhares de
pessoas, em especial devido às dificuldades de acesso entre São Vicente e Samaritá. Ambos, no entanto, concordam que o distrito representa uma das
únicas saídas para resolver o déficit habitacional, não só do Município como da Baixada.
A nível econômico, o Distrito de Samaritá é também considerado a única opção para São
Vicente, que hoje tem nos impostos predial e territorial a sua maior fonte de receita na área insular. Samaritá, na opinião dos últimos
administradores vicentinos, também representaria a única saída para a geração de empregos no Município, no momento restrita ao setor da construção
civil e ao comércio. Simultânea à ocupação habitacional do distrito, prevê-se também sua ocupação industrial.
Mas, nos dois casos, as dificuldades de acesso à região continental continuam sendo os
maiores obstáculos. É por isso que, volta e meia, seu Evaristo abre o jornal e vê alguém defendendo, de maneira contundente, a construção de uma
ponte sobre o Canal dos Barreiros que permita a integração rodoviária entre a parte continental e a sede do Município. Se esse objetivo será
alcançado num futuro próximo ou mais distante, é uma questão que só o tempo vai responder, embora a posse do novo Governo Estadual tenha trazido à
Cidade grandes esperanças de que a construção dessa ponte considerada tão vital poderá ocorrer pelo menos a médio prazo.
Mas, através do jornal, seu Evaristo tem lido também que algumas pessoas, que são chamadas
de ecologistas, já apontam os riscos que uma ocupação industrial desordenada de Samaritá pode provocar. Se o distrito se transformar, por exemplo,
numa nova Cubatão, São Vicente poderá angariar altos recursos com os tributos arrecadados das indústrias, abrindo ao mesmo tempo um amplo mercado de
trabalho no Município. Mas a opção habitacional ficará comprometida. Quem quererá viver numa nova Cubatão, seu Evaristo? Na verdade, há um novo
código de obras e de uso do solo que traz, como um dos seus principais itens, medidas de preservação para Samaritá, limitando a ocupação industrial
apenas por indústrias não poluentes. Tal código, entretanto, não foi até agora votado pela Câmara, embora já tenha sido elaborado há quase três
anos.
É isso aí, seu Evaristo. Como se vê, a situação da Cidade que o senhor vem vendo
transformar-se ao longo desses últimos 90 anos é bastante complicada. E as perspectivas para o futuro também são muito complexas. Mas, como diz o
velho ditado, a esperança é sempre a última que morre. Por isso, vamos torcer que, ao abrir as páginas dos futuros números de A Tribuna, seu
Evaristo possa ler notícias que digam que os responsáveis pelos destinos da sua Cidade estão agindo no sentido de dar aos vicentinos uma melhoria
sempre crescente no seu nível de qualidade de vida.
José Evaristo da Silva, em foto no suplemento especial de A Tribuna de 24/4/1983 |