A embarcação era mista, de cargas e passageiros, e foi transformada para o transporte de mercadorias frigorificadas
O pioneiro nos estudos relacionados com o desenvolvimento e utilização de sistemas de refrigeração industrial na Europa de meados do século XIX foi o engenheiro francês Charles
Tellier, nascido em Amiens em 1828 e falecido em Paris, em 1913.
Em 1873, Tellier demonstrou oficialmente, na Academia de Ciências da França, a possibilidade de preservar indefinidamente carnes através de congelamento a frio seco, a uma temperatura pouco abaixo de zero.
Três anos mais tarde, Tellier colocou em prática seus estudos teóricos, fazendo instalar uma câmara refrigerada para o transporte transoceânico de carnes a bordo de um pequeno vapor denominado (de maneira bem apta)
Frigorifique.
Este navio zarpou de Rouen em setembro de 1876 com destino a Buenos Aires (e escala intermediária em Lisboa), onde chegou no dia 25 de dezembro, trazendo na câmara refrigerada algumas poucas toneladas de carnes de
boi e carneiro.
Estas carnes, após a longa viagem de três meses, chegaram na capital argentina em bom estado de conservação, sendo que os produtos embarcados em Lisboa apresentavam toda a qualidade da carne fresca, enquanto
aquelas carregadas em Rouen haviam perdido um pouco do gosto, embora não tivessem sofrido nenhum tipo de decomposição.
Retorno - Na viagem de retorno à França, no Frigorifique foram embarcadas 35 toneladas de carne argentina, que, após travessia de quase 100 dias, chegaram em perfeito estado de conservação.
No ano seguinte, 1877, outra experiência foi realizada, utilizando-se o vapor Paraguay também de bandeira francesa, que zarpou de La Havre, tendo a bordo, estivadas em câmara frigorífica, dez carcaças de
carneiro e quatro quartos de carne bovina.
Após sete semanas de viagem, o Paraguay alcançou Buenos Aires, onde as carnes, após descongelamento e preparo, revelaram ainda ter aspecto e gosto agradáveis.
Mas foi a viagem de volta que realmente provou o valor das câmaras frigoríficas desenvolvidas por Charles Tellier.
O Paraguay saiu de Buenos Aires com destino à França carregado com 80 toneladas de carne.
Durante a viagem, surgiram diversos problemas no maquinário de propulsão do vapor, que ainda por cima teve de enfrentar diversas tempestades.
Longa viagem de 8 meses - Resultado: uma travessia extremamente longa, que durou cerca de oito meses!
Apesar disto, o carregamento chegou em perfeito estado de conservação e, como forma de comemoração, as autoridades portuárias de Le Havre distribuíram as 80 toneladas gratuitamente a hospitais, creches, hotéis e
casernas militares.
A prefeitura local chegou até mesmo a realizar um enorme banquete de carne argentina.
"O vapor Frigorifique tinha sido acolhido em Buenos Aires com grandes obséquios e
demonstrações de júbilo. Várias corporações científicas deputaram comissões para saudar a que ia a bordo, e a capitania do porto pôs um vaporzinho de serviço unicamente para as comunicações entre o Frigorifique e a terra" - nota publicada em 1877, em meio a notas procedentes da região do Rio da Prata (ortografia atualizada nesta transcrição)
Imagem: reprodução parcial da primeira página do jornal paulistano A Província de São Paulo de 5 de janeiro de 1877 (Acervo Digital Estadão)
A Compagnie de Chargeurs Reunis (CR) foi a primeira grande armadora francesa a instalar câmaras frigoríficas em seus navios.
Em 1887, o Belgrado e o Portena foram adaptados para receber pequenas câmaras frigoríficas.
Entre 1898 e 1912, a CR ordenou novos vapores, exclusivamente cargueiros, construídos com o específico fim de transporte frigorificado. Esta série de navios ficou conhecida como a série Amiral.
O último a ser entregue, o Amiral Zede, possuía capacidade para 3.600 metros cúbicos de carne refrigerada, o que representa cerca de 1.200 toneladas do produto!
Frota restante - Ao eclodir a Primeira Guerra Mundial (1914), desta série Amiral só restavam em serviço cinco navios, que representavam a totalidade da frota frigorífica francesa.
Por outro lado, a grande movimentação de tropas no fronte de guerra provocava um aumento considerável na demanda e consumo de carnes e o Exército francês necessitava de cerca de 1.500 toneladas de carne diárias
para a alimentação de seus soldados e oficiais. Isto sem contar com o consumo popular e da Marinha!
Para impedir o total abate de seus rebanhos, a França foi obrigada a solicitar à Grã-Bretanha o fornecimento extraordinário de 45 mil toneladas por mês.
O Malte já se chamara Krakus e media 152 metros de comprimento por 16 metros de boca (largura)
Foto: reprodução, publicada com a matéria
Reequipar navios - Apesar desta ajuda britânica, o déficit mensal de consumo de carne aumentou e, por volta de meados de 1915, o Ministério da Agricultura hexagonal ordenou às diversas armadoras nacionais
modificarem e equiparem seus navios com câmaras frigoríficas.
Para se ter uma ideia do consumo, basta dizer que só nos primeiros 16 meses de guerra 2,5 milhões de cabeças de gado haviam sido abatidas para cobrir a demanda total do produto no país.
A Chargeurs, respondendo a esta ordem governamental, decidiu transformar três de seus grandes navios mistos em navios frigoríficos.
Assim sendo, o Malte, o Ceylan e o Ovessant passaram por reformas e seus porões foram modificados para armazenar 8.100 m³ de carga refrigerada e 3.600 m³ de carga seca.
Desses três vapores, os dois primeiros eram navios gêmeos, construídos, construídos em Newcastle-upon-Tyne pelos estaleiros de Swan Hunter & Wigham Richarson.
Protótipos - Com casco de aço, duplo hélice, dois mastros e alta chaminé, o Malte e o Ceylan foram os protótipos de uma série de 13 vapores no total, conhecida nos meios marítimos como a série
Ilhas.
Desta série fazia parte o Eubée, cuja história já foi narrada nesta coluna.
O primeiro a ser lançado ao mar, em maio de 1907, foi o Malte, seguido dois meses depois pelo Ceylan.
Linha de volta ao mundo - Ao final desse ano, já estavam aprestados e a CR decidiu afretá-los à linha de volta ao mundo. Esta linha havia sido inaugurada em 1905, com a saída de La Havre do vapor Amiral
Jaureguiberry.
O itinerário era no sentido Oeste-Leste, com passagem por portos do Mediterrâneo, canal de Suez, Oceano Índico e Pacífico Ocidental, com escalas em Hong Kong, Shangai, Hankeon, Tien-Tsin (China) e Kobe e Yokohama
(Japão).
Em seguida, a linha prosseguia para as Ilhas Hawai e, atravessando o Pacífico Oriental, chegava ao Panamá.
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"O déficit de consumo de carne aumentou" |
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Escalas suplementares - Algumas viagens demonstravam escalas suplementares em portos da costa Oeste dos Estados Unidos (Seattle, Tacoma, San Francisco).
Do Panamá, os navios da CR que serviram esta linha navegavam para o Sul do continente americano, escalando sempre em Punta Arenas, para o embarque de cobre chileno.
Via Estreito de Magalhães passavam para o Atlântico Sul, fazendo as tradicionais escalas em Buenos Aires, Montevidéu, Santos e outros portos brasileiros, antes de retornar ao ponto de saída, ou seja, a costa
francesa.
Todo este gigantesco percurso, 34 mil milhas marítimas (63 mil quilômetros), demandava não menos de 250 dias, dos quais 160 eram gastos em navegação.
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O Malte servia a linha de volta ao mundo até março de 1909, sendo em seguida transferido para a Rota de Ouro e Prata.
Realizou sua primeira viagem em abril desse ano, ligando Dunquerque a Buenos Aires via diversos portos intermediários.
Permaneceu no serviço sul-americano até o início da Primeira Guerra Mundial, quando foi requisitado pela Marinha de Guerra francesa e transformado em cruzador auxiliar não armado, servindo de agosto de 1914 a
janeiro de 1915, sobretudo como transporte de tropas, entre os portos do Norte da França e a Bélgica.
O maior da época - A partir de meados de 1915, o Malte passa pelas transformações necessárias para transformá-lo no maior navio frigorífico francês da época.
Ao se terminarem os trabalhos de estaleiro, o Malte dispunha de 11.690 metros cúbicos de capacidade de carga, dos quais 8 mil eram em espaços frigorificados.
Iniciou-se então um segundo período de viagem para a América do Sul, onde as escalas principais eram os portos platinos para carregamento de carnes.
Numa dessas viagens, foi alvo do submarino alemão U-151, ao largo de Dacar, em outubro de 1917, que lhe disparou vários ouses de canhão, que não causaram, porém, grandes danos ao vapor.
Dez anos - Findo o conflito em novembro de 1918, para o Malte seguiu-se um período de dez anos na Rota de Ouro e Prata, com um número considerável de viagens entre os portos franceses e os
portos brasileiros e argentinos, sendo sempre o transporte de carnes e de emigrantes o ganha-pão principal do vapor.
No início d e1928, a grave crise financeira mundial que resultaria na quebra de Wall Street, em 1929, delineava-se no horizonte, com o preço das principais matérias-primas sofrendo grandes altas, a América do Sul
constituía grande chamariz para a emigração de vários povos do Leste Europeu: poloneses, bálticos e russos partiam aos milhares para os países das Américas.
A Chargeurs Reunis viu nesse tráfego humano um filão a ser explorado e decidiu transformar dois de seus antigos vapores em navios de emigrantes.
Assim foi que o Malte e o Oyessani passaram por trabalhos que ampliavam consideravelmente as capacidades para passageiros.
Novos nomes - O primeiro foi rebatizado Krakus (nome de lendário soberano polonês do VII século) e o segundo Swiatowid.
Com esses novos nomes, os vapores iniciaram, em setembro de 1928, uma ligação mensal regular entre Gdynia (Polônia), Le Havre, Rio de Janeiro, Santos, Montevidéu e Buenos Aires, transportando até um máximo de 850
emigrantes.
Esta nova linha duraria dois anos e alguns meses, a cada viagem repetindo-se o mesmo cenário.
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A capacidade de passageiros era de
129
e o ano da viagem inaugural foi 1907 |
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Em busca do Eldorado - No sentido Norte-Sul, o Krakus e o Swiatowid recebiam a bordo carga geral e uma massa humana em busca do Eldorado latino-americano. No sentido inverso, café, trigo e
carne congelada para os portos franceses.
Com o crash dos mercados financeiros em outubro-novembro de 1929, a demanda de mão-de-obra para as Américas praticamente cessou e à CR não restava alternativa senão acabar com a linha Gdynia-Buenos Ares.
No ano seguinte, algumas viagens ainda foram realizadas, mas a viabilidade econômica dessa ligação não mais existia.
A partir de 1931, o Krakus e o Swiatowid foram desarmados e colocados, como tantos outros, em naftalina.
Em fevereiro de 1934, envelhecidos e enferrujados, ambos foram vendidos como ferro-velho e demolidos por uma empresa italiana de Gênova. |