O navio da Chargeurs Reunis começou a navegar em 1918
A invenção do rádio data de 100 anos atrás, quando o jovem engenheiro italiano Guglielmo Marconi realizou as primeiras experiências de transmissão de sinais pelo éter,
inicialmente em curtas distâncias e, anos mais tarde, na virada do século, através das ondas hertzianas, que permitiam transmissões a maiores distâncias.
A nova invenção interessou imediatamente à indústria do mar, seja para as unidades de guerra ou navios mercantes, e a partir de 1904-1905 iniciou-se a equipar os melhores transatlânticos que navegavam pelas águas
do planeta com aparelhos de radiotelégrafo.
Antes que os vapores de então fossem assim equipados, era comum o desaparecimento de embarcações movidas a vento e velas ou propulsionadas com maquinário; zarpavam de um porto, destinadas a outro ao qual nunca
chegavam, desaparecendo corpo e alma em algum ponto do oceano e para sempre, sem sobreviventes, portanto sem testemunhas.
Mais surpreendente ainda é o fato de que, a partir da instalação regular em navios mercantes da invenção de Marconi, até os dias de hoje, um número superior a 2 mil embarcações de todos os tipos e tamanhos também
foram dadas como perdidas, por terem, pura e simplesmente, desaparecido sem rastro, malgrado terem a bordo instalações de sinalização de rádio.
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Mais de
2 mil
embarcações foram dadas como perdidas,
desaparecendo se deixar rastros
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Um dos casos mais recentes e intrigantes foi o desaparecimento dos navios mineiros noruegueses Berge Istra e Berge Vanga, gigantes gêmeos de 115 mil toneladas de arqueação bruta (tab), ambos batendo
pavilhão liberiano, que desapareceram respectivamente em 1975 e 1979, com seus enormes carregamentos de minério de ferro e sem o mínimo sinal de SOS.
O miraculoso salvamento de dois tripulantes do Berge Istra, recolhidos do mar 20 dias após, permitiu resolver o mistério do primeiro: o navio mineiro havia implodido repentinamente e, na gigantesca explosão,
os dois marinheiros (que pintavam então o costado do navio) foram projetados ao mar, onde só conseguiram salvar-se devido ao fato de terem encontrado uma pequena balsa salva-vidas (ver A Tribuna de 20 de janeiro de 1976). Supõe-se que o
segundo tenha tido o mesmo destino, mas no seu caso não existem testemunhas.
Quando uma embarcação não dá mais sinais de vida ou que a chegada a uma predeterminada destinação não acontece em tempos razoáveis, o fato é publicado pela companhia Lloyd's, de Londres, e a embarcação em questão,
colocada na lista das desaparecidas.
O Aurigny, de 147 metros de comprimento
Foto: reprodução de cartão-postal, da coleção do autor
Antes da tragédia da Berge Vanga, o maior navio em termos de tonelagem a entrar nessa lista de desaparecidos era, até então, o General San Martin, de 9.589 tab, construído em 1918 com o nome de
Aurigny por conta da armadora Chargeurs Reunis (CR) para a Rota de Ouro e Prata (Brasil e Argentina).
O General San Martin zarpara de Buenos Aires, Argentina, em 28 de agosto de 1954, com destino ao porto de San Antonio, no Chile, via Estreito de Magalhães, na veste de simples cargueiro pertencente ao
governo da Argentina.
A seu bordo, 54 homens de tripulação, nenhum passageiro e cargas diversas, entre as quais 10 mil toneladas de trigo a granel, sacos de chá mate, latas de banha e fardos de lã, nada, portanto, que pudesse explodir
ou soltar-se ou rolar nos porões, cargas inofensivas, na melhor expressão da palavra.
Após uma rápida escala em Bahia Blanca, Argentina, o General San Martin atravessou sem problemas o estreito e, no dia 12 de setembro, penetrou, com prático (piloto portuário) a bordo, nos canais costeiros
que levam até o Golfo de Peñas. Algumas horas após, o prático desembarcou e o navio foi colocado em rota direta para San Antonio, onde, porém, nunca chegaria.
O General San Martin, ex-Aurigny, entrou, assim, na lenda do mar pela porta mais tenebrosa: a dos desaparecidos. Sem um SOS, sem nenhum rastro, sem sobreviventes.
Apesar das intensas buscas aéreas e marítimas, nem o navio, nem seus restos, nunca foram encontrados, ou o seu destino final conhecido, permanecendo até hoje na lista dos mistérios do mar.
O Aurigny havia iniciado sua vida útil logo após o término da Primeira Guerra Mundial, realizando viagem inaugural entre Le Havre (França) e Buenos Aires, com escalas intermediárias em portos da costa Leste
brasileira.
Fora encomendado em 1914 (antes da eclosão do conflito), junto a seu gêmeo Belle Isle, mas entregue somente após a conclusão das hostilidades.
Os dois navios eram equipados, cada um, com duas máquinas de expansão tríplice e cinco caldeiras, que forneceram 7.600 cavalos-vapor (cv) ao primeiro e 6.900 cv para o segundo.
Ambos, Aurigny e Belle Isle, foram os primeiros vapores da CR a serem entregues no imediato pós-guerra. Eram versões melhoradas dos transatlânticos da classe intermediária Ilhas, cuja série
havia se iniciado com a construção do Ceylan, em 1907, e continuado, antes do período bélico, com o aparecimento do Malte, do Ouessant e do Corse.
Após o lançamento do Aurigny e do Belle Isle, a série Ilhas prosseguiria com a construção de mais oito navios quase similares, para a Rota de Ouro e Prata. Todos possuíam instalações
frigorificadas para o transporte de alimentos perecíveis e eram dotados de grandes dormitórios para o transporte de emigrantes.
O desenho desta série pouco variou no tempo. Estes vapores intermediários tinham linhas simples e clássicas, com cinco decks (conveses), três dos quais de superestrutura, e três porões de carga, um dos quais
refrigerado.
Dotados de dois hélices, única chaminé centralizada, proas (frentes) retas e popas (rés) recurvadas, os navios da série Ilhas tornaram-se muito conhecidos nos portos de escala, levando as tradicionais cores
amarela e branca, com as famosas estrelas vermelhas nas chaminés.
O Belle Isle foi o primeiro do par a ser colocado na linha sul-americana, saindo de Le Havre para o Brasil e o Prata em setembro de 1918. Nesta linha permaneceu por bem 22 anos e sempre navegando por conta
da Chargeurs Reunis.
Em novembro de 1943, foi afundado e considerado irrecuperável numa das docas flutuantes do porto de Toulon (França), em conseqüência de pesado bombardeio aéreo aliado.
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O navio levou para o fundo do mar os tripulantes e o segredo da perda
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O Aurigny, como já vimos, teria vida útil mais longa de 11 anos, porém permanecera na rota para a América do Sul nos mesmos períodos de serviço que seu irmão gêmeo.
Neste longo espaço de tempo, ambos foram provisoriamente retirados da linha em meados de 1930 e desativados, no aguardo de que os ventos da Grande Depressão econômica amainassem. O par de vapores escalou
regularmente em Santos durante as duas décadas de serviço na Rota de Ouro e Prata.
Em setembro de 1939, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o Aurigny encontrava-se no porto de Buenos Aires, onde foi internado, visto a impossibilidade de voltar ao solo francês. Dois dias mais tarde, um
violento incêndio eclodiu a bordo, no que resultou o parcial afundamento numa das dársenas daquele porto.
A Chargeurs Reunis providenciou então a venda in situ do relito (resto) parcial - no qual o incêndio havia transformado o Aurigny - ao governo da nação platina.
As autoridades argentinas providenciaram então a recuperação do navio e sua reconstrução, dando-lhe em seguida o nome de General San Martin, homenagem ao herói revolucionário das guerras de independência.
Durante 12 anos, o General San Martin navegou entre portos argentinos ou para portos chilenos, fazendo praticamente viagens de cabotagem e sem esquemas de regularidade, registrado como pertencente à
Companhia de Navegação Geamar, até desaparecer para sempre no mês de setembro de 1954, em algum ponto a Norte do Golfo de Peñas, levando consigo, para o fundo do mar, seus tripulantes e o segredo de sua perda. |