Com as chuvas ou a elevação da maré, no final do século XIX
e anos iniciais do século XX, eram comuns as inundações nas áreas entre o antigo centro e a orla da praia, por se situarem um pouco abaixo do nível
do mar. Em conseqüência, eram também comuns as epidemias de
febre amarela e outras doenças, que representavam ameaça à saúde pública e ao próprio turismo. Essa extensa área de brejos inundáveis chegava a
separar o núcleo central da cidade e as praias:
Foto reproduzida do livro São Paulo e Outras Cidades - Produção Social e
Degredação dos Espaços Urbanos, de Nestor Goulart Reis Filho, São Paulo/SP, 1995
A identificação do local da foto acima - Rua Lucas
Fortunato, cerca de 1905 - é dada em artigo do memorialista Francisco de Marchi, publicada no jornal santista A Tribuna em 29 de maio de
1955, página 20 (ortografia atualizada nesta transcrição:
Imagem: reprodução parcial da página 20 de A Tribuna de 29/5/1955
Drenaram charcos, consolidaram o solo e salvaram a cidade
Rasgados pela engenharia sanitária, os canais interiores evitaram que Santos continuasse a
ser um grande cemitério - No último decênio do século passado (N.E.: 1890-1900),
as epidemias vitimaram o equivalente à metade da população da cidade recenseada em 1901 - Perfaz mais de 21 quilômetros a extensão total dos canais
hoje existentes
Francisco de Marchi
Em trabalho elaborado pelo eng.
Antônio José Guimarães Freitas, diretor da Repartição do Saneamento, e apresentado no IV Congresso Inter-Americano de Engenharia Sanitária (Histórico
do Saneamento da cidade de Santos), foi referido, entre muitas outras coisas, que entre 1890 e 1900 morreram neste município, vitimados por
doenças epidêmicas, 22.588 pessoas. Sabendo-se que no começo do século a cidade contava com apenas 45.000 habitantes, vê-se que o total de óbitos
registrado naquele fatídico decênio equivaleu a 50% da população de Santos, estimada em 1901.
Os algarismos impressionam: morria-se por estes lados com incrível facilidade, eis que não era
fácil escapar ao cerco coletivo imposto aos santistas pela febre amarela, impaludismo, disenteria, febre tifóide, peste bubônica, varíola e outras
doenças insidiosas; faltava apenas, no quadro geral, onde também se projetava a tuberculose com boa percentagem de óbitos, a "barriga d'água", de
registro bem moderno.
No decênio citado, somente a febre amarela causou 6.683 mortes nestas paragens mal afamadas; não
admira, pois, que muita gente ao aqui aportar, à luz das lúgubres estatísticas locais, já se considerasse, para todos os efeitos, semi-cadáver...
Respondiam pelas más condições sanitárias da cidade, além de um abastecimento de água imperfeito,
a ausência de boa rede de esgotos e, sobretudo, a planície abafada pela vegetação e permanentemente alagada, quase rasando as marés altas. Sem
declive, o terreno retinha as águas das chuvas e as das nascentes dos morros e, por essa razão, antigas áreas da cidade, mesmo junto à zona
comercial, mostravam-se retalhadas por pequenos cursos de água e mordidas por panelões ou respeitáveis lagoas. Os rios, pejados de matéria
putrescível - serviam para o despejo de lixo - não tinham vazão fácil para o mar; as marés, pela constituição de bancos de areia e lodo,
bloqueavam-lhes as saídas.
A cidade - conta o eng. Antônio José Guimarães Freitas - começou a sanear-se, de fato, com a
construção de esgotos, iniciada em 1889. Contudo, tão mal feito se revelou o serviço que teve este de ser encampado pelo governo do Estado, três
anos mais tarde.
Somente depois que à cidade foram oferecidos um excelente abastecimento de água potável e uma boa
rede de esgotos, construída a faixa do cais e rasgados seus famosos canais interiores, é que as epidemias deixaram de massacrar os habitantes desta
ilha.
As obras de engenharia sanitária, que concorreram para aureolar, entre outros, os nomes de
Francisco Saturnino de Brito e José Ferreira Rebouças, permitiram então que este centro deixasse de alimentar a prosperidade das casas de funerais,
facilitando o surgimento de um comércio bem mais ativo e próspero, liberto da ameaça das epidemias.
A construção da bacia do Macuco constituiu empresa de vulto. Foi necessário utilizar enorme
material ferroviário para levar até este ponto através de matagais cerrados, homens, pedras, máquinas e cimento. A escavação da enorme fossa, como
se vê na fotografia, foi feita à custa do serviço braçal; o guindaste, instalado na parte alta, limitava-se, apenas, a suspender as caçambas já
cheias de areia e lodo. Note-se, ao fundo, o panorama desolado, totalmente despido de casario. Junto ao mar, uma grande barragem impedia a
infiltração das águas, nas marés altas
Foto: arquivo da Repartição de Saneamento
de Santos (RSS), publicada com a matéria
Domadas as marés, para a auto-limpeza dos canais - Das obras sanitárias aqui realizadas,
excluídas as que beneficiaram a zona do porto (construção do cais), serão por nós postas em relevo, hoje, as que dotaram a cidade de canais
interiores. Fazendo o realce, não estamos atribuindo importância menor à rede de esgotos domiciliares; trata-se, simplesmente, de considerar o vulto
das obras a céu aberto e que constituíram, no traçado geral da cidade, demarcações históricas, junto ás quais surgiram e multiplicaram-se as ruas de
bairros distantes.
Na verdade, as pessoas que hoje cruzam a cidade em várias direções, pisando solo de razoável
consistência, não podem imaginar os alagadiços que em outros tempos tomavam conta da cidade e chegavam a isolar bairros inteiros; o mangue não
circundava apenas a margem do estuário; cobria os rios de águas-mortas e, por estes, quase alcançava o coração da cidade (junto ao Valongo extensa e
larga era a faixa do mangue). Na Vila Matias, as águas das chuvas compunham lagoas sem fim; o Paquetá, o Macuco, o Campo Grande, toda a planície,
enfim, sujeitavam-se a inundações periódicas.
Tais inconvenientes foram eliminados pela construção dos canais, concluídos com sacrifício e
contra a incompreensão de muita gente que não desejava ver os terrenos próprios cortados pelos grandes sulcos saneadores. Tarefa de difícil
realização, exigiram os canais a solução de inúmeros problemas, causados pela má qualidade do terreno. Foi também necessária a utilização de enorme
material ferroviário, para se fazer chegar a pontos extremos da cidade, através de zonas baixas e cobertas de matagais, homens, máquinas, cimento e
pedra. E para a fixação das margens dos canais teve de ser decidida a execução de "berços de concreto", encimados estes, lateralmente, pelas rampas
de terra gramada.
Mas, foram as comportas, até hoje manobradas manualmente, que resolveram o problema principal de
auto-limpeza do canal, tornado difícil pela pequena inclinação do solo; represando a água das marés altas, a comporta permite soltá-la na vazante,
realizando-se, assim, pela simples movimentação das águas, a "varredura" do leito do canal. Em conseqüência, as marés altas, antes tão prejudiciais,
pois inundavam os terrenos baixos, passaram a ter inesperada utilidade, cooperando para a boa higiene da baixada.
Liquidado pelo primeiro canal o Rio dos Soldados - A inauguração do primeiro canal ocorreu
em 1907. A técnica adotada em sua construção foi a mesma seguida nos demais: a terra escavada foi distribuída pela região marginal, provocando o
alteamento do solo em largas áreas. Podemos notar muito bem esse alteamento na junção dos canais 1 e 2.
Além da abertura dos canais, merece registro especial o trabalho complementar representado pela
construção de ancoradouros especiais para embarcações, no Macuco e no Mercado, que puseram fim a um comércio e descarga de produtos realizados por
chatas, canoas e chatões em praias lodacentas, no estuário, em áreas despidas de qualquer melhoramento.
Por sua vez, os rios que cortavam a área urbana da cidade foram todos riscados do mapa.
Desapareceram sob aterros, ou por força dos canais. O Rio dos Soldados, por exemplo, que desaguava no Paquetá, foi substituído pelo canal 1,
permitindo que em suas margens se erigissem casas residenciais (constitui hoje a Av. Campos Sales) e surgisse o burburinhante comércio que se
debruça sobre a atual bacia do Mercado.
Progressivamente, foram desaparecendo as áreas alagadas da cidade; as que hoje permanecem, e mesmo
assim nas épocas chuvosas, se reduzem a um trecho do Marapé e fim do canal 6 (região do estuário); passarão a ser vaga reminiscência, tão logo a
Repartição do Saneamento conclua obras projetadas ou em estudos.
Conta a cidade, atualmente, oito canais, numa extensão total superior a 21 quilômetros e que, além
de suas funções saneadoras, servem para dar nota pitoresca à paisagem.
Com efeito, inúmeras pontes de concreto, de belo acabamento, transpõem os oito canais e, em largos
trechos, contrastam com a arborização adequada, disposta nos passeios marginais. Os forasteiros, por certo, acharão poéticas tais obras e não
perceberão exatamente o que representam para a salubridade de Santos. Entretanto, não serão os forasteiros os únicos a mal avaliar a utilidade das
grandes calhas concretadas pela nossa engenharia sanitária, obras que ajudaram a drenar charcos, consolidar o terreno e livrar a cidade de terríveis
doenças.
Muitos santistas, somente quando os temporais desabam por estas bandas é que se dão conta de que
os canais não foram traçados apenas para fins ornamentais. E melhor meditando, nos dias em que chuvas torrenciais transformam os canais em rios de
águas escuras e escachoantes, enchendo-os até as bordas, poderão ter uma idéia do que sucedia há meio século, quando toda a área caída do céu e
aliada à de inúmeras nascentes das encostas, sem vazão direta e fácil para o mar, afogava a baixada, preparando para os dias de sol abrasador o
ambiente favorecedor da proliferação de temíveis mosquitos, das febres e das pestes devastadoras.
ASPECTOS APANHADOS COM DIFERENÇA DE MEIO SÉCULO - Ao alto, a Rua Lucas Fortunato, ali por volta de
1905, invadida pelas águas. O lençol líquido, a perder-se de vista, atingia o bairro de Nova Cintra. Em baixo, em vista recente, apanhada no mesmo
local, podemos ver ainda, à esquerda, semi-encoberta por um poste, a mesma casa que figurava em destaque na foto anterior. A construção do canal 1
liquidou definitivamente a inundação periódica desta zona
Foto: arquivo da Repartição de Saneamento
de Santos (RSS), publicada com a matéria
Mesmo a área central tinha problemas com a vazão das águas, após chuvas
mais fortes. Inundação da então Rua Santo Antonio (atual Rua do Comércio), em 1905:
Foto: livro A Campanha Sanitária de
Santos - Suas causas e seus efeitos (escrito em 1919 pelo dr. Guilherme Álvaro - edição do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo/Casa
Duprat)
Inundação do Largo José Bonifácio em 1908:
Foto: livro A Campanha Sanitária de
Santos - Suas causas e seus efeitos (escrito em 1919 pelo dr. Guilherme Álvaro - edição do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo/Casa
Duprat)
As fotos a seguir são de uma inundação ocorrida no centro de Santos e foram
publicadas em 26 de abril de 1928, cerca de um mês após o desabamento do Monte Serrate, no jornal santista A Tribuna,
sob o título "O temporal de ontem":
A Praça Marechal Deodoro completamente inundada, na manhã de ontem
Foto e legenda: jornal santista A Tribuna, edição de 26 de abril de 1928
Trecho da Rua de São Francisco, próximo à Santa Casa, onde se acumulou grande porção
de barro trazido pela enxurrada do Monte Serrat
Foto: jornal santista A Tribuna, edição de 26 de abril de 1928
O clichê acima mostra um trecho da Avenida Conselheiro Nébias,
que também ficou coberto pelas águas
Foto: jornal santista A Tribuna, edição de 26 de abril de 1928
Instantâneo da Rua Conselheiro Nébias, esquina da Rua do Rosário, apanhado pela manhã
pelo nosso fotógrafo (N.E.: Rua do Rosário é a atual João Pessoa)
Foto: jornal santista A Tribuna, edição de 26 de abril de 1928
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