Arquitetura
Manter ou alterar
criticamente?
Polêmica sobre restauro
de monumentos tem quase dois séculos e ainda continua em aberto
Carlos Pimentel Mendes (*)
Se uma
edificação conta alguns séculos de idade, tendo passado
por várias transformações, nem todas devidamente documentadas,
e servindo a diferentes finalidades, como deve ser tratada? Recuperada
com base no seu projeto original? Pela forma que tinha no seu período
áureo? Completada a edificação, se estava inacabada?
Ou apenas conservadas as ruínas atuais?
Questões assim são
enfrentadas por arquitetos restauradores em todo o mundo, conforme avança
a conscientização pela necessidade de se preservar os cada
vez mais numerosos patrimônios da humanidade - jóias da arquitetura
de todas as épocas, em todos os países. Dela não escaparam
nem mesmo as torres gêmeas destruídas num ataque terrorista
em New York, em 2001: deveriam ser refeitas tal qual eram? Deveriam ser
preservadas as ruínas? Ou deveria ser construído um novo
conjunto, com referências ao antigo?
Arco de
Tito, restaurado em Roma em 1821: "conservar respeitando os antigos" Foto: divulgação
Toda essa polêmica, que há
décadas agita os arquitetos em inúmeras convenções
na Europa e nas Américas, está mais perto do leitor do que
possa parecer, como observa o arquiteto
Vitor Hugo Mori, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN). A restauração da Fortaleza da Barra Grande,
na Baixada Santista, por exemplo, arrastou-se por muitos anos, desde a
proposta pioneira de restauro do arquiteto Lúcio Costa.
Seguir as formas originais idealizadas
no século XVI por Giovanni Battista Antonelli? Refazer conforme
o relatório do engenheiro militar do brigadeiro João Massé
(feito no início do século XVIII), destruindo e alterando
quase todo o conjunto hoje existente? Assumir as modificações
feitas em meados do século XX pelo Círculo Militar? Apenas
limpar e manter as ruínas como estavam em fins do século
XX? Talvez até completar a obra interrompida em 1894 por falta de
recursos, completando as duas fachadas que faltaram?
Palavras estranhas como anastilose
(reunião de partes desmembradas de um monumento, restaurando o conjunto
original) e propostas de nomes respeitados entre os arquitetos, circulam
com desenvoltura nesse debate, todas defendidas por legiões de seguidores.
Saint-Front
de Perigueux é uma igreja reconstruída com base em moldes
de Constantinopla Foto: divulgação
Ruínas ou reconstrução?
– Parecem questões puramente filosóficas, mas podem alterar
profundamente o cenário das cidades e influenciar decisivamente
no comportamento de seus habitantes, tanto em Santos (às voltas
com o tombamento, a preservação
e o uso prático/atual de seu centro histórico) como em Roma,
Cartagena de las Índias, Berlim, Tróia com suas cidades superpostas,
New York com as suas torres derrubadas.
Das decisões dos arquitetos
também dependem arqueólogos e restauradores de obras artísticas
- ou melhor, há e precisa haver uma simbiose entre eles, já
que uma decisão de um arquiteto pode valorizar as obras de arte
existentes no cenário, ou sepultar de vez os resquícios de
eras passadas, pulverizados ao se revolver o local sem os devidos cuidados
que um arqueólogo teria.
Nas obras modernas, por exemplo,
usa-se deixar no piso e nas paredes pequenas janelas (os testemunhos
estratigráficos), mostrando as camadas escondidas sob a superfície.
Um exemplo pode ser visto no Museu José Bonifácio/Casa de
Martim Afonso, no centro de São Vicente, onde uma janela
na parede moderna permite ver como era a estrutura original. No restauro
da Estação Ferroviária
do Valongo, em Santos, descobriu-se
um piso em ladrilhos hidráulicos do século XIX, e isso alterou
o projeto da reforma, recuperando esse piso antigo em lugar de aplicar
materiais mais modernos.
Já nas ruínas
do Teatro Guarany, tratores destruíram
parte do seu interior, perdendo-se muita informação sobre
as formas internas, e ficou apenas em algum registro escrito a existência
de belas pinturas de Calixto em seu
teto, que aplicações de tinta posteriores, um incêndio
e a intempérie se encarregaram de destruir. Quanto à capela
da antiga Santa Casa, junto ao túnel,
a opção foi por apenas manter as ruínas remanescentes,
valorizadas por iluminação no entorno.
Restauração
da Catedral de São Marcos teve um movimento internacional contrário,
no século XIX Foto: divulgação
Conceitos – Entre a proposta
de restauração total e a da preservação total
das ruínas, os arquitetos restauradores - neste aspecto muito próximos
dos arqueólogos - debatem-se com uma série de conceitos contraditórios.
Um dos mais antigos foi apresentado por John Ruskin e William Morris, no
século XIX: para eles, é "impossível restaurar (...)
aquele espírito que se comunica através da mão do
artífice, não pode jamais voltar à vida". Em sua opinião,
as obras pertencem a quem as construiu e, em parte, a todas as gerações
humanas seguintes. Daí a criação do Movimento Anti-Restauração
em 1877 e da Sociedade para a Proteção de Antigas Edificações
(SPAB), liderando um movimento internacional contra a restauração
da catedral de São Marcos, em Veneza.
Apenas reparar, em vez de restaurar,
e prevenir, em lugar de remediar, são as idéias centrais
de Morris, que defendeu o conceito de "Patrimônios da Humanidade",
e que também pequenas igrejas paroquiais devem ser preservadas,
se sua demolição significar a retirada da alma de uma comunidade.
Defendeu ainda o uso do edifício como meio de preservá-lo.
Na França, Viollet-Le-Duc
defendeu o restauro moderno: "restaurar um monumento não é
apenas reconstruí-lo, repará-lo ou refazê-lo, mas restabelecer
um estado completo que pode jamais ter existido". Ele e seu discípulo
Paul Abadie materializaram essa tese na restauração de Saint-Front
de Perigueux, nos moldes da igreja dos Santos Apóstolos de Constantinopla,
sobre os restos de uma igreja típica da Aquitânia. Essa tese
- a do Restauro Estilístico - está representada no
Brasil pela obra da Cadeia de Atibaia, no interior paulista.
César Daly criticava essa
idéia, entendendo que o ideal era preservar apenas a forma antiga,
e mesmo nela, "nem o começo nem o fim, e sim exclusivamente o apogeu".
Um arqueólogo também deu seus palpites, em 1862: R. Bordeaux
colocou na pauta dos debates uma das bases do restauro moderno: "conservar
respeitando o antigo, sem mutilar os agregados que o tempo incorporou".
Que já fora incorporada na recuperação do Arco de
Tito em Roma, em 1821, por Valadier, distinguindo entre o antigo e o novo
no material e na técnica.
Camilo Boito reuniu estas idéias
contrárias numa teoria intermediária, favorável à
conservação dos acréscimos incorporados à obra
arquitetônica, comparando ainda um monumento à crosta terrestre,
com as várias camadas superpostas, cada uma representativa de um
conjunto de valores a ser respeitado. No Congresso de Engenheiros e Arquitetos
realizado em 1884 na capital italiana, firmam-se os princípios do
Restauro Arqueológico, aceitando-se apenas a consolidação
e recomposição das partes desmembradas e a conservação
para não ser preciso restaurar.
Em 1912, esse pensamento evolui com
a Teoria do Restauro Científico, de Gustavo Giovannoni, como sendo
a operação de tão-somente consolidar, recompor e valorizar
os traços restantes de um monumento. Em 1931, a Conferência
Internacional de Atenas normatiza tais critérios, dividindo o restauro
em trabalhos de consolidação, recomposição
das partes desmembradas, liberação de acréscimos sem
efetivo interesse, complementação de partes acessórias
para evitar a substituição, e ainda inovação
ou acréscimo de partes indispensáveis com concepção
moderna. Contra essa normatização se insurge o arquiteto
Ambrogio Annoni, para quem cada caso é um caso, a ser analisado
com bom senso.
Ruínas
generalizadas da Segunda Guerra liberaram os arquitetos para o Restauro
Crítico, como na
ponte de Castelvecchio, destruída pelos alemães Foto: divulgação
A destruição generalizada
de muitos centros históricos provocada pela Segunda Guerra Mundial
exigiu uma postura nova, o Restauro Crítico, exemplificada na reedificação
da ponte do Castelvecchio em Verona, que os alemães haviam destruído.
Mas, em 1964, durante um congresso em Veneza, os princípios do Restauro
Científico voltam a prevalecer, sendo ampliados e revistos na Carta
Italiana de Restauro de 1972, por Cesare Brandi. Para Brandi, deve-se "mirar
o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, quanto seja possível,
sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem
cancelar os traços da passagem da obra de arte no tempo".
O debate sobe de tom na Itália
dos anos 80, quando Paolo Marconi questiona se o momento presente não
tem autenticidade - seria um "falso histórico", indigno de se incorporar
à obra restaurada? Deve uma cidade se reduzir à cenografia
arqueológica, apenas um objeto a ser visto, alijando-se a época
presente do processo histórico de transformação? Na
Carta 1987 da Conservação e do Restauro de Objetos de Arte
e de Cultura, sintetiza-se tal questionamento na proposta de "fazer reentrar
a arquitetura em sua história". Um exemplo final está ali,
às margens do estuário santista: na antiga casa de pólvora
da fortaleza da Barra Grande, que por um tempo foi capela, no lugar do
centenário altar está um mosaico de Manabu Mabe, última
obra deste artista, no encerramento do século XX: o "Vento Vermelho",
que acrescenta à quadricentenária estrutura a expressão
da contemporaneidade.
(*) Carlos
Pimentel Mendes é jornalista, editor do jornal eletrônico
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