O navio esteve algumas vezes no Porto de Santos, como em 22/1/79
Foto: Agência Reuter, publicada com a matéria
A atribulada carreira de um transatlântico
José Carlos Rossini
De Genebra
A armadora holandesa Rotterdamsche Lloyd (RL) foi estabelecida na Cidade e Porto de Roterdam em 15 de junho de 1883, com a finalidade de operar navios em linha regular entre a
Holanda (e seus países vizinhos) e as colônias holandesas do Oriente.
Inicialmente com cargueiros puros e, a partir de 1888, com navios de capacidade mista, a RL consolidou sua posição no mercado de fretes de e para a Batavia (atual Indonésia), as altas chaminés pintadas totalmente
de negro dos seus navios passando a ser um símbolo de regularidade e bons serviços nos portos de escala.
Tal presença nessa rota se consolidaria ao longo do tempo e, logo após o término da Primeira Guerra Mundial, a RL lançaria ao mar seu primeiro grande transatlântico de passageiros, o Patria, de 9.891
toneladas de arqueação bruta (tab), construído em 1919.
Outros o seguiriam, tal como o Slamat, de 1924, o Indrapoera, de 1925, o Sibajak, de 1928, o Baloeran, de 1930, e o Dempo, de 1934, todos eles com tonelagem superior às 10 mil
tab.
Em fins de fevereiro de 1938, a RL ordenou a construção de um navio de passageiros que seria então o maior de sua frota. Levaria o nome do fundador da empresa, ou seja, Willem Ruys.
Em janeiro de 1939, foram assentadas as primeiras traves da base do casco e as grandes forjas de aço do estaleiro começaram a produzir as suas chapas.
Nove meses mais tarde, eclodia na Europa o conflito armado que se expandiria pelos "quatro cantos" do globo; a Segunda Guerra Mundial passou como um furacão sobre os Países Baixos e a conclusão do Willem Ruys
foi adiada às calendas gregas.
Em princípios de 1946, com a paz restaurada na Europa, os trabalhos de construção deste transatlântico puderam ser recomeçados.
Por milagre, o furor da guerra não havia destruído nem o estaleiro, nem as primeiras formas do Willem Ruys. Em 17 de julho de 1946, seu casco foi lançado à água e quatro meses e meio depois a construção foi
terminada e o navio entregue à armadora.
Em 2 de dezembro, o Willem Ruys realizava a viagem inaugural entre Roterdam e Jacarta (Indonésia). Era então um navio de linhas compactas e agradáveis à vista, bem desenhadas em sua concepção pré-guerra, com
duas chaminés centralizadas, a de popa (ré) com altura inferior à de proa (frente), dando-lhe um aspecto moderno.
Possuía dois hélices e oito motores a diesel do tipo Sulzer, que permitiam desenvolver 22 nós (40,7 quilômetros horários) de velocidade de cruzeiro e 24 nós (44,4 quilômetros horários) em velocidade máxima. Tinha
193 metros de comprimento total e deslocava 21.120 toneladas de arqueação bruta.
|
Com a guerra, a conclusão do navio foi adiada às calendas gregas
|
|
O Willem Ruys permaneceu na rota para a Indonésia durante dez anos consecutivos, até dezembro de 1957. Foi então recolhido ao seu estaleiro construtor e recondicionado, antes de ser transferido, em maio de
1958, para a linha Roterdam-Nova Iorque (Holanda-Estados Unidos).
Seu novo emprego não durou muito e, após uma meia dúzia de viagens entre a Europa e o continente norte-americano, foi entregue ao Estaleiro Wilton-Fijennord para nova, desta vez extensiva, reforma.
O objetivo da RL era transformá-lo em um navio de primeira linha para a realização de uma nova linha marítima em torno do globo terrestre.
Ao sair do estaleiro, em Schiedam, no mês de fevereiro de 1959, o Willem Ruys tinha a nova capacidade de 23.114 tab e acomodações modernas para 247 passageiros em primeira classe e 770 em classe turística.
Fora dotado de estabilizadores Denny-Brown e de instalações de ar condicionado.
No dia 7 de março de 1959, o Willem Ruys iniciou serviço na ligação de volta ao mundo, saindo e voltando a Roterdam com escalas intermediárias de Oeste para Leste em Southampton (Inglaterra), Port Said, Suez
(Egito), Colombo (Sri Lanka), Cingapura (Cingapura), Sydney (Austrália), Wellington, Canal do Panamá, Port Everglades (Flórida, Estados Unidos), Bermudas (Caribe) e Southampton.
Nesta gigantesca rota, o Willem Ruys realizou 26 viagens no total, numa das quais também escalou em Nova Iorque.
Sua última saída de Rotterdam para um giro ao mundo ocorreu em outubro de 1963, com retorno no dia 22 de setembro.
Em abril de 1963, as armadoras holandesas Rotterdamsche Lloyd e S.M. Nederland foram fundidas numa única empresa, que levou o nome de Nedlloyd Lines.
Neste reordenamento estatutário-jurídico, decidiu-se o futuro do Willem Ruys: deveria ser vendido.
Foi o armador italiano Achille Lauro, originário de Nápoles, o autor da melhor oferta de compra e, assim, em janeiro de 1964, o transatlântico mudou de proprietário.
Junto ao Willem Ruys, a Lauro Line adquiriu também outro transatlântico holandês pertencente ao Grupo Nedlloyd. Tratava-se do Oranje, antiga propriedade da Nederland e que fora construído em 1939.
Passando para a bandeira da Itália e com o porto de registro em Nápoles, foram rebatizados, respectivamente, com os nomes de Achille Lauro e Angelina Lauro, homenagem ao proprietário e sua esposa.
Antes de serem utilizados pelos novos proprietários, ambos os navios teriam de sofrer reformas e, em julho de 1965, foram entregues aos estaleiros Cantieri Riuniti, de Palermo (Itália), para modernização.
|
Em agosto de 1965, a primeira tragédia: uma explosão a bordo
|
|
E 29 de agosto de 1965, a primeira tragédia acontece: enquanto se encontrava no estaleiro, ocorre uma explosão a bordo do Achille Lauro, seguida por um incêndio, que é rapidamente dominado. O resultado são
alguns operários feridos ou ligeiramente queimados e um considerável atraso nos trabalhos previstos.
Em março do ano seguinte, sai finalmente de Palermo, com seu casco pintado inteiramente de azul, superestrutura branca modificada com acréscimo de um enorme salão de festas envidraçado em redoma num arco de proa a
altas chaminés também de cor azul, onde se destacavam, em cada uma, a estrela branca de cinco pontas, símbolo da armadora.
Sua tonelagem fora aumentada para 23.629 toneladas e sua capacidade de passageiros modificada para acomodar 152 pessoas em primeira classe e 1.155 em classe turística, totalizando 1.307.
No dia 13 de abril de 1966, zarpa de Gênova, Itália, com destino à Austrália e Nova Zelândia, realizando sua primeira viagem de linha por conta da Lauro.
Permanece em serviço nessa rota até dezembro de 1972, com um único incidente de navegação, quando em 1971 colide com um pequeno barco pesqueiro italiano e afunda-o, provocando a morte de um de seus tripulantes.
Mas é o fogo o tradicional inimigo do "grande navio azul", como era conhecido e chamado pelos marinheiros napolitanos.
No ano seguinte ao da colisão, no mês de maio, quando se encontrava em Gênova, em doca seca para reparos de manutenção, um violento incêndio se declara a bordo, felizmente sem provocar vítimas ou feridos.
A partir de 1973, o transatlântico passa a realizar cruzeiros de luxo e é nessa época que escala algumas vezes em Santos, atracando sempre no cais do Armazém 16.
A série de incidentes continua em abril de 1975, quando colide no Estreito de Dardanelles (Turquia) com um navio mercante de transporte de gado, o Youssof Bada, que afunda imediatamente com a perda de uma
vida humana.
O outro grande transatlântico da Lauro Lines, o Angelina Lauro, já mencionado, foi também vítima do fogo quando realizava cruzeiro pelo Caribe. Em 30 de março de 1979, estava atracado em Charlotte Amalie,
Saint Thomas, nas Ilhas Virgens, quando um foco de incêndio surgiu na cozinha de popa, esta destinada aos tripulantes, e rapidamente se propagou pelo navio. Tal foi a ferocidade das chamas que, em menos de uma hora, todo o transatlântico queimava.
Acorreram em seu socorro diversos rebocadores armados de canhões de água e outras embarcações, despejando-se a bordo do Angelina Lauro milhares de toneladas de água, que o fizeram afundar nas águas profundas
da baía.
O navio adernou e continuou queimando por bem mais seis dias seguidos. Tal destruição rendia inútil qualquer tentativa de reconstrução e o transatlântico (ou o que dele restava) foi declarado perda total e
abandonado aos seguradores, contra pagamento da quantia de 6 milhões de libras esterlinas, valor pelo qual estava segurado. Afortunadamente, a maioria de seus passageiros e tripulantes encontrava-se em terra firme quando da eclosão do sinistro e
assim não houve vítimas a lamentar.
|
O neto de Achille Lauro suicidou-se aos 32 anos, por causas misteriosas
|
|
O "grande transatlântico azul", símbolo de uma cidade martirizada e sofredora (Nápoles), nome que leva na popa (ré) como porto de registro, é também vítima das circunstâncias negativas que o circundavam.
Por volta do início dos anos 80, a má sorte ronda em torno da família Lauro. O armador Achille, idoso, doente e cheio de dívidas, tenta ainda salvar as ruínas do seu passado império financeiro (no ápice da glória,
possuía, além de uma frota de navios, estações de rádio e televisão, dois times de futebol e fortuna imobiliária).
Seu neto, Achille ele também de nome, provável sucessor nos negócios, suicida-se em julho de 1981, com a idade de 32 anos, por causas misteriosas.
A família do patriarca se divide em guerra aberta, cada ramo tentando salvar-se do naufrágio e Achille Lauro, numa desesperada tentativa de evitar a falência, põe a leilão todos os seus bens particulares. Em vão!
|
O navio é salvo, mas para o idoso armador é o fim. Falece no início de 1982
|
|
Não bastasse essa dramática situação da empresa, o "grande transatlântico azul" é novamente vítima do fogo. No dia 2 de dezembro de 1981, gigantesco incêndio estoura a meia nau do navio, quando este se encontrava
navegando ao largo das Ilhas Canárias.
Passageiros evacuados, a tripulação consegue apagar as chamas com a ajuda de rebocadores vindos de Palma e Tenerife. O navio está danificado, mas salvo; porém, para o idoso armador é o fim. Ele falece no início de
1982.
Está gravada para sempre na memória a imagem alucinante de vários homens armados, correndo pelas pontes e salões do Achille Lauro, dando pontapés e ameaçando de morte os aterrorizados passageiros.
Estamos em outubro de 1985 e o cenário não é de cinema, bem sim o de uma ação armada pela Frente de Libertação da Palestina, cujos cinco homens invadem o transatlântico de armas em punho, quando este se encontrava
ao largo de Alexandria, no Egito.
O objetivo é relatado ao comandante Gerardo De Rosa: "Israel, libere 52 prisioneiros palestinos que detém, se não mandaremos aos ares o navio inteiro e seus 450 passageiros".
Para reforçar a ameaça, escolhem ao acaso um passageiro de passaporte americano e origem judaica, o sr. Klinghoffer, e o jogam ao mar, na sua cadeira de paraplégico.
O episódio do seqüestro do Achile Lauro ficaria famoso em nível internacional e seria o tema de um filme para a televisão, com o ator Burt Lancaster fazendo o triste papel de Leon Klinghoffer.
A armadora Lauro Line, após sua liquidação financeira, foi adquirida, nos primórdios desta década (N.E.: anos 1990), por um magnata italiano, radicado na Suíça, Gianluigi Aponte, e o
nome da empresa mudado para Starlauro.
Nápoles continuou a ser o porto de registro e o Achille Lauro, sempre pintado nas cores azul e branca, permaneceu fazendo cruzeiros de veraneio, ora no Mediterrâneo, ora no Oceano Índico, sem maiores
problemas ou incidentes a serem notados.
O navio italiano incendiou-se em 30/11 e afundou em 2/12/94
Foto: Agência Reuter, publicada com a matéria
O último cruzeiro do transatlântico constava nos catálogos da Starlauro e das principais agências de viagens há muito tempo. Saída prevista de Gênova, Itália, em 19 de novembro de 1994, com escalas em Haifa
(Israel) no dia 23, em Port Said (Egito) no dia seguinte, Suez, às portas do canal e antes de atravessá-lo em 25 e em Mahe (nas Ilhas Seychelles) em 2 de dezembro (ontem, segundo o programa dos catálogos) e chegada a Durban (África do Sul) no dia 9
deste mês, sexta-feira próxima (N.E.: esta parte da matéria foi publicada em 3/12/1994).
Para realizar essa viagem de alegria, sol e divertimentos, embarcaram 572 passageiros, a maioria em Gênova, outros poucos nos portos de escala seguintes.
Do total de passageiros, 214 eram de nacionalidade sul-africana, 150 eram alemães, o restante sendo composto de pessoas com diversos outros passaportes: britânicos, holandeses, italianos, suíços.
Para atender esse número de passageiros, havia a bordo uma tripulação de 408 pessoas, da qual mais de um quarto eram italianos.
São 3h59 de Greenwich Mean Time (GMT) – 1h59 de Brasília – de quarta-feira, dia 30 de novembro de 1994, quando de bordo do Achille Lauro é lançado o primeiro sinal de socorro na sigla SOS (socorro). O
comandante Giuseppe Orsi, de 56 anos, é um velho lobo-do-mar.
Tão logo recebeu em sua cabina a informação de que um incêndio eclodia na sala de máquinas, dera ordens a todo o dispositivo anti-incêndio de entrar em ação, na tentativa de dominar as chamas, antes que estas se
propagassem. Era pouco mais de meia-noite.
O sinal do Achille Lauro rebateu em Oslo e daí as autoridades alertaram os navios que se encontravam nas proximidades do sinistro.
As autoridades italianas foram avistadas pelo Centro Marítimo de Toulouse, no Sul da França. O ministro dos Transportes do governo italiano, Publio Fiori, ordena ao Centro das Capitanias dos Portos da Itália que
coordene todas as operações de salvamento e resgate de passageiros e tripulantes.
A Marinha dos Estados Unidos despacha, a pedido dos italianos, dois navios de guerra estacionados na base de Diego Suarez: o cruzador Gettysburg e a fragata Hallyburton.
Missão: recolher os náufragos que se encontram em condições de alojamento precárias no convés do petroleiro Hawaiian King.
Em terra firme, consulados e embaixadas italianas na Somália, no Quênia e nas Seychelles se movimentam, preparado o recebimento dos náufragos.
O governo italiano ordena o envio de dez aviões (um Boeing 707, dois C-130 e sete G-222) da Aeronáutica Militar da Itália para Mombasa (no Quênia), a fim de repatriar os passageiros e tripulantes do Achille
Lauro.
O comandante Orsi, recolhido juntamente com outras 48 pessoas a bordo do navio mercante grego Treasure Island, declara ao capitão deste, comandante Skapinakis, que o incêndio começou na sala de máquinas de
seu transatlântico.
São 6 horas GMT ou 10 horas locais (4 horas em Brasília) de sexta-feira, 2 de dezembro. O Achille Lauro, três dias após o eclodir do incêndio, ainda queima.
Adernado (inclinado) em cerca de 20 graus, apresenta dois grandes focos de fogo. Um à popa e outro a boreste (lado direito) do casco, a três quartos de ré. Este último foco parece ser o mais violento, tendo aberto
uma enorme cratera no casco e no ventre do navio.
Contra todas as previsões, o antigo navio permanece ainda flutuando. Parece que se obstina a permanecer vivo, foge ao destino que lhe indica o fundo do oceano como sua última etapa.
De Suez, partem dois rebocadores de alto-mar que, segundo a fórmula no cure - no pay (sem resgate não há pagamento), tentarão arrastá-lo até o porto mais próximo.
O Achille Lauro dispunha de dez divisões estanques transversais, com 19 portas estanques de deslize horizontal comandadas com sistema hidráulico da ponte de comando. O comandante Orsi mandou acioná-las tão
logo soube do incêndio.
O grande transatlântico azul pode flutuar com até dois de seus 11 compartimentos do casco inundados.
As cenas filmadas nas últimas horas não são indicadoras de um perigo de naufrágio iminente e o Achille Lauro continua a flutuar.
Até quando? Conseguirá o velho casco permanecer flutuando? Agüentarão as paredes e portas estanques?
De qualquer modo, parece certeza que mesmo que isto possa acontecer, dificilmente o "grande navio azul" poderá voltar a navegar majestoso no grande oceano azul. |