Numa manhã de início do inverno meridional, em julho de 1975, o autor desta coluna (que extraordinariamente e com a permissão do leitor para em seguida narrar na primeira pessoa
do singular) passeava ao longo da amurada da Ponta da Praia, em Santos, quando, ao dobrar a Ponta do Cheira Limão, apareceu um cargueiro que entrava no canal do porto. Casco cinza, chaminé alta, nas
cores amarela, vermelha e azul, bandeira do Panamá na popa e com o nome de Lacasielle em letras escuras na proa, o cargueiro aparentava ser de antiga construção, com linhas graciosas e um perfil que me deixou a vaga sensação de tê-lo visto
anteriormente em um outro porto qualquer ou em alguma das tantas publicações marítimas.
O Lacasielle, em sua viagem de novembro de 1975, atracou no cais do Armazém 35, na Ponta da Praia, deixando o anonimato
Como de hábito, fiz fotografias do navio, destinadas à coleção que iniciara muitos anos antes. Dias mais tarde, já com as fotografias reveladas, ocorreu-me a idéia de que o navio me parecia conhecido por analogia
com outras imagens já vistas e referentes à Segunda Guerra Mundial.
Rápida consulta - ao Lloyd's Register e a outras publicações - logo me confirmou o extraordinário fato de que o Lacasielle havia sido, durante o último grande conflito bélico, o cruzador auxiliar
armado Coronel.
Com este nome de guerra, serviu por algum tempo à Marinha da Alemanha do III Reich, sendo então referido nos meios navais com a sigla de identificação secreta Schiff-14 (Navio 14), o que equivale dizer que foi o
último dos corsários armados do século XX.
Em outras palavras, havia descoberto o paradeiro de uma raridade marítima. Após levantar todo o seu histórico, impunha-se realizar uma visita a bordo para obtenção de outros dados de interesse e fotografias, mas
tal coisa não foi possível de imediato, visto que, no entretempo, o Lacasielle havia deixado Santos rumo aos portos do Caribe.
A reprodução de fotografia mostra o cargueiro entrando em Santos em julho de 1975
Foto: J. C. Rossini
Retorno - Passaram-se oito semanas antes que o cargueiro retornasse novamente ao porto, desta vez em rápido trânsito para Buenos Aires. Aproveitei para fazer novas fotografias, quando este deixava Santos, e
decidi visitá-lo, quando de sua volta do Prata.
Nos dias seguintes, contactei José Carlos Silvares, na época editor da página de Porto e Mar (depois editor adjunto de A Tribuna) e informei-lhe da redescoberta do antigo corsário. Mostrei-lhe
fotografias e o histórico do navio já redigido por mim e sugeri-lhe uma reportagem sobre o assunto.
Silvares concordou de imediato, ficando acertado que iríamos juntos a bordo, quando da próxima escala do Lacasielle em Santos, prevista para o início de novembro. Contatamos em seguida os agentes do navio,
Laurits Lachmann, informando-os da nossa intenção, sem, porém, revelar os motivos.
Na segunda semana daquele mês, o Lacasielle atracava no cais do Armazém 37. Com os passes nas mãos, subimos a bordo. Éramos em três: Silvares, Rossini e José Dias Herrera, fotógrafo de A Tribuna.
Momentos de excitação, pois púnhamos os pés numa relíquia marítima.
Fomos recebidos pelo comandante do navio, capitão Luis Maria del Busto y Mandaluniz, basco de origem, jovem de idade, mas veterano dos mares. Ele desconhecia os motivos da nossa visita. Estava intrigado.
Para nossa surpresa, logo entendemos que Busto também desconhecia a história completa do navio que comandava, estando somente a par, de forma vaga, de que este antigo navio, de construção alemã, havia tido alguma
forma de participação durante os dias da guerra. Havia assumido este comando em janeiro de 1975.
Quando lhe contamos em detalhes o passado do Lacasielle, o capitão Busto se tornou repentinamente outro homem, aberto e sorridente, tão surpreendido com o que lhe contamos, como reage um marido ao saber, por
acaso, que a esposa fora rainha de beleza antes do casamento.
Colocou imediatamente o navio à nossa disposição, com livre acesso a todos os locais de bordo. Assim foi que percorremos o Lacasielle de proa a popa, de alto a baixo. Herrera e Rossini batiam fotografias.
Silvares fazia anotações.
Busto dava explicações. Entre outras, afirmava que as únicas lembranças do período bélico nas obras mortas do cargueiro eram as bases de aço em concreto reforçado que ainda se encontravam nos pisos das asas
da ponte de comando. Estas bases eram os suportes dos pesados canhões antiaéreos instalados a bordo no período bélico.
Na casa de comando e na casa de máquinas, vestígios da época de construção original: agrupamento de navegação, roda de leme, bússola, mesa das cartas náuticas, telégrafos de ordens às máquinas, maquinário de
propulsão, escadas de ferro, escotilhas...
O Lacasielle, considerando-se a sua época de construção e idade, era um verdadeiro museu flutuante, a entender-se no bom sentido da palavra. Limpo, bem conservado, tinha ainda móveis, mesas, armários,
quadros e até louças que datavam do seu lançamento ao mar como Togo.
Tempos mais tarde, vim a saber que, na época dessa nossa visita, o Lacasielle era um dos poucos exemplos do período pré-bélico da marinha mercante alemã de alto-mar ainda em navegação.
A roda do timão e a bússola giroscópica na ponte de comando, em fotografia tirada por Rossini
Divulgação - Tudo o que é bom termina cedo e a nossa visita chegava ao fim. Descemos, não sem antes prometer ao capitão Busto a publicação de uma matéria nas páginas de A Tribuna para os dias
seguintes. Na edição de terça-feira, 18 de novembro de 1975, sai em página inteira a reportagem prometida, com textos de José Carlos Silvares e José Carlos Rossini. Nesse mesmo dia, voltei sozinho a bordo do Lacasielle, levando uma dúzia de
exemplares de A Tribuna.
A partir daquele momento, iniciava-se uma amizade de confraria marítima entre o autor e o capitão Busto. Prometi-lhe a divulgação da história do seu navio em caráter internacional, tirando-o assim do
anonimato.
Alguns dias mais tarde, escrevi a Craig J.M.Carter - editor, na época, de Sea Breezes, conceituada e bem conhecida revista marítima de circulação mundial. Relatei-lhe o assunto, sugeri-lhe uma matéria,
enviei-lhe algumas fotos. Em carta de 2 de dezembro, Craig Carter me informou ter aceitado a idéia e que a matéria sairia na edição de fevereiro de 1976 da revista. Dito e feito.
Nas páginas 94, 95 e 96 desse número de Sea Breezes renasceu, a nível global, a história do Togo-Coronel. O impacto foi fenomenal. Nas semanas que se seguiram, passei a receber cartas provenientes de
meio mundo. Queriam fotos, detalhes, esclarecimentos, informações. Não conseguia dar conta da inesperada correspondência.
Novo nome - No decorrer daquele ano (1976), o Lacasielle mudou de nome para Topeka. Estranha e repentina mudança de nome por parte dos mesmos proprietários colombianos. Anos mais tarde, o
capitão Busto, já não mais a serviço dos armadores do Lacasielle, me contou as razões dessa mudança.
Logo após a publicação da história em Sea Breezes, em cada porto da escala da rota costumeira do navio (Caribe, Brasil, Prata), o Lacasielle despertava curiosidade. Busto passou a receber freqüentes
pedidos de visita a bordo, coisa que obviamente não acontecia antes. Às vezes, eram até mesmo pequenas comitivas que queriam visitar o navio.
A explicação não tarda a aparecer. O Lacasielle havia se tornado um navio-fetiche para uma numerosa colônia de ex-combatentes alemães da última guerra. Uma espécie de símbolo vivo de antigas paixões e
tragédias para muitos que haviam combatido ou sofrido aquele sombrio período da história contemporânea, quase levado à categoria de memorial flutuante da ex-Kriegsmarine.
Para eliminar essa imprevista admiração, mudou-se o nome do cargueiro para Topeka, pintou-se o casco e a chaminé de negro, numa curiosa tentativa de camuflagem.
Em vão... pois o assédio continuou praticamente até os últimos dias do cargueiro, sua mera existência simbolizando, tal como os restos do Graf Spee em Montevidéu, toda uma época do século XX, pois o
Topeka era bem o último sobrevivente da outrora poderosa Marinha de Guerra de superfície do III Reich.
O Lacasielle mudou de nome, para Topeka, para não ser identificado como antiga unidade nazista
Fama - Raramente, um simples navio cargueiro chega a alcançar a fama dos navios de passageiros, e as razões deste fato são inúmeras. Aos primeiros, faltam o glamour, a grandiosidade o luxo das
instalações, e sobretudo a memória de parentes, amigos, conhecidos e personalidades famosas.
Pela leitura do início deste artigo é fácil, porém, entender por que um simples navio de carga como o Lacasielle possa receber os adjetivos de extraordinário e renomado. A inclusão nesta coluna
sob tal nome prende-se ao fato de que assim se chamava ao realizar a primeira viagem para portos do Brasil e do Prata em 1968, critério básico para o título de cada navio tratado na Rota de Ouro e Prata. Mas, retomemos o fio de sua história.
Após o término das hostilidades na Europa, em maio de 1945, o que restava das frotas navais e mercantes da Alemanha capitulada fora confiscado, pelas nações aliadas vitoriosas, como reparação de guerra. Nesta longa
lista, que incluía desde encouraçados até mini-submarinos, encontrava-se também o Togo, do início de nossa narrativa. Como já mencionado, o Togo, após uma série de negociações entre as autoridades navais aliadas, foi entregue, em
1946, à Marinha do Reino da Noruega e, por parte dessa, recebeu o novo nome de Svalbard, iniciando-se assim um terceiro período de sua carreira.
Nova bandeira, nova função: o navio-transporte e mais tarde navio auxiliar de serviços gerais até 1954, ano de sua baixa oficial. Colocado à venda, foi adquirido pela armadora norueguesa J. Lind, que o enviou ao
estaleiro Deutsche Werft, para reconversão em cargueiro.
Ao sair desse estaleiro com o novo nome de Tilthorn (em seguida mudado para Stella Marina), começava a quarta e derradeira fase da carreira deste navio a motor, revertido à condição de navio de carga.
Após servir por apenas 19 meses o armador J. Lind, o Stella Marina foi adquirido, em 1956, pela empresa que ordenara a sua construção em 1937, ou seja, a Deutsche Ost Afrika Linie (Doal), retornando assim a
seu nome original de Togo, sob bandeira da República Federal da Alemanha.
Linhas africanas - A Doal havia sido fundada em 1890, com um capital de 6 milhões de marcos alemães da época, sob a iniciativa de Adolphe Woerman, filho de Carl Woerman. Este último, em 1837, com apenas 24
anos de idade, criara em Hamburgo uma empresa comercial que, dez anos mais tarde, evoluía para armadora de navios-veleiros. Em 1849, Carl Woerman enviou um de seus navios para a costa ocidental da África, criando-se, assim, uma nova era de
navegação entre a Alemanha e o continente africano.
Em 1880, Adolphe Woerman sucedeu o pai na conduta dos negócios da família. Naquele ano, a Woerman Linie já era proprietária de 42 navios-veleiros, a maioria dos quais realizava viagens regulares para a costa Oeste
da África.
Como seu próprio nome indicava, a Doal foi criada para manter ligação entre a Alemanha e a costa Leste africana, seus vapores escalando, porém, em quase todos os principais portos do continente negro, ou
seja, do lado ocidental ou oriental.
Em 1937, um ano antes do aparecimento do Togo, a Doal colocara em serviço na linha Hamburgo-Cidade do Cabo dois novíssimos navios de capacidade mista, construídos pelo estaleiro Blohm & Voss, e que levaram
nomes bem conhecidos: Pretoria e Windhuk. A Doal empregou o Togo, nesse segundo período, entre 1956 e 1968, sendo adquirido para as águas que foram as suas no início da carreira.
Na Colômbia - Após 12 anos de bandeira alemã, o Togo foi posto à venda em 1968, sendo adquirido por uma empresa com bandeira de conveniência do grupo hispânico Agromar. Recebeu, então, o novo nome de
Lacasielle (casa pequena, em dialeto colombiano) e passou a operar entre Vera Cruz (México) e Buenos Aires, com escalas intermediárias em Tampico, Santa Marta, Barranquilha, Buenaventura, Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu. Foi
registrado como propriedade da Taboga Ent., do Panamá.
Além desses portos principais, o Lacasielle escalava, ocasionalmente, conforme as cargas embarcadas, também em Tampico (México), Cartagena de Índias e Buenaventura (Colômbia), Itajaí, Salvador, Recife,
Vitória, Rosário e Santa Fé.
Em meados de 1976, nova mudança de nome. Passou a ser conhecido como Topeka, nominalmente pertencente à Caribbean Real Estate S.A., também do Panamá, outra empresa de conveniência do Grupo Agromar. Seguiu,
porém, realizando o mesmo serviço da linha entre o Golfo do México, Caribe e América do Sul.
Topeka seria seu último nome. Após 16 anos de serviço nessa rota, o histórico navio chegou a seu fim em 1984, quando se encontrva sob propriedade da empresa Romen Inc., do Panamá.
O cargueiro havia zarpado de Tampico com carga geral a bordo e com destino a Barranquilha, no mês de novembro desse ano. No dia 21, o navio encontrou em sua rota uma violenta tempestade, com ventos fortíssimos,
soprando em direção Norte.
O comandante, Pablo Martinez, decidiu procurar abrigo, largando âncora próximo à localidade mexicana de Coatzacoalcos. Mas, a tempestade virou um verdadeiro tufão e as âncoras se partiram. O Topeka foi
levado pela correnteza, indo dar à costa de modo tão violento que várias brechas se abriram em seu casco, inundando-se assim a casa de máquinas e três porões. Mais trágica ainda a morte de dois de seus 27 tripulantes, devido a ferimentos recebidos
no momento do encalhe.
O Topeka permaneceu, assim, encalhado num ponto da costa situado a cerca de oito milhas (15 quilômetros) a Leste da embocadura do Rio Coatazalcos, enquanto se decidia o que fazer. Por fim, algumas semanas
transcorridas desde o encalhe, o navio foi abandonado pelos armadores à seguradora e, por esta, declarado perda total. Nos dois meses seguintes, tudo o que podia ser recuperado de bordo foi retirado, e o resto, abandonado aos elementos da natureza.
Nos dias de hoje, transcorridos quase 14 anos de sua perda, pode-se, ainda, ver parte de sua carcaça semi-submersa nas areias da praia de Minatitlán, no Golfo de Campeche, Sul do México. |