Política urbana
A cidade que
eu quero
Poder Legislativo perde seu
poder na reorganização dos municípios
Carlos Pimentel Mendes (*)
Ocorrem
em todo o Brasil os preparativos de cidades e estados para a participação
na 1ª Conferência Nacional das Cidades, a se realizar nos dias
23 a 26/10/2003, em Brasília. Coordenado pelo Ministério
das Cidades, tem como lema "Cidade para todos" seguindo o tema "Construindo
uma Política Democrática e Integrada para as Cidades". Participam:
os movimentos populares/sociais, as organizações do Terceiro
Setor (antes chamadas Organizações Não-Governamentais),
entidades acadêmicas e de pesquisas...
Um olhar atento sobre toda a divulgação
dessa conferência revela o detalhe: qual a participação
do Legislativo nesse trabalho? Pois é: vereadores "até" podem
participar, se fizerem inscrição prévia. Mas não
são eles justamente os representantes eleitos pelo povo para debater
os interesses da população e encaminhar os projetos de lei
que materializarão esses interesses?
Talvez a chave da resposta esteja
numa experiência de governos petistas gaúchos, particularmente
na capital Porto Alegre. Ali, a população se organizou para
defender seus interesses independentemente do Legislativo municipal e até
do Executivo local, participando de conselhos deliberativos e fiscalizadores
que definiam desde a oportunidade de se tapar um buraco numa rua até
a destinação das verbas no orçamento municipal.
A experiência teve resultados
altamente positivos em termos de participação popular e de
resultados obtidos, a despeito das brigas e ciumeiras causadas pela perda
de poder dos vereadores e do próprio prefeito, todos praticamente
submetidos (efetivamente) à vontade popular através das decisões
desses conselhos populares. As pressões foram (e são) inúmeras,
e no mínimo será interessante experiência sociológica
ver como o processo decorrerá, agora em nível nacional.
Armadilha – A organização
tripartite dos poderes a partir da República, ou quadripartite desde
nossa Independência (além do Legislativo, Executivo e Judiciário,
existia o poder Moderador, exercido pessoalmente pelo soberano, algo semelhante
ao poder que tem hoje a casa real inglesa), não tem conseguido acompanhar
adequadamente as mudanças na sociedade. Tanto que, em tempos recentes,
dizia-se existir um quarto e maior poder - o da Imprensa, representando
os olhos do povo na fiscalização dos outros três poderes.
Hoje, conforme inclusive uma piada que circula pela Internet, a distribuição
dos poderes mudou: o Legislativo legisla, o Executivo administra, o Judiciário
julga e o quarto poder, representado pelos comandantes do submundo criminoso
- executa.
No sistema tradicional de poderes,
o cidadão bem intencionado que consegue se eleger para um cargo
público cai numa armadilha. Primeiro, porque geralmente precisa
fazer composições e alianças para obter legenda e
ser escolhido pelo partido, e isto significa assumir uma série de
compromissos pré-eleitorais, que precisarão ser honrados
depois.
Caso
a sociedade participasse do processo político local de forma direta,
através de organizações do terceiro setor e outros
grupos, talvez Santos fosse uma cidade bem diferente do que é hoje
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No caso do vereador, além
dessa carga inicial terá também de negociar seguidamente
com seus pares, pois depende deles para a aprovação de seus
projetos. Isso significa fazer concessões a projetos que por vezes
afrontam suas convicções, para não dizer mais. A alternativa
é renunciar ou deixar a vida pública ao término do
mandato com uma imagem de inepto, pois, para o público, vereador
que não mostra serviço tem imagem ruim. É melhor visto
um vereador que aprova 200 projetos de concessão de homenagens a
representantes da sociedade local do que seu colega que batalhou quatro
anos para impedir alguma maracutaia com dinheiro público. Daí,
o nível nem sempre alto dos debates legislativos e da própria
administração pública.
Muitas vezes, em vez de um debate
técnico e isento, temos apenas o choque de interesses políticos,
talvez mesmo pessoais dos debatedores. E não adianta o cidadão
pressionar mais seus representantes, pois há todo um liame de acordos
de liderança, alianças partidárias e interesses que
transcende o mero debate da questão em si. O vereador deve obediência
ao partido, o prefeito precisa controlar as pressões em nome da
governabilidade (caso típico do debate santista sobre a demolição
de parte do cais dos pescadores).
Caso a sociedade participasse do
processo político local de forma direta, através de organizações
do terceiro setor e outros grupos, talvez Santos fosse uma cidade bem diferente
do que é hoje. Ou foi o leitor que decidiu, contra a própria
Constituição (Artigo 13º), que teríamos um Deck,
um Water Front, um Visitors Bureau, um Convention Center
e outras macaquices - cujas denominações em nada dignificam
uma cidade culta como Santos, transformando-a numa segunda Barra carioca,
que os próprios estadunidenses
ridicularizam por sua tentativa de parecer anglo-americana?
Deixando os nomes de lado: os santistas
já criticaram - e com eles os estudiosos da vida nas cidades - a
muralha de prédios na orla da praia, que elevou a temperatura média
local e tirou parte da ventilação. Recentemente, foi autorizado
o erguimento de uma nova muralha de concreto, com o dobro da altura, e
um impacto ainda não estimado sobre a qualidade de vida na cidade.
Mesmo sem falarmos nas mudanças climáticas (para pior) que
surgirão, há questões que mereceriam maior debate:
com esse adensamento populacional, como fica a infra-estrutura de serviços
públicos, abastecimento de água, trânsito etc.?
Oportunidade – A reorganização
da representatividade popular, como antevista na Conferência das
Cidades, não é uma panacéia, já que a representação
mais direta da população não garante por si só
resultados melhores que os obtidos pela já tradicional tripartição
de poderes.
Porém, pode significar uma
ruptura e um arejamento nos esquemas tradicionais de poder, em que seus
detentores se atribuíam privilégios para manipular essas
forças nem sempre de acordo com os melhores interesses da coletividade.
Pode significar ainda uma oportunidade para que surjam novas idéias
que tragam melhorias às cidades, idéias que não teriam
espaço para surgir dentro da organização tradicional
da representação popular, muitas vezes acorrentada aos próprios
rituais do exercício desse poder. Enfim, uma oportunidade para construirmos
as cidades que queremos, não as urbes que os grupos de poder definem
em reuniões por vezes realizadas com as portas fechadas.
O simples fato de sacudir as estruturas
pode ajudar a remover um pouco do pó acumulado, melhorar as articulações
já um tanto enferrujadas e dar novo vigor ao exercício da
máxima "poder do povo, para o povo, pelo povo".
(*) Carlos
Pimentel Mendes é jornalista, editor do jornal eletrônico
Novo Milênio. |