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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 03/10/02 18:10:13
Edição 105 - FEV/2002 

Engenharia 

Um metrô na Cidade das Águas

Projeto do Venice Rapido está estimado em US$ 150 milhões

Carlos Pimentel Mendes (*)

Na Cidade das Águas - seu apelido formal -, está sendo projetada uma ligação subterrânea entre a periferia e o centro, para facilitar o acesso dos habitantes e turistas, já que até hoje o centro de Veneza só é alcançado por lanchas e pelas tradicionais gôndolas, sendo proibida a circulação de automóveis. A idéia do Venecia Metro, ou Venice Rapido, é transportar 2.000 turistas por hora, entre terra firme (o aeroporto internacional Marco Polo) e a zona central na laguna (o antigo Arsenal, junto à praça de São Marcos). Para isso, seriam construídos dois túneis paralelos, 15 pés abaixo do fundo da laguna, um pouco abaixo dos pilotis que sustentam as construções da cidade.

Temem os conservacionistas que os túneis ameacem os edifícios antigos, já atingidos pelas inundações. Além disso, seria perdido o isolamento que, para muitos, é parte do mágico encanto da cidade (que atrai 12 milhões de turistas por ano). O prefeito Paolo Costa, usando seus poderes de emergência, busca recursos privados de US$ 150 milhões para custear o projeto. Seus partidários consideram que seria a solução dos problemas que ameaçam a sobrevivência de Veneza: as ondas levantadas pelas embarcações, que corroem o cimento dos palácios semi-destruídos, e o êxodo da população local, que em 40 anos diminuiu de 170 mil para 67 mil habitantes. 
A proposta do metrô para Veneza, em página da Internet removida após esta captura de tela
"Por quê Veneza não haveria de se modernizar, de se equiparar a cidades como Londres e Paris?", alega Michele Zuin, membro local do partido político Fuerza Italia, liderado pelo primeiro-ministro Sílvio Berlusconi. "Sem oportunidades de trabalho e com um sistema de transporte tão lento, não é de estranhar que esteja ficando sem residentes. Temos que tornar mais acessível a zona central. A resposta é o metrô".

Outra questão é o dano causado pelos turistas à cidade: a municipalidade já anunciou sua intenção de lhes aplicar um imposto. A expectativa é que o metrô possa substituir os vaporetti com casco de ferro, que transportam 250 mil passageiros/dia no Grande Canal. Os ambientalistas temem que se agravem as inundações: as marés altas já inundam a Praça de São Marcos quase 100 vezes por ano. Enzo Cuccimello, veneziano e professor de planejamento ambiental, advertiu que o metrô "poderia acelerar o afundamento da cidade, cujos edifícios estão construídos sobre milhões de pilotis cravados nas ilhas". Depois de 20 anos de estudos sobre as inundações, Berlusconi aprovou em 2001 um projeto para construir as obras de contenção. 

Página do projeto Sal.Ve que mostra os trabalhos realizados para salvar Veneza das crescentes inundações
Salvação – As atividades para a salvaguarda de Veneza e da laguna têm na Internet a página Sal.ve. Aliás, dizem os venezianos que para salvar das águas a Cidade das Águas bastaria colocar sob as construções todos os bilhões de liras (a recém-extinta moeda italiana) investidos em projetos, informes e contra-informes. Assim, a cidade se elevaria até um metro acima das águas...

As autoridades começaram a criar comissões e estudar a sério a forma de evitar o afundamento da Sereníssima (outro apelido de Veneza) quando, em 4/11/1966, a cidade amanheceu completamente inundada. O fenômeno da acqua alta, tradicional no inverno, foi alarmante naquele dia, quando o nível das águas subiu 1,5 metro, causando grandes danos econômicos e artísticos. Desde então, o plano mais ambicioso surgiu em 1984, mas só em 6/12/2001 as autoridades deram sinal verde. É a maior obra de infra-estrutura prevista para a Itália nos próximos anos, junto com a ponte que unirá Sicília à península, devendo terminar em 2009.

O plano salvador é chamado Mose (Moisés, em italiano), lembrando o autor do milagre bíblico da separação das águas no Mar Vermelho, e também por formar a sigla de Modulo Sperimentale Electromecanico. É baseado em uma série de 79 comportas móveis submergidas nas três entradas marítimas da laguna, para serem elevadas nos dias de maré muito alta, fechando o lago como se fosse uma banheira. 

E foi justamente esse um dos pontos controversos, pois os ecologistas explicam que a laguna e sua fauna vivem graças à troca periódica de água. A resposta dos defensores da idéia é que os diques só seriam usados quando absolutamente necessário: umas dez vezes por ano e durante poucas horas. O ministro do Meio-ambiente, Altero Matteoli, assegurou que o projeto tem todas as garantias ambientais. Entre as medidas adicionais estaria a restrição à navegação na laguna nesses dias excepcionais.

Na página Sal.Ve, os trabalhos de intervenção ambiental em Veneza
O assunto se complica ao se pensar que será cada vez mais habitual ter de recorrer às comportas. Veneza afunda porque o fundo da laguna vem sendo erodido e porque o nível do mar, devido ao aquecimento do planeta, é cada vez mais alto. Assim, o Consorcio Venecia Nuova, que coordena o projeto, pleiteia medidas complementares, como construir barreiras frente às três bocas da laguna para cortar a passagem do siroco, o vento sulino que empurra as marés, o que permitiria reduzi-las em 4 cm. Também são fundamentais as obras de elevação das bordas do centro histórico até a cota de 110 cm, iniciadas há anos, e o enchimento dos fundos da laguna, escavados demasiadamente. O mar invade sem obstáculos o pântano, sendo necessário recuperar o calado das três bocas da laguna, com uma elevação do solo e facilidades para acelerar a saída da água. 

Também será proibida a passagem de petroleiros que cruzam diariamente o lago até as indústrias estabelecidas em terra firme. O ministro de Infra-estrutura, Pietro Lunardi, anunciou essa medida em 6/12/2001, junto com outra proposta faraônica: a construção de uma ilha artificial, a 10 km da costa, que sirva de porto para os navios, e um conduto subterrâneo que a conecte ao litoral e contenha os dutos petrolíferos. O plano prevê incrementar a limpeza dos canais: uma sociedade mista, composta pela Prefeitura de Veneza e empresas privadas, já escavou nos últimos quatro anos mais de 22 km de canais, numa intervenção primordial para o saneamento da laguna.

A proposta das comportas contra maré alta, dentro do projeto Moses
A cidade – Capital da província homônima, a Noroeste do golfo de Veneza, na região mais ao Norte do Mar Adriático, Veneza está situada sobre um grande número de ilhas, numa laguna protegida do mar por cordões litorâneos (os lidi), com várias passagens naturais. Entre as ilhas, há 177 canais - que totalizam 45 km de vias, transpostas por cerca de 400 pontes -, interligando as várias partes da cidade, junto com ruas estreitas e tortuosas. Além das tradicionais gôndolas, há lanchas a motor para o transporte nos canais e lagunas.

Com 3 km de comprimento, 70 m de largura e 5,5 m de profundidade, o Grande Canal (que pode ser visto na Internet com uma webcam) divide a cidade em duas áreas: ao Norte, os distritos de Cannareggio, San Marco e Castello; ao Sul, os de Santa Croce, San Pablo, Dorsoduro e Giudecca. Nas margens desse canal estão palácios e igrejas mundialmente famosos por sua arquitetura e coleções de arte. A Praça de São Marcos (chamada apenas de Piazza, praça) é o centro da cidade, ligando-se ao continente por ferrovia e rodovia, que só atingem a periferia urbana; Veneza conta com linhas aéreas e seu porto é responsável pela quarta parte da carga marítima que entra na Itália. A água potável procede de San Ambrogio, distante 32 km.

Veneza está ameaçada pelo crescente aumento de sua taxa de subsidência (rebaixamento em relação ao nível das águas), que nos últimos 50 anos se elevou de 1 para 5 cm por década, e em mais 50 anos poderia se tornar inabitável, segundo relatório da Unesco, que tomou a seu cuidado a preservação e restauração da cidade, envidando importantes esforços nesse sentido junto com o governo italiano.

Webcam mostra em tempo real imagens do Grande Canal de Veneza
História – No Baixo Império Romano, a região das lagunas tinha pequena população independente vivendo da pesca e da exploração do sal e era freqüentada também por habitantes de Ravenna, Altinum e Aquiléia, que lá mantinham ancoradouros e comércio costeiro. 

No século V, com as invasões bárbaras, habitantes das vizinhanças se refugiaram nas ilhotas, vivendo em casas semelhantes a "ninhos de pássaros aquáticos", segundo um historiador da época, Flavius Magnus Aurelius Cassiodoro Senator. A invasão longobarda em 568 levou ao aumento da população veneziana, gerando a necessidade de reforço do solo, diques, escoadouros etc. 

Devido às relações contínuas com Bizâncio, a região das lagunas ficou politicamente muito ligada ao império oriental. Depois de muitos conflitos políticos, surgiu no século VIII uma nova forma de governo, o dogato (ducado), que ganhou força com a cada vez maior afirmação do poderio marítimo internacional de Veneza nos séculos seguintes. 

Com a criação da rota marítima portuguesa para as Índias, esse poderio começou a decrescer, e no final do século XVI Veneza se transformou em importante centro de fabricação de tecidos de luxo. No século XVIII, converteu-se no maior centro de diversões da Europa, com seu carnaval de seis meses. A República de Veneza terminou com a chegada de Napoleão, sendo alternadamente transferida para os governos austríaco e francês, até que em 1866 foi incorporada definitivamente à Itália unificada.

(*) Carlos Pimentel Mendes é jornalista, editor do jornal eletrônico Novo Milênio.