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Poética do bonde

Estes poemas foram enviados a O Bonde por Luiz Costa de Lucca Silva, de Petrópolis/RJ, em 14/8/2001:
FERROVIÁRIO: BONDES (I)
L. de Lucca

Bonde pela rua é presença nobre,
Quando passa equilibrado e cantante,
Certo na recta e na curva elegante,
Emquanto seu porte o caminho cobre.

O bonde passou, prosseguiu avante;
Sonoramente, o tímpano em seu dobre
Deu clamor trágico ante o acto pobre
D’uma triste malta, emtão lá vagante.

Taes collocaram obstrucção na linha,
Para provocar descarrilamento.
Eis que o bonde parou fóra da via.

Cortaram a rêde alta, e quem vinha
Cobriu os trilhos com viscoso ungüento.
E eis a cidade: triste . . . vazia . . .

FERROVIÁRIO: BONDES (II)
L. de Lucca

Corre sua via na rua o bonde,
Echoando à noite na vizinhança
Seu canto longo abrangente que alcança
Elementos que a alma humana esconde.

Nos trilhos indo, êlle segue e balança,
Passando e vindo sem que o saiba d’onde
O pôvo que dorme e lhe não responde,
Emquanto seu somno na noite avança.

O bonde geme, na verdade canta,
Nos quatro motores, a fôrça imanta,
Chegando à alma até ao esqueleto.

E por chamar os seres que dormiam
A um entendimento a que não iam,
É que o denominaram obsoleto.

FERROVIÁRIO: BONDES (III)
L. de Lucca

Formas agigantadas e vagantes
Que seguem pela via sinuosa,
São os carris de fôrça poderosa,
Vigentes porém não sentidos antes.

Vêem-nos, sem notá-los, os infantes;
Os antigos com a mente ociosa
Dão uma attenção curta e mentirosa
A taes espectros à noite ambulantes.

Por cada quarteirão que à noite ronde
Um dado corpo onírico sensível,
Nessas horas vagas de encontro d’alma,

Haverá por alli passando um bonde,
Tornando viável o que impossível,
Até que impossível não seja a calma.

FERROVIÁRIO: BONDES (IV)
L. de Lucca

Mil novecentos e sessenta e cinco:
Tiraram os bondes, poucos recordam;
Eu lembro. Minhas idéas abordam
O Tempo, e com o Tempo tenho vinco.

Pela manhã, já muito cedo accordam
Essas lembranças, e num tal afinco,
Tanto que penso e mesmo quasi trinco
As sensações que d’ellas me transbordam.

Tanto assim foi feito e tanto marcado
Quanto agora creio n’um certo achado
D’alguma fórma real parallela.

E supponho que mesmo em mundo êsse
Concreto e actual, talvez crescesse,
Como está lá, bem como age, ella.

BONDES
L. de Lucca

(I)
Roda o friso
Calçando no trilho sulcado
Cada roda, das quatro ou das oito;

Preciso,
O rodante é tal dado
Tanto sisado quanto afoito.

(II)
E o Tram-Way
É como, na rua, um veio,
Um duplo veio de que pouco sei;
Alguma espécie de esteio?
Meu pensamento frenei...
Não há freio.

É um eterno paralelismo,
Cousa das vias, perene,
Um poderoso exorcismo
Que a circunstância ordene,
Inabalável no sismo
Que a terra às vezes tene.

(III)
A alavanca arqueada,
Em momentos,
Dá a ignição azulada
Nos ligamentos
Da rêde aérea esticada:
É o lampejo dos elementos
Eléctricos, na tomada
De fôrça para os movimentos
Da tração energizada
E dos pneumáticos instrumentos.

É um clarão,
Um relâmpago específico,
Um micro-relâmpago em acção,
Pequeno e magnífico,
Repentino, estalante,
Rápido e faiscante.

(IV)
Motorneiro, enverga teu uniforme
Com boné, e percebe
O que têm, que n’elles forme
A idéa que o teu dom concebe.

A forma do boné com a chapa
Que define-te o número funccional
Tem o mystico effeito d’uma capa
Definindo-te a aura mestral.

És a humana personificação do bonde,
Como é elle a forma humanizada
De máchina, que no âmago esconde
Um mystério de essência formada

Na energia magnética que emana
Com o canto anunciante dos motores
E a marcação ritmada, na via plana,
Das rodas com os direccionadores.

Na pavimentada e genérica senda,
Mostra-se a linha em comvivência:
A superfície dos trilhos de fenda,
Como engenhou a sciência.

Assim roda o bonde na rua,
Numa conjuncção mestra;
E a face do bonde é como a tua,
Quando, em funcção, tua destra

Manipula o freio pneumático
E tua esquerda move a manivela
Ligada ao systema rheostático;
E a dextreza que tens revela

A fôrça de Espírito que move
O contrôle Velocimétrico
Que acciona e gradua e remove,
Mantendo o equilíbrio simétrico,

Onde a oscilação transversal,
Em trajectória e meta urbana,
No Libramento Universal,
Equilibra a calma humana.

(V)
Minha hora é a do bonde
Em que o Ser mora
E responde
Ao Ar que aspira fora
Quando a Via o libera no Bonde
E o Ser trafega em sua Hora,

Hora equilibrada do Bonde
Trafegando na via que mora
No Elemento a que responde
Quando recebe-o de fora,
E o Elemento, no interior  do Bonde
Encontra sua própria hora.

Hora justa no centrado Bonde
Em que o movimento se ancora,
Centrado pela via, onde
O Bonde librado aflora,
E, librante da rua, o Bonde,
Da Via librante faz a Hora,

Hora da rua, onde
A redor d’elle se escora
O movimento vehicular sem fronde
De autos e auto-omnibus, por ora,
Quando o leito da Via responde
Ao cêntrico bonde que centra a Hora.

UM FRAGMENTO DA ESSÊNCIA
(15 a 18 de Junho de 1996)
L. de Lucca

Estando dentro d’um ômnibus,
Vi, sem estar vendo,
A sensação do facto extinto;
Que, da extinção, só a retém o vulgo.

Vi o facto do bonde nos trilhos sulcados,
Sulcando, engastados, o chão granítico;
E havia as grades antíguas
E o odor dos tempos;
E havia o cheiro de óleo
E do carvão das locomotivas,
E as locomotivas com tenders e carros de madeira;
No Rio, em que o Rio é ainda feito
De árvores e jardins verdes ao longo da Via.
Se me foi tal sentido, tal é presente;
Procurá-lo-ei.
Mas não aqui.

Procurá-lo-ei
Onde sobrevive a arte,
Onde a arte emana dos vegetaes,
Onde emana das máchinas
E dos seres todos,

Onde a alma de meu ser
Está gravada e continuada,
Onde vivo sem residir,
Onde vejo sem olhar.

Lá, onde a arte é do meu ser,
Vive a alma do ser que existe;
Porque a alma tem a si,
Mas só a si enxerga e sente
Quando à alma das coisas
Sente e vê.

CHARLEROY
L. de Lucca

Quando passava, naquelle momento
Bizarra cousa estava, e o pensamento
Vê agora remotamente;
Uma prancha; cousa estranha na mente;
Obtusa pra obtusa gente
Bizarro aparato  pra mente de fato;

Bonde sem conductor, só de motorneiro,
Sem tecto, sem balaustre e passageiro

Com a passada cheia
(De areia)
E alavanca à meia

(Ou à frente, não me alembra;
Mente mais  bem  não junta e membra)

No Largo da Carioca, de São Francisco?
Era tempo meu prisco,
Eu nem sabia,
Era arisco,
Pouco registraria;
Mas lembra-me a cousa
(Ou a forma, agora diria,
Que me já servi da lousa);

Troço sem nome, pra mim herói:
Vibra em som uno que se constrói
Com base nos motores Charleroy

CHARLEROY.

O tímpano retine
Tzennn! Soa,
Pra que a Via se anime;
Incontinente, voa!

CHARLEROY.

Depois, som de soslaio,
E de motor [Charleroy];
Medieval (na esquina) lacaio,

Conductor no estribo
E a urbana tribo;

Meio-pagem, do bonde a sudoeste
(Medieval)
Ásia vemos, ventos, Éste . . .
Herval . . .

Motor cantador e eléctrico
Charleroy . . .
Elemento métrico

CHARLEROY.

Sonho profundo,
Moinho fundo
Processando o oriundo:
Mó que gira, roda, mói

CHARLEROY.

No Largo de São Francisco
Há nada de fluminense,
Arcaico disco
Roda,
E roda a mó amanuense . . .
Minerálica alcalina soda;
Bufão medieval de roupa fina,
Medieválico pagem na esquina,
Prancha parada,
Bonde parado,
Os dois são só um,
Tem entrada,
Tem costado,
Sem ser algum . . .

Trilhos fazem a curva
Em paralelo,
Onírica cena, e turva,
Em amarelo;
Na esquina do largo,
Conjunto belo:
Memória  vida e embargo.

Tudo isso existe
Ali onde persiste
Ao que, por meu vivar
De quando pouco eu falava,
Volto e vou viajar.
[Vista turvada, lágrima de láva]

Lágrima de Láva!

De Láva!

Turbo, turba;
Conturbada e conturba

Visão de Láva!

Incandescente ploração,
Carpideira erupção;

Há dor, a dor não dói,

Só lixa as vísceras,
Dor, agouro, Alvíssaras!!!!

CHARLEROY.

Não devo acabar,
Não existe esse fim,
Não fui eu que vim,
Veio-me isso achar . . .

Entremear-me isto sói:

Tímpano retinente

CHARLEROY;

Olha-me contente!

Nada disso está morto;
Se lamento é porque me aviso
É aqui ainda um meio horto,
Onde a prancha já não diviso,

E se lacaio não lá existiu,
Houve elle por deslocamento;
O acréscimo me persistiu,
E real o vê o pensamento.

Motor canta  Charleroy

CHARLEROY

CHARLEROY

CHARLEROY!

MEYER . . .
L. de Lucca

Névoa no Méier.
Névoa . . .

Névoa do Tempo . . .,
Núvem de um tempo

Que filtra uma claridade opaca,
Cálida nuvem de fresco Sol
Do inverno remoto e prisco . . .

Mas, quando é esse Méier,
E onde é essa névoa?

Num ponto de um Rio de Janeiro
Onde medra a banalidade
E dilui-se o Fundamento?

Por certo esse Méier tal não seria,
E tal névoa não teria existência
Onde não existe o ar d’Oriente.

E o ar d’Oriente existe
Nesse Méier que penetra a alma,
Que é vigente no senso;
Esse ar d’Oriente existe
Onde corre imponente o bonde antigo,

E esse ar de Mandires,
Esse ar goês e meio luso,
É o ar desse Méier próximo
Como o é um fluido coletado
Do grande tonel de madeira,
Contido em garrafa típica
Que noutro ponto físico remonta
A um tempo assaz passado;

Um elemento elixírico tomado,
Um evaporante e abrangente Éter,

Que em cheiro é diáfano,
Que em senso é fresco,
Que em visão é névoa . . .

Entenderia o ser humano essa energia,
Entenderia que aí não de vera um transporte
E não há um hiato horário?

Que apenas há uma vigência,
Uma vigência omniabrangente,
Contínua e Sempiterna,
Uma hora ou época estacionada,
Cumulada da energia d’outras eras,
Onde o dinamismo vige no ar
Mas não se vê câmbio físico?

ALÉM-ESPAÇO NA LINHA
L. de Lucca

Linha existe em linearidade;
Linearidade há não-linear;
Linha não-linear é
Uma linha de bonde
De rua e de vida e
Da rua e da vida,
Que é da experiência e do que existe;
Que é na rua o que dá
A quem viaja a libertação
E poder voar em espírito;
E na rua vital é
A própria visitação do Ser.
Seguir na linha onde o bonde roda,
Estando no bonde, é flutuar,
É voar,
É estar na linha sendo livre.
Quando ia pela Dois de Maio
No Bonde Cascadura
Viajava pelo Infinito
 
 

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TRAMWAY
L. de Lucca

I - ABSOLUTO BONDE

Na  Paz ( de Siqueira ) que é rua
No urbano réptil, fiquei
E, onde, centrado, elle actua,
Diffuso no Tempo, actuei.

Tragara, ainda, tal rastejante,
Algo do fluido ser meu;
Deitou, depois, no chão constante
Que a Concepção concebeu,

E que trilhos colocados mantém,
Por rodarem os bondes dispostos,
Por que trafeguem perto e além,
E além-tempo sejam depostos.

O Licínio, porém, o é ainda:
É o bonde dos trilhos vitaes
Em linha singela que, infinda,
É Via dos seres generaes.

Inexorável, nos ambos sentidos,
O bonde Licínio, o alterável,
Passa nos momentos comtidos
Nas formas da rota inalterável,

Existentes na extensão
Do Absoluto Presente,
Em sentido e direcção
Quaesquer por que vá o Ente;

Variantes a existir
No indefinido Agora,
Onde vae-se a dirigir
O Ente na sua Hora.

II - A CIRCUNSTÂNCIA:TEMPO

O bonde existente,
No Tempo, o rodante absoluto,
Em hora pobre fica ausente,
Por phase de vão dissoluto.

E seja elle trazendo
Ao Mundo a riqueza viva
E, simultânea, exercendo
A funcção sua activa.

O Ser, no sentido seu fundo,
Existe, no Mundo, liberto;
No Tempo sem fins do Mundo,
Em obra e trajecto aberto.

O Ser a limite é sujeito,
No Mundo, restrito, estando;
E pode, livre a seu jeito,
Ser, alli mesmo andando.

Em tal íntimo, em tal meio,
Em que a Divina Acção é dada,
Os limitadores têm freio
Quando um bonde regressa de um nada.

O estrondo terrível soou
À manhã e sol de um dia.
Era o Licínio, que entoou
Seu canto antigo, em que surgia.

Em forma objectiva itinerária,
Alçava em perspectiva,
Sem a intervenção ordinária,
A moção subjectiva.

III - OS CIRCUNSTANTES

1 - O LICÍNIO

Entoando um alto lamento,
Pelo direito seu de domno,
Segue na rua em moto de vento
O Licínio desperto do somno.

Com seus motores cantantes
E, nos trilhos, tinindo feroz,
Reverbera em tons lancinantes
A eléctrica antiga sua voz.

É elle! O Licínio Cardoso
Na Lino Teixeira Passando,
Uivando, altivo e choroso,
Vae velho bonde gingando.

Em que avança clamante,
Em meio a massa indistinta,
Parece o espectro vagante
Da CARRIS URBANOS, extinta.

Vociferando, elle é seqüente,
Sulcando onde passa, o asphalto,
Liberando a linha fulgente
E ressoando muito longe e muito alto.

Soando o tímpano e os motores,
Com o carro reboque também vazio,
Sem motorneiro e sem conductores,
Como um phantasma, amedronta o Rio.

E na cidade, velha sua amiga,
Por humana má acção, apartada,
Ressuscita a acção sua antiga
E, correndo, altamente brada:

“Na lateral minha balaustrada,
Meu povo eu vibrei, seguro;
Qual gente, essa torvada,
Occulta-me o viso duro?

Não, não sois gente minha:
Quem não conhece e esqueceu
É a senilidade mesquinha
Ou quem me não conheceu.

Decerto, velhos, me matastes,
E agora, da morte, eu voltei
Por vossos netos, velhos trastes,
Dos quaes, melhor que vós, bem sei.

Porque para vós sou um mal
E algo legado à Inexistência;
Vêde-me então: a apparição fatal
A existir com inteligência!

Lembrai meu fim: como foi prompto?
No que me foi feito pensastes, ao menos,
Num só momento e único ponto,
Com vossos cérebros de vermes pequenos?

Mas eu, que fora desmembrado,
Eis que, ora, sou quem se teme,
Eis vosso evento inesperado:
Vosso todo corpo treme.

Recea essa corja timorata
Que em mim seja comtida
Uma força cruel que, por fim, mata
A sua comvenção constituída.

Pois minha idéa é comcentrada
E maior que a de vós, todos junctos;
Sei eu: ‘fabricado a servir, mais nada’,
Mas aprendi demais assumptos.

Ante a apparição que exalta
Vossa paralisação temerosa,
Paralisa-vos a cobardia, parva malta,
Não a humildade honrosa!”

E vae seguindo e lamentando
Em seu plangente canto eléctrico
E a gente escuta não atentando,
Aterrada perante o tétrico.

Por algum tempo, ainda elle corre,
Até frenar-se ante uma chave
E como que certa cousa lhe occorre
Qualquer cousa, alli, que lhe trave.

Na súbita sua paragem
Muda-se o facto e outro gesto,
Real, semelhante a miragem,
É pressentido e manifesto.

Move-se por volta e perto
Uma aproximação de entes
E o bonde que parou deserto
Se vae enchendo de mentes.

Parado nesta hora,
Obtém vida interior
E, porque no externo mora,
Vivifica o exterior.

E todo elemento lhe é surgido,
O povo actual não sendo extranho,
O motorneiro já conhecido;
E tudo coherente em forma e tamanho.

Um meio tornado comvulso
Reforma-se em forma mystica,
Sendo este bonde o vital pulso
Desta hora chacterística.

Mas não é o passado de volta
O elemento de tal scena,
É a essência do Tempo que escolta
A percepção da Hora Plena.

Assim, affirma-se a vigência
À qual o que é ephêmero não barra,
Onde a forma ressuscita a Essência
Quando o Licínio demarra.

2 - O BOCCA DO MATTO

Uma rota contornante
Abraça uma área vasta
Onde a existência constante
Com a existência externa contrasta.

E em seu trajecto há uma casa,
Em ponto alto de subida,
Que, do mundo fora, dephasa
Na Existência da Hora vivida.

Tôda épocha e logar da Terra
Lá existe de tôda maneira,
Porque tal casa não encerra
As razões de tempo e fronteira.

Diversa gente é lá verídica
Em natural fusão humana;
A Decani Dravídica,
A Landina Moçambicana,

A gente d’África central
E a da Bengali Calcutá,
Em expansão diametral,
Alli se vale e alli está

Com a Indígena Descendência
De tôda parte Americana,
Allienígena à tendência
De modo e arte IndoAfricana.

E vale-se a Gente Lusa,
Que, no Occidental seu aspecto,
A dobadoura do Mahatma usa,
Por dom Oriental d’affecto.

Fora à casa vizinha
É o Mundo amplo da Via
Onde a disposta viária Linha
É a Via em simetria.

Sinuosa, a linha percorre
A rua Maranhão e a Aquidabã,
Lavada pela água que escorre
Desde a Monção do Decã.

Observando a paisagem passante
E occupando o banco dianteiro,
Verbalizo a palavra pensante
Ao genérico Motorneiro:

“Fala, Joaquim do Seixo,
Em Braso e Luso dialecto,
Commandando no justo Eixo
O carro do vital trajecto

Que reparas diligente e mestre,
Observando se há luz correcta
Que alumie o caminho terrestre
E bem direccione à Meta.”

E, tocando o Bonde na Linha
Dos trilhos da Cósmica Senda,
O Costa discorre e caminha
Na Ultramarina Lenda.

3 - O  BATACLAN

De semblante verde e forte
É o Bataclan e a imponência
De seu bello e major porte,
Herdade da Existência.

Transportante do existente,
À dianteira, em forma e acto,
Viu-me, de cima, à frente,
Na acção e no facto.

É o binário bonde librado
Firme na extensão da rua,
De espírito e corpo timbrado
No lume diurno da Lua.

É o Piedade, é o Cascadura,
O Villa Isabel, o Engenho,
Em que meu pensamento dura
E, em sentimento, venho.

Diffuso em tempo e área, eu
Paro e movo-me a um tempo e onde
É todo logar, por caso de acto meu
Na vigência eterna do bonde.

4 - O MOTORNEIRO

Lá vêm os homens no commando:
Esquerdas que movem o Elemento,
Direitas que acompanham, frenando;
E os trilhos orientam o movimento.

Os motorneiros, o luso e o mulato,
Usam kepes, gravatas e uniformes,
E lidam no Bocca do Matto
Não sabendo que são enormes.

É o Moisés, é o Costa,
Gente, a um tempo, lírica e rude,
Gente que com a dureza arrosta
E tem alma branda, mas não se illude.

Como a ser sombra e pharol,
Esses amigos, no mundo pleno,
À noite enxergam como ao Sol
E vêem o dia como ao sereno.

A extensão nova da via,
A cada hora e trecho feito,
É trabalho de quem cria
E largo faz, do estreito;

E o motorneiro é o ente
Que produz o effeito exacto:
O procedimento inherente,
O viário veraz facto;

Dinâmico no momento
Quando, expandido, o Tempo se dá;
Estático no movimento
Onde o Tempo, dinâmico, parado está.

5 - O BONDE EXISTENCIAL

O rodante, tal e qual
Caldeadora nova mola,
Entre nós de Portugal,
De Guiné, Mozambique e Angola,

Com mauras de boa postura
E characterístico talento,
E íberos, sendo estructura
De um Luso-Afro elemento,

É o nosso bonde, que funda,
Em todo seu jogo e canto,
E, transportando, fecunda
Esse existir cáucaso-banto.

E é tal síntese a feição certa.
Ei-la, porém, bloqueada:
A Via de acção coberta
E a tramoviária vida acabada.

E eis, voltante, velho Licínio,
Que é o antigo e o Licínio novo,
É próprio elle um vaticínio
De Tempo e Espaço do Povo.

Eis refeita a conexão
Que dispersa o mormaço,
Que torna vasto e sem vão
O Absoluto e Todo Espaço.

IV - O BONDE

No breu da rua me avanço,
Afundo escuro vão metro a metro,
E cordões cúpricos tranço,
E sob o calçamento os penetro.

A noute escuríssima do céo
Põe-me em commando inconsciente,
Sonífero e absoluto véo
Em minha rota dormente.

Commando na bitola da Via
O que à noute é um brilho,
Um dourado mystico Dia
Num fado vogante de trilho;

E o avanço se faz mudo,
Em que na Essência me encerro:
É tôda existência de tudo,
Presente e assente ao ferro.

Mergulho no campo vasto
Do amplo e escuro mystério,
E a essência tôda arrasto
Em forma de ouro em minério.

E em vida vou gerindo
O que em morte só se vive,
O que é da vida, seguindo
Vida e morte, em um só declive.

Nesse trajecto no escuro,
Sou mais feliz e a mais viver;
Sou a Luz de sentido puro,
Cuja alma é o próprio Ser.

V - O INTERIOR

Um eléctrico e escuro cheiro
É interno à estructura
De madeira, e, ao viageiro,
Dá impressão de clausura,

Num comtexto
De áura estaccionária,
Como fôsse um cêsto
De condição refratária.

Por fora é visto
Que corre, e dentro o ar tem passo,
Mas, se estamos nisto,
Que é o designado espaço,

Existe uma estática,
Como sendo um tácito dístico,
Acompanhada de forma emphática
De um som cantante characterístico.

Própria sensação
Comtida no transladar,
Typica moção
Que nos faz transmutar.

VI - CONCLUSÃO

O Absoluto Ser Irrestrito,
Onde o liberado Tempo é lei,
É pleno e infinito
No cósmico Tram-Way,

Onde existe o que existia
E não inexiste o hodierno,
E as eras tôdas, na Via,
São o Hoje Sempiterno.

HORA DO BONDE
L. de Lucca

Hora
A minha é a hora do Bonde:
Hora é a hora
Em que o bonde passa na rua,
Em que se pode ter trilhos nela.
Em que há harmonia de dois
E duas harmonias numa,
Na rua com trilhos
Em que o bonde passa
Entre automóveis e omnibus
O bonde é o centro:
Tudo mais é o derredor
O bonde equilibra o derredor,
Sua Via equilibra a rua.
Rua com Tramway
É rua privilegiada
O bonde passa e equilibra
Porque é centrado e mestre.
Hora é a do bonde,
Passo nele e o vento passa
E a hora não passa:
Passo pela hora.
A Hora do Bonde.
Cascadura, Bonifácio,
Bocca do Matto, Licínio;
Varia o nome,
O colorido das ruas.
Mas o bonde passa na hora,
É sempre o Bonde.
A Hora é única.
Passa o Bonde na Hora
Centrando o Movimento.

Carlos Pimentel Mendes