Habitação
Só o dilúvio resolve?
Nem Noé conseguiria reconstruir a Arca no Brasil atual
Carlos Pimentel Mendes (*)
Conta uma
piada que circula pela Internet: se Deus ordenasse a Noé a reconstrução
de sua famosa arca, ante um iminente segundo Dilúvio Universal,
todos correriam o risco de se afogar. Noé não poderia cortar
a madeira, pois as áreas de preservação ambiental
não podem ser alteradas; não poderia embarcar os casais de
animais devido à legislação que protege a fauna; nem
poderia citar o dilúvio previsto, pois teria de apresentar um relatório
de impacto ambiental sobre as intenções divinas de alagar
o mundo. Mas, Deus compreendeu as razões de Noé e cancelou
o novo dilúvio: não seria necessária uma nova calamidade,
já bastava o cipoal de leis que impede a execução
de qualquer coisa no Brasil.
Exageros à parte, afinal se trata
de uma piada, o fato é que o “cinturão dos excluídos”
cada vez mais ameaça as cidades: é a favelização
que avança, indiferente à legislação ambiental,
ao planejamento urbano, até mesmo aos riscos de desabamentos e incêndios
que surgem pela ocupação desordenada das encostas dos morros,
pela proximidade excessiva entre as casas de madeira. Nesse ponto da questão,
nem vale mais mencionar os problemas de degradação humana
e ambiental, doenças e marginalidade.
Terra da Caridade e da Liberdade,
nem mesmo esse lema inscrito em latim tem impedido as pessoas menos favorecidas
de compreender que, por pior que seja sua condição pessoal
de vida, em Santos terão mais oportunidades de sobreviver. Conseqüência
imediata: as correntes migratórias que deságuam na capital
paulista logo tomam o rumo serra abaixo. Afinal, o povo santista é
benemerente, o clima é bom, as praias sempre servem para um banho
e como diversão... e, tão perto do maior pólo econômico
brasileiro (a capital paulista), de parques industriais e portos, sempre
há de aparecer algum trabalho...
Sem espaço – Começam
por aí as dores de cabeça dos planejadores urbanos na Baixada
Santista. Onde instalar essa população que chega? A maior
parte das áreas não habitadas é constituída
por mangues, preservados pela legislação ambiental. Que fique
claro: nada contra a preservação ambiental, muito pelo contrário.
Ela porém não pode ficar desacompanhada de outras medidas
relacionadas à preservação humana e de suas condições
de vida. Bem, sem áreas livres nos limites dos municípios,
restam as áreas urbanas, supervalorizadas pelo crescimento vertical
das cidades, o que inviabiliza a construção de unidades habitacionais
de baixo custo.
Sim, existem projetos excelentes
sendo testados Brasil afora, em que o mutirão de operários
reduz praticamente a zero o custo de mão-de-obra, o uso de materiais
de construção inovadores permite construir as casas a custos
mínimos. O problema é o custo da terra, por si só
inviabilizadora dos projetos sociais. Ainda mais quando os sistemas financeiros
oficiais, que deveriam apoiar a realização de projetos habitacionais
para a população de baixa renda, acabam servindo apenas como
fonte de dinheiro barato para pessoas de classe média-alta financiarem
suas moradas de luxo.
Assim, sem solução
na esfera municipal ou metropolitana, o problema da habitação
precisaria ser tratado em níveis superiores do Executivo e do Legislativo.
E de forma urgente, pois a cada ano se agrava, com o aumento das favelas,
do número de casebres praticamente pendurados nas encostas dos morros,
aumentando a preocupação das autoridades e da população
com o risco de tragédias cada vez maior. Não será
preciso um dilúvio universal, bastam as chuvas de verão para
que tenhamos situações até mesmo de calamidade pública
no chamado “cinturão dos excluídos” que cerca as cidades
e já avança pelo meio delas.
(*) Carlos
Pimentel Mendes é editor do jornal eletrônico Novo
Milênio. |