Nelson Antonio Carreira (*)
No ano de 1935, a companhia de navegação holandesa Koninklijke Paketvaart Maatschappij (KPM, ou Royal Interocean Lines), de Amsterdam
(Holanda), planejava a renovação da sua frota de navios de passageiros no serviço do Extremo Oriente.
Com cinco navios de pequeno porte na faixa de 5 mil a 6 mil toneladas de arqueação bruta, esses navios - que cumpriam o itinerário entre Xangai (na China) e Capetown (na África do Sul), em três meses ida e volta -
estavam encontrando dificuldades para atender as exigências do mercado no início da década de 1930, após a grande recessão que abalou o mundo inteiro naquela época.
Foi então decidido substituir-se os cinco navios velhos e pequenos por três navios consideravelmente maiores, mais rápidos e certamente mais confortáveis, pois o serviço mostrara efeitos positivos nos 15 anos
precedentes, tanto no setor de cargas quanto no setor de passageiros.
Naquela ocasião, a KPM, como era conhecida a armadora, conduziu uma pesquisa nos estaleiros holandeses e viu que só poderia construir dois navios em estaleiros nacionais - um navio teria que ser construído no
exterior, pois as empresas de construção naval na Holanda estavam comprometidas.
Cerimônia de lançamento do Boissevain, em 3 de junho de 1937
Foto: reprodução, publicada com a matéria
Encomenda complexa - Ficou então acertado com o estaleiro Blohm & Voss A.G., de Hamburgo (Alemanha), que o primeiro navio da série seria construído lá. Dos outros dois, um seria construído em Amsterdam e o
outro em Vlissingen, na Holanda. O nome escolhido para o navio foi Boissevain, em homenagem póstuma a um dos fundadores da KPM no século XIX.
A construção do Boissevain constituiu um fato marcante na história não só das empresas envolvidas - armadora e estaleiro - como pela complexidade do financiamento da encomenda.
A Alemanha (na época já nazista) lutava com problemas de falta de divisas. Sua balança comercial com o exterior estava defasada, seu mercado interno tumultuado e o mercado externo baseava-se em transações de
permutas. Sucedia que as fábricas de charutos na Alemanha estavam com dificuldades financeiras devido ao preço do tabaco produzido internamente, que era vendido por um preço superior ao tabaco produzido, por exemplo, na Indonésia, que era colônia
holandesa.
Como a Indonésia necessitasse de clientes a quem pudesse vender o tabaco produzido em seu território, foi então fechado o negócio, nos termos em que a Indonésia (colônia holandesa) cederia tabaco à Alemanha, que
por sua vez pagaria o equivalente em marcos imperiais através da construção do Boissevain - que entrou para a história do estaleiro como o Navio Charuto.
Contudo, antes que a quilha do Boissevain fosse batida, meses de negociações passariam envolvendo todas as autoridades governamentais competentes, seus respectivos ministérios e departamentos.
A conclusão das negociações deu-se no Ministério da Economia de Berlim e o dr. Rudolf Blohm, então diretor do estaleiro e filho do fundador do mesmo, lembra-se que se andou para trás, discutindo e calculando até
que restou uma pequena diferença que parecia imponderável.
"Finalmente, antes que nós voltássemos a Hamburgo e os holandeses à Holanda, encontramo-nos no hotel em Berlim, o pessoal do estaleiro e da armadora. Enquanto estávamos lá, alguém do Ministério da Economia apareceu
e disse que haviam encontrado a fórmula e que a ordem estava confirmada".
Em época de baixa no setor de construção naval, o Boissevain, bem como seus dois irmãos gêmeos, foi projetado cuidadosamente pelo dr. Muller, engenheiro-chefe superintendente da KPM em Amsterdam, de modo a
estar apto a corresponder até mesmo a exigências inesperadas e ser ainda mais apreciado que seus antecessores.
Quanto ao preço que cada navio custaria, soube-se que as cifras atingiam de 50 a 75% acima do preço comum de mercado na época, no caso de navios daquela categoria.
Não seria um navio encantador como os grandes transatlânticos da Holland America Line, atenderia uma clientela menos burguesa, porém igualmente exigente; as acomodações de passageiros, divididas em três categorias,
e o espaço para cargas seria distribuído em seis porões, três na vante e três na ré, oferecendo espaço e equipamento para o transporte de carga geral variada, bem como frigorificada.
Lançamento - A quilha do Boissevain foi batida na quadra nº 4 do estaleiro em 5 de setembro de 1936. Lançado ao mar no dia 3 de junho de 1937, o pessoal do estaleiro misturou-se ao povo, que sempre
acorria para assistir ao lançamento de grandes navios de passageiros.
Enquanto no palanque de autoridades todos procediam de forma protocolar, embaixo, na quadra, o ufanismo nazista inflamava a população, que, com o gesto característico levantando o braço, aos gritos pronunciava a
saudação nazista Heil.
Após o lançamento, com o casco completo e o convés principal já montado e motores instalados, o Boissevain foi rebocado até ao cais de aprestamento do estaleiro Blohm & Voss.
O Boissevain, já terminado e pronto para navegar
Foto: reprodução, publicada com a matéria
Labirinto - Internamente, o Boissevain era um navio bem decorado, porém não ostentava os esplendores do seu contemporâneo e compatriota, Nieuw Amsterdam. Construído para navegação em mares
tropicais, seus alojamentos eram claros e arejados, porém a disparidade na capacidade de passageiros em cada uma das três categorias, 80 em primeira classe, 80 em segunda classe e 500 em classe imigrante, subentendia e caracterizava o Boissevain
como um navio imigrante por excelência.
A bordo, um labirinto de corredores e escadarias fora propositadamente planejado. Como o navio transitaria por continentes e países de costumes, religiões e etnias diversas, essa medida foi tomada como precaução
contra possíveis confrontos durante as viagens.
O aparelho propulsor e sua disposição era outra novidade. Como se esperava que o navio não retornasse à Europa, foi adotado um sistema de três motores diesel, patente Sulzer, cada um acoplado a um hélice, sendo
portanto o Boissevain um navio motor de três hélices.
Além disso, estimava-se que, com as curtas estadias nos portos de escala, teria que efetuar manutenção e reparos que se fizessem necessários, em navegação. Assim, era possível desligar os motores laterais para
manutenção, prosseguindo a navegação com o motor central e vice-versa, desligando o central com os laterais em movimento.
No dia 27 de novembro de 1937, com a suástica nazista (então bandeira nacional da Alemanha) tremulando no mastro de popa, tiveram início as provas de mar que, entre outros testes, incluíram um período contínuo de
48 horas de navegação a toda força, atingindo a velocidade de provas de 17,25 nós e fixando a velocidade de exercício em 16 nós.
A 1º de dezembro de 1937, foi oficialmente entregue à armadora em Hamburgo. Após uma longa estadia de um mês em Amsterdam, saiu em 3 de janeiro de 1938 para a Batávia, hoje Jacarta, na Indonésia, em viagem de
posicionamento, para daí seguir em viagem inaugural.
O Boissevain, transatlântico de bandeira holandesa,
navegando na costa oriental da África por volta de 1960
Foto: reprodução, publicada com a matéria
Cores - Ao contrário da maioria dos navios de passageiros de sua época, cuja cor predominante dos seus cascos era preta, o Boissevain era um navio todo branco à exceção da chaminé, que era cor creme,
mastros em tom de castanho e a linha d'água vermelha. Um belo navio, sem dúvida, cuja eficiência lhe daria 30 anos de existência, incluindo cinco anos de serviço como transporte de tropas durante a Segunda Grande Guerra.
No mês de junho de 1940, forças alemãs invadiram a Holanda e o Boissevain, que se encontrava no Extremo Oriente, foi requisitado pelo governo britânico como navio de transporte de tropas aliadas. Entregue ao
Almirantado, passou pelas modificações de praxe.
O Boissevain teve sempre a sorte que muitos navios maiores não tiveram, navegando em comboios principalmente no Norte da África com seus irmãos gêmeos ao lado de grandes navios como o Queen Mary, da
Cunard Line.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, entrou em Liverpool no dia 12 de outubro de 1945 para efetuar o desembarque de 1.742 ex-prisioneiros de guerra procedentes do Japão, recebendo a maior acolhida que aquele porto
e o povo da cidade jamais deram a qualquer navio. Para comemorar o evento, o correio da Inglaterra imprimiu selo comemorativo. No ano seguinte, 1946, foi reentregue aos seus proprietários, a KPM, que o submeteram à reconstrução total.
Insurreições - Nos anos finais da década de 1940, a Indonésia foi palco de insurreições, chefiadas pelo general Sukarno, que saquearam o país e todos os bens dos holandeses residentes.
As linhas de navegação que mantinham serviços de passageiros na rota da Indonésia tiveram que retirar seus navios da rota, temerosas de que os insurgentes tomassem algum navio de assalto.
A KPM abandonou a rota de Xangai à África do Sul via Indonésia e abriu uma linha nova, aproveitando a demanda de imigrantes orientais que queriam viver no Brasil e Argentina.
Em 13 de novembro de 1947, novamente pintado de branco e inteiramente recondicionado como navio de passageiros, o Boissevain saiu de Xangai via Hong Kong, Kobe (Japão), África do Sul, rumo a Santos
(SP-Brasil), Montevidéu (Uruguai) e Buenos Aires (Argentina). Em 7 de fevereiro de 1948, entrou em Santos, após 86 dias de viagem desde o Extremo Oriente.
União - A guerra devastara toda a frota mercante japonesa, e a grande procura de passagens deu à KPM uma ótima oportunidade de se estabelecer na nova linha.
Além disso, a outra companhia de navegação holandesa que servia as rotas orientais, a Java-China Japan Line, também buscava mercado de trabalho para seus navios. Foi então nesse ponto que as duas empresas, cujas
sedes eram em Amsterdam, resolveram unir-se e, juntas, deram origem à Koninklijke Java-China Paketvaart Maatschappij, que ficou conhecida internacionalmente como Royal Interocean Lines.
Era o ano de 1949, e o Boissevain, na sua terceira viagem ao Brasil, teve seu casco e chaminé pintados de preto. Na chaminé, foi-lhe fixada a bandeira da nova empresa, que se compunha de losango branco
dentro de um quadrante cujas cantoneiras superiores eram vermelhas e inferiores azuis. Dentro do losango branco, a coroa dourada, símbolo da monarquia da Holanda, que dava o prefixo Real a todas as empresas de navegação da época.
Durante os anos seguintes, o Boissevain, juntamente com seus irmãos gêmeos Tegelberg e Ruys, trouxe milhares de imigrantes orientais ao Brasil, como chineses e japoneses, estes últimos em
grupos cada vez mais numerosos.
A lenta reconstrução do setor da marinha mercante no Japão assegurava emprego efetivo aos navios da Royal Interocean Lines na linha e, mesmo posteriormente, quando a OSK já se achava em fase de evolução, seus
navios eram pequenos para a rota da América do Sul. Os navios holandeses eram maiores e mais ligeiros.
Face aos bons resultados obtidos na linha do Extremo Oriente, a Royal Interocean Lines viu diminuir o fator Passageiro no porto de Xangai, para onde não se tinha carga de retorno.
Ao mesmo tempo, a imigração japonesa maciça desde 1908 vinha incrementando seu fluxo, além da carga no retorno ao Japão, que atingia índices consideráveis, obrigando o navio a longas estadias nos portos de Santos e
Buenos Aires.
Foi então assinado um acordo de cooperação entre o governo japonês e a Royal Interocean Lines, a qual disporia das acomodações do Boissevain e outros navios de passageiros de sua frota para o transporte dos
imigrantes japoneses, dirigidos pelo plano de imigração do Governo do Japão.
Tristão da Cunha - Na viagem de retorno ao Japão via África do Sul, carregava frutas argentinas - além, é claro, de café e carne de cavalo do Brasil para o porto de Iocoama. Em 15 de agosto de 1954, o
Boissevain saiu de Cobe em primeira viagem ao Brasil, sob os auspícios do novo sistema de migração japonês.
Em 1963, um fato curioso foi registrado na história do Boissevain, fato este que tivera seu primeiro lance dois anos antes, envolvendo outro navio da Royal Interocean Lines chamado Tjisadane.
Em janeiro de 1961, vinha o Tjisadane em sua última viagem ao Brasil, quando, em pleno Atlântico, captou sinais de pedido de socorro dos habitantes da pequena ilha de Tristão da Cunha. Os flagelados
habitantes daquela ilha foram obrigados a abandoná-la devido à súbita entrada em erupção do vulcão existente.
Desembarcados no Rio de Janeiro e entregues aos cuidados da Cruz Vermelha Internacional, muitos quiseram voltar à ilha, por não se sentirem aptos a enfrentar o mundo moderno. O Boissevain levou os ilhéus de
volta ao habitat em 1963, durante viagem rotineira do Brasil à África do Sul.
Em 1966, durante viagem ao Brasil, o Boissevain voltou à ilha Tristão da Cunha para, novamente, recolher quatro famílias inteiras, as quais, tendo conhecido um mundo de conforto e desenvolvimento, preferiram
voltar à civilização a permanecer naquela ilha triste e sem meios de sobrevivência, perdida na imensidão do oceano.
O navio da Royal Interocean Lines atracado em Santos em abril de 1968
Foto: reprodução, publicada com a matéria
Final - Em abril de 1968, durante sua derradeira viagem, estando atracado no porto do Rio de Janeiro, o Boissevain começou a fazer água. Durante vistoria, foi apurado que o chapeamento do fundo do
casco se rompera, sendo o fundo duplo invadido pela água do mar.
Após trabalhos de reparos e estanqueidade, o Boissevain prosseguiu viagem rumo aos portos de Santos, Montevidéu e Buenos Aires. No retorno do Prata, o Boissevain permaneceu uma semana atracado no
porto de Santos, embarcando café, carne de cavalo e carga geral.
No dia 6 de maio de 1968, uma segunda-feira, no início da tarde, a tripulação iniciou preparativos para a partida. Embandeirado em grande gala tal qual em viagem inaugural, o velho barco desatracou às 15 horas. Era
uma ensolarada tarde de outono, em que outros navios de passageiros estavam no porto, entre eles o italiano Anna C.
Manobra concluída, os rebocadores apitaram três vezes, e o Boissevain respondeu dando também três longos apitos de despedida ao porto de Santos e ao Brasil. Terminou sua última viagem no porto de costume -
Iocoama, no Japão -, onde foi vendido como ferro velho aos sucateiros de Kaohsiung, em Formosa. Chegou a Kaohsiung em 14 de julho de 1968.
(*) Nelson Antonio Carreira, de Santos, é pesquisador de assuntos marítimos e navais.
Os dados deste texto foram obtidos junto às seguintes fontes:
1) estaleiro Blohm & Voss A.G., de Hamburgo, Alemanha, através do sr. Maximiliam Steegert, encarregado do setor de Relações Públicas;
2) Nedlloyd Lines, de Rotterdam (Holanda), através do sr. Jan Suttorp, redator-chefe, e da senhorita Peggy Lukas, sua secretária executiva;
3) Museu Marítimo Prins Hendrik, de Rotterdam, através do sr. Ron Brand;
4) Freddy Van Wageningen, radiotelegrafista aposentado do navio Nedlloyd Zeelandia. |