Dois
jornalistas de Santos, na década de 1980, promoveram o retorno do bonde, que se efetivaria com uma linha turística na
Praia do Embaré em 1984/5. Eles assinaram uma série de matérias de página inteira sobre os bondes santistas. Como esta, publicada no jornal A
Tribuna em 11 de março de 1984:
.
Bonde da linha 19 defronte ao prédio da
Prefeitura, no Centro
Os bondes.
Ou a história da cidade sobre trilhos
Texto de Áureo de Carvalho e Antônio Alberto de Aguiar
Fotos de Francisco Herrera e Arquivo
Há 13 anos, circularam em Santos, pela última vez, os bondes
do extinto Serviço Municipal de Transportes Coletivos, autarquia municipal substituída pela Companhia Santista de Transportes Coletivos, uma
sociedade de economia mista criada em 15 de março de 1975.
A extinção do serviço de bondes, em 1971, em nome do progresso e da indústria automobilística,
significou uma opção de transporte. Ou uma troca da eletricidade produzida no Brasil pelo petróleo importado.
Lembrando os bondes, talvez com saudosismo, os santista não pode esquecer que a sua cidade cresceu
e se expandiu ao lado dos trilhos implantados pela Cia. City, levando o transporte coletivo onde nem ruas existiam. Cobrando tarifas de acordo com
os recursos da população e chegando ao recorde e conservar, por 12 anos consecutivos, o mesmo preço da passagem, reduzida em 50% em determinados
horários, para favorecer os operários.
A história dos bondes de Santos é a mesma da Cidade, ligada ao desenvolvimento do transporte
coletivo no Brasil, onde os fracassos dos empreendimentos se entremeiam aos sucessos.
Os primeiros bondes circularam em Santos no dia 8 de setembro de 1873, com a inauguração da Linha
da Barra, na Ponta da Praia. Naturalmente, bondes de tração animal, puxados a burro.
Na madrugada de 28 de fevereiro de 1971, o bonde prefixo 258 chegou à garagem da Vila Matias,
depois de cumprir a última viagem no itinerário da Linha 42 (Praça Mauá-Ponta da Praia, via Ana Costa). Entre os dois fatos - a inauguração da Linha
da Barra e a última viagem do bonde 258 - transcorreram exatamente 97 anos, três meses e 20 dias, que fizeram a história do transporte coletivo da
Cidade. Ou fizeram a própria história de Santos, que não seria o que hoje é e representa, se não fossem os bondes.
A cronologia registra que no dia 10 de abril de 1870 foi assinada a Lei Provincial nº 67, que
concedia, por 50 anos, o privilégio do transporte de mercadorias e gêneros alimentícios a Domingos Moutinho, um cidadão muito rico na época. Tão
rico que, menos de um ano depois de receber o monopólio do transporte, começou a construir uma linha de bondes na Ponta da Praia. Em 9 de outubro de
1871 foram assentados os primeiros dormentes e trilhos, na área em frente da Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, que ficava (e fica) do outro
lado do Canal da Barra do Porto de Santos. A Ponta da Praia atualmente é aquela beleza que todos conhecem, e a Fortaleza hoje está em Guarujá, na
Ilha de Santo Amaro.
A Cia. City - No mesmo ano do início da construção da linha de bondes na Ponta da Praia
(1871), era constituída na Cidade a The City of Santos Improvements Company Ltda., ou Companhia de Melhoramentos da Cidade de Santos. Segundo
antigos santistas, nunca um título de empresa fez tanta justiça.
Em 1º de julho de 1887 foi inaugurada nova linha de bondes a burro, que ligava a Vila Matias ao
Centro da Cidade. Pertencia a Mathias Casemiro Alberto da Costa, figura importante da época, proprietário de grandes glebas, inclusive as do bairro
que hoje conserva o seu nome. O Centro da Cidade era limitado a umas poucas edificações de alvenaria (rochas tiradas dos morros), entre os conventos
do Carmo e Valongo de um lado, e o Mosteiro de São Bento, do outro.
Começa a tomar vulto, a partir daí, a Cia. City, que absorveu aos poucos todas as demais
companhias de transporte existentes, inclusive a de Domingos Moutinho, e a de Mathias Casemiro Alberto da Costa, em 1906.
De início, em 1907, a Cia. City foi contratada pela Prefeitura para instalar bondes elétricos em
Santos, substituindo todos os serviços existentes de tração animal. Um contrato, no mínimo curioso, tendo por parâmetro o serviço de bondes que
funcionava em São Paulo, prevendo: "Os carros serão do tipo aperfeiçoado, nunca inferiores aos que já são vistos na Capital da Província. Deverão
portar nove bancos de cinco passageiros cada um, e serão dotados de sistema de parada mais perfeito, sem solavancos e partidas inesperadas".
Pela Ana Costa - Os primeiros bondes elétricos chegaram a Santos em 11 de dezembro de 1908,
importados da Inglaterra. Vieram parcialmente montados e no desembarque marítimo, no cais do Valongo (o único aparelhado para grandes volumes,
na época), devem ter dado muito trabalho, bem como o seu transporte, do Valongo à Vila Matias, local em que a City se havia instalado e onde estão
as instalações da CSTC e da Eletropaulo, com frente para a Avenida Rangel Pestana.
A inauguração da primeira linha de elétricos deu-se em 28 de abril de 1909, festivamente, quando
os bondes circularam ao longo da Avenida Ana Costa, até a Praia do Gonzaga.
Seis anos depois, em 1915, quando o bonde elétrico já não era novidade, a Cia. City introduziu uma
série de inovações e melhoramentos nos seus serviços de transporte, inaugurando estações para embarque e desembarque de passageiros. Foram criados,
também, serviços especiais de entrega de materiais de construção, com gôndolas, gratuitamente. Aos estudantes, a Cia. City fornecia passes de bonde
com 75% de desconto, sem burocracia e papelório, e alugava bondes especiais para casamentos, batizados, convescotes e enterros. E como importava
piche em grande quantidade, para conservação dos trilhos, vendia o excedente, sem o estorvo da Cacex e do Banco do Brasil. Até hoje, o piche é
empregado em grande escala na construção civil, principalmente como impermeabilizante.
Com esses serviços, a Cia. City ganhou a simpatia da população e o conceito governamental,
assumindo paralelamente a concessão dos fornecimentos de água, luz e gás em Santos e nos municípios vizinhos. Mas, só conseguiu levar os trilhos dos
bondes até São Vicente, promovendo duas ligações com Santos: via Matadouro (Avenida Nossa Senhora de Fátima) e pela praia.
A linha 37 interligava o Marapé à Av. Ana Costa
No tempo da City e da honestidade
O abastecimento de água feito pela City foi encampado pelo Estado, juntamente com a coleta e
tratamento de esgotos; o de gás explodiu na madrugada de um janeiro, juntamente com o grande reservatório da Rua Marechal Pego Júnior; e o de
energia elétrica passou à São Paulo Light S/A, hoje Eletropaulo.
Mas os bondes, justo orgulho de todos os santistas, foram encampados em 19 de dezembro de 1951
pela Prefeitura, que criou uma autarquia, o Serviço Municipal de Transporte Coletivo. Coisa que muita gente lamenta até hoje.
Nos quase oitenta anos de operação com transporte em Santos, a The City of Santos Improvements
Company Limited respeitou e se fez respeitar, e desse binômio recíproco nasceu a Assinatura de Bonde, um cheque ao portador, em branco, que a
empresa entregava diariamente aos condutores (hoje cobradores) e passageiros. A assinatura era anual e seu portador ganhava o direito de viajar nos
bondes, em determinadas linhas ou em todas existentes, em quaisquer dias e horários, tantas vezes quantas fossem necessárias, sem pagar a passagem.
Os condutores/cobradores já conheciam de vista os assinantes, "cidadãos probos, de moral ilibada".
E porque eram conhecidos, os assinantes nem precisavam exibir o cartão de assinatura, com a respectiva fotografia de identificação: em cada viagem,
declinavam apenas um número, que o condutor/cobrador anotava na tira de controle de passageiros.
Nunca se soube, no tempo da City, de qualquer tipo de falcatrua do condutor/cobrador na anotação
das viagens dos assinantes. Estes, por outro lado, nunca abusaram da prerrogativa de viajar o ano inteiro sem o incômodo manuseio de tostões, dez
reis e patacas.
A confiança da Cia. City era de tal vulto que as assinaturas - que venciam sempre em 31 de
dezembro - eram prorrogadas automaticamente até 31 de março do ano seguinte. A empresa esperava 90 dias pela renovação do interessado, que recebia
em sua casa ou escritório uma cartinha amistosa, convidando-o a comparecer aos escritórios da Vila Matias.
Achados - Durante muitos anos, funcionou na Rua D. Pedro II, entre João Pessoa e Praça
Mauá, uma subagência da Cia. City para venda de passes de bonde e onde havia um balcão, que ficou bastante conhecido, de objetos perdidos.
Tudo o que os passageiros encontravam ou esqueciam nos bondes era entregue aos condutores, desde
guarda-chuvas até embrulhos (pacotes), solidamente amarrados com barbante. Porque na época não existia, ainda, a fita adesiva. Os condutores
entregavam os achados no balcão da Rua D. Pedro II, que num só dia de março de 1940 chegou ao recorde de receber 15 guarda-chuvas esquecidos. Todos
foram entregues aos respectivos donos.
Muitas histórias circulam sobre o balcão da City, que manuseou, talvez sem saber, objetos de muito
valor material. Um joalheiro de família tradicional, em 1939, veio de São Paulo com um volumoso carregamento de jóias e relógios de bolso,
adquiridos para revenda em Santos. Desceu do trem da SPR no Largo Marquês de Monte Alegre (Valongo) e embarcou no bonde "14", que fazia a linha do
José Menino. O pacote das compras foi colocado sob o banco do elétrico, o terceiro a partir da plataforma dianteira do motorneiro, porque o
joalheiro não tinha o hábito do fumo, e "os três primeiros bancos do bonde eram reservados, de preferência, àqueles que não fumavam". Uma
reserva sempre respeitada.
Ao descer do "14" no Gonzaga, o joalheiro esqueceu o pacote e não ficou surpreso quando recebeu o
volume de volta no balcão de achados da City, três horas depois, intacto, sem nenhum sinal de violação do barbante. Deu 1$000 de
gratificação, para ser entregue ao condutor do "14" que não ganhava isso de salário por dia, mas não contou a ninguém que as mercadorias que
comprara em São Paulo valiam um conto de réis, algo parecido hoje com Cr$ 1 milhão.
Mas, a honestidade não era privilégio de condutores da City e dos passageiros dos bondes. Em 1941,
o condutor de um bonde da Linha 1 (Santos-São Vicente, via Matadouro) sofreu acidente quando o elétrico cruzava um pequeno córrego da Avenida Nossa
Senhora de Fátima, onde hoje existe o canal da Avenida Jovino de Melo. Com os bolsos recheados de moedas da cobrança, o condutor caiu no lamaçal e,
por sorte, escapou com vida, perdendo porém praticamente a féria. No dia seguinte, a Cia. City recebeu um pacote de moedas, recolhidas e guardadas
anonimamente, para ser entregue ao condutor vitimado.
Testemunha de honestidade
Fazendo turismo, antes da Sectur
Entre as muitas linhas de bonde que cortavam a Cidade em todas as direções, a "19" cobria a área
do porto, acompanhando o traçado do cais, desde o Valongo (estação da SPR, hoje Rede Ferroviária Federal) até proximidades do Jóquei Clube. Porque
Santos já teve uma pista de corridas de cavalos na Rua Alexandre Martins, depois transformada em campos de futebol, antes da construção do Conjunto
Residencial Humberto de Alencar Castelo Branco, pelo BNH.
O "19" fazia ponto final na Rua Comendador Alfaia Rodrigues, junto da Rua Maria da Conceição, de
segunda-feira até sábado. Nos domingos e feriados, o bonde mudava de itinerário, ingressando numa linha auxiliar da Alexandre Martins, chegando à
praia. Para levar os mesmos operários do dia-a-dia ao lazer do banho de mar e aos passeios à beira-mar com a família. E bem antes da Sectur.
Na segunda-feira ou no dia posterior ao feriado, o "19" retornava ao percurso normal, pela Pedro
Lessa e Senador Dantas, até o cais, como se nada houvesse mudado na véspera. Isso entre os anos 30 e 40. Depois, o "19" avançou mais pela Pedro
Lessa, em direção da Ponta da Praia, fazendo terminal na Praça Senador Correa, posteriormente transferido para a Rua Cipriano Barata. No meio dessas
mudanças foi criada a linha 29, que fazia basicamente o mesmo trajeto do "19", mas ingressava na Alexandre Martins, em todas as viagens, chegando à
praia.
Mas, além de fazer turismo pioneiro em Santos, a Linha 19 tinha outras peculiaridades. Nos
horários de rush, o excesso de lotação nos bondes obrigou a Cia. City a criar viagens extras com elétricos sem numeração da linha, que
circulavam junto dos carros de horário normal, em comboios de três, cinco e até dez bondes, todos puxando gôndolas (reboques).
As gôndolas permaneciam estacionadas na linha auxiliar da Rua Alexandre Martins e só eram
engatadas nos bondes em determinados horários de grande movimento, numa operação simples executada pelos próprios condutores. Viajar de gôndola,
uma espécie de segunda classe, tinha o desconto de 50% na tarifa, das 6 às 8 e das 16 às 18 horas. Fora dessa faixa horária, os condutores cobravam
a tarifa normal e nunca se queixaram à Cia. City das eventuais confusões nas passagens de preços diferenciados. E ainda tinham obrigação funcional
de registrar, num marcador mecânico interno do veículo, o total de passagens cobradas, para facilitar a contagem dos fiscais volantes.
Bonde sem número e itinerário apagado
Não foi suficientemente explicada, até agora, a extinção do serviço de bondes em Santos. À
população foi dito, no início de 1971, que o sistema era obsoleto, um estorvo que bloqueava as vias públicas da época, impedindo a passagem dos
carros.
Mas, só os proprietários dos carros reclamavam. Os bondes, com todas as deficiências de
conservação - e principalmente de renovação -, faziam um transporte útil e barato, além de rentável. Antigos empregados do SMTC, hoje na CSTC, dizem
abertamente que foram manipulados dados para se provar que o bonde era deficitário. O que não surpreende, porque Santos estava sob intervenção
federal e tinha na Prefeitura um militar que, apesar de íntegro, era bastante chegado ao monólogo.
Para substituir os bondes, o SMTC prometeu ao santista um serviço de ônibus à altura, que a Cidade
aguarda até hoje. Como espera uma justificativa à criminosa destruição dos bondes a machadadas, para que jamais fossem reaproveitados no transporte,
em qualquer lugar. Essa preocupação ficou evidenciada numa série de concorrências dúbias que o SMTC promoveu, anulando-as na opção da venda por
peso. Teve gente que chorou com as machadadas desferidas contra os bondes, enquanto outros esfregavam as mãos de contentamento: haviam cumprido a
usa parte em um acordo feito com terceiros incertos e não sabidos Provavelmente, os mesmos que conseguiram proibir o acesso dos bondes a São
Vicente.
A troca do bonde por ônibus, ou da eletricidade por petróleo importado, deu no que deu, com os
preços do combustível disparando para o alto e a tarifa de Cr$ 165,00, deixando de contrapeso a fumaça da poluição nas ruas, além do barulho.
Ninguém é adivinho. Ninguém podia supor que, depois da conquista do tricampeonato mundial de
futebol no México, árabes e judeus reiniciassem uma guerra a prestação, que não termina nunca. Mas, enquanto a briga prossegue, cada vez com mais
voluntários, os dependentes do petróleo precisam pensar um pouco, e talvez pensar numa reversão, revendo posições e filosofias.
O bonde elétrico pode ser uma reversão, uma volta ao passado e às origens. Talvez até com uma
confissão do erro e pedido de desculpas pelo equívoco.
Ainda restam cerca de 50 quilômetros de trilhos nas
ruas
Veja agora onde foram fabricados alguns dos bondes de Santos. Em
Santos mesmo...
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