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TRILHOS (87)
Bonde influenciou a fala dos santistas
A forma como o uso dos bondes em Santos se refletiu na fala da população santista foi analisada pelo professor Sérgio Guidi em sua coluna semanal Nossa Língua, publicada pelo jornal santista A Tribuna, na edição de 25 de junho de 1984, página 16 (ortografia atualizada nesta transcrição):

NOSSA LÍNGUA

Professor Sérgio Guidi

O bonde

O bonde é um mundo diferente. Dentro dele misturam-se etnias, religiões, idades, ideologias, condições econômicas, todos. E por um curto espaço de tempo - o que dura uma viagem - esquecem-se os momentos tristes da vida. Ninguém é triste dentro do bonde. Não há tempo para entristecer.

As gerações que ora adolescem não conheceram o mundo do bonde, mundo onde, de ponto a ponto, as pessoas entarm e saem, revezando-se continuamente. Apenas dois seres, nessse mundo particular, são eternos: o condutor e o motorneiro. Em suas homenagens, sintetizando a população do bonde, filósofos folclóricos, anônimos intelectuais da sabedoria popular, ditaram a máxima:

"Neste mundo, tudo é passageiro. Menos o condutor e o motorneiro".

Com a volta do bonde, reaviva-se uma série de expressões que, há anos, desapareceram do dia-a-dia dos santistas. São frases feitas, palavras técnicas, analogismos que nasceram com a chegada dos primeiros veículos e começaram a morrer, com a última viagem, há treze anos aproximadamente.

A começar, o próprio vocábulo bonde é de interessante origem.

Quando se formou a companhia de carros elétricos no Rio de Janeiro, lançaram-se à venda "bonds". "Bond", palavra da língua inglesa, corresponde ao português "bônus", uma espécie de título de dívida pública. A população, como achasse difícil dizer "tramway", cognominou o veículo "bonde".

Os primeiros eram abertos, não possuíam portas e assim, se preferisse, o usuário poderia permanecer em pé, do lado de fora, sobre o estribo, segurando com uma das mãos o balaústre. Se fosse do tipo mais arriscado, poderia se postar na entrevia - lado do bonde que se aproximava de outro quando dois se cruzavam durante as viagens. Já os mais cautelosos sentavam nos bancos de madeira ou viajavam nas plataformas, local destinado ao condutor.

Condutor daquele tempo era o cobrador de hoje. Condutor na época das carruagens, era o responsável pela regularidade dos serviços. No bonde aberto sua participação era fundamental, pois o motorneiro só acionava a partida depois de alertado pelo condutor de que não havia ninguém subindo ou descendo. O motorneiro não possuía visão panorâmica, apenas fazia funcionar o motor; daí, motorneiro.

Às vezes, os carros passavam lotados, mesmo quando puxavam um bonde auxiliar: o reboque. Então, muitos passageiros, pendurados sobre o estribo, arriscavam a vida, pois poderia, o bonde, passar tão rente a outro veículo, provocando um acidente. Os jornais da época noticiavam: "Um caminhão varreu o estribo do bonde". Muitos desses acidentes foram evitados pela providência do condutor, que ao perceber o perigo, gritava a toda voz: "Olha a direitaaa..." Dizem as más línguas que um cidadão olhou e quase foi decapitado.

Outro desastre, não menos frequente, era o atropelamento: uma pessoa caía sob as rodas do bonde. Muitas foram salvas por experientes motorneiros que, em ato reflexo perfeito, acionavam um pedal, fazendo baixar o salva-vidas, esteira que impedia o atropelamento, mantendo a vítima longe do alcance das rodas, empurrando-a até que o bonde parasse.

Já, com pressa de recolher, levando o bonde para a estação, o motorneiro imprimia velocidade máxima: ia a 8, isto é, oito pontos, máximo indicado no velocímetro.

E não raro o bonde saía dos trilhos, provocando um descarrilamento, embora popularmente se dissesse descarrilhamento.

O bonde foi evoluindo. Conta-se que no Recife apareceu o primeiro bonde fechado. Colocaram uma casca nas laterais, deixando apenas duas entradas (ou saídas). Pela semelhança, os pernambucanos apelidaram o novo modelo de camarão.

O bonde fazia parte da sociedade antiga. Sua imagem, sua presença se faz sentir na literatura popular.

Se alguém demorasse muito para tomar uma resolução, era alertado: "Você vai acabar perdendo o último bonde", queria dizer, "a última oportunidade". E o rapaz que namorasse uma moça muito gorda e feia ouviria dos amigos mais irreverentes: "Onde você foi encontrar aquele bonde?" Mas não menos verdade que muitos eram capazes de puxar um bonde por causa de uma mulher.

Outros, ao realizarem algum negócio, poderiam comprar um bonde, ou seja, fazer um mau negócio, ficando logrados. Amargurados, comentavam com os amigos: "Tomei um bonde errado", agora paciência, só me resta tocar o bonde, isto é, continuar a vida.

Quando duas pessoas conversavam e uma terceira se aproximava, não conseguiria entender nada, pois tomava o bonde andando, pois é, tomava a informação já em andamento. No entanto, se quisesse saber das últimas, poderia comprar o jornal no próprio bonde: bastava esperar pelos tribuneiros, garotos que andavam de bonde em bonde, oferecendo A Tribuna.

E assim, com a última viagem há 13 anos, frases e palavras foram desaparecendo das conversas dos santistas. Os mais jovens já não entendem muitas dessas expressões. Quem sabe, agora, com a volta do bonde, venham elas a retomar seu lugar em nossa língua.

Perguntas - Perguntas para esta seção poderão ser feitas por carta aos cuidados deste jornal.


Imagem: reprodução da coluna de Sérgio Guidi


Estes trilhos vão continuar. Ninguém sabe até onde chegarão...

Carlos Pimentel Mendes