Entrevista:
Edna Maria Alessio de Aguiar
“Nossa língua tem que ser valorizada”
Da Reportagem
Quem não se lembra da Greenville brasileira? Na novela A Indomada,
da Rede Globo, muitos dos personagens usavam termos em inglês com
tanta frequência que eles já faziam parte de seu vocabulário
usual. Guardadas as proporções, a situação
não é muito diferente na vida real.
Palavras que antes eram aportuguesadas já são admitidas
como integrantes da língua portuguesa. Quem não é
íntimo da informática, talvez não saiba o que é
um mouse. E no comércio? Em épocas de promoções,
os descontos dão lugar aos termos como 50% off ou às faixas
em que os lojistas anunciam liquidações como se estivessem
em Nova Iorque: ‘‘On sale’’.
Um amplo movimento começa a surgir em todo o País
em defesa da língua portuguesa, a língua-mãe do Brasil
e de outros seis países (Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau,
Cabo Verde e São Tomé e Príncipe).
Para a professora de língua portuguesa da Faculdade de
Comunicação da Universidade Católica de Santos (UniSantos),
Edna Maria Alessio de Aguiar, proteger o bom português das influências
estrangeiras é fundamental para preservar a cidadania do povo brasileiro.
Ela lamenta que a Academia Brasileira de Letras não seja
mais tão rigorosa na hora de incluir novas palavras nos dicionários,
optando por mantê-las em sua língua de origem. Edna argumenta
que, em Portugal, mouse — aquele equipamento indispensável nos computadores
— é chamado de rato, na mais fiel tradução do inglês.
O deputado federal Aldo Rebelo (PC do B) apresentou um projeto
de lei na Câmara dos Deputados, no ano passado, com o objetivo de
fazer a promoção, a proteção, a defesa e o
uso da língua portuguesa, como o único idioma para a expressão
oral, escrita, audiovisual e eletrônica no Brasil.
O projeto de lei chega a estabelecer multas que variam entre
1.300 e 13 mil Ufirs (de R$ 1.383,33 a R$ 13.833,30) para quem descumprir
a sugerida lei. Depois da iniciativa de Rebelo, a deputada Mariângela
Duarte (PT), que é professora de língua portuguesa e literaturas
portuguesa e brasileira, apresentou projeto semelhante na Assembléia
Legislativa.
A dúvida que fica é se o brasileiro se acostumaria
a chamar os shoppings centers de centros comerciais e por aí em
diante.
Na sua justificativa para a apresentação do projeto
de lei, Rebelo diz que o País está assistindo a uma descaracterização
de sua língua diante da grande ‘‘invasão indiscriminada e
desnecessária de estrangeirismos como holding, recall, franchise,
coffe-break, self-service’’. O deputado critica também o aportuguesamento
de palavras como printar e startar, que são derivadas dos termos
ingleses print e start, que significam imprimir e começar.
‘‘É sempre válido qualquer movimento de resgate
da Língua Portuguesa para que ela seja usada da forma mais correta
sem tantas invasões’’, apóia a professora Edna.
A Tribuna — Um movimento em defesa da língua portuguesa
está sendo desencadeado. O que é isso?
Edna Maria Alessio de Aguiar — Esse movimento não é
só brasileiro. Todos os países estão preocupados com
a linguagem. Isto na França já existe desde o século
17 quando o cardeal Richelieu criou a academia francesa com a finalidade
do controle da língua. Até hoje a academia se responsabiliza
por todas as palavras que vão fazer parte da língua. E essas
palavras passam por um crivo e usam a pronúncia francesa. Outro
dia eu estava lendo uma revista francesa que mostrava a preocupação
dos alemães com o uso da língua. Eles querem deixar de assinar
um acordo simplesmente porque os documentos não vêm em alemão.
O Bill Clinton (presidente dos Estados Unidos) está preocupado com
as invasões da língua de Shakespeare. Ele diz que a língua
está sendo invadida por jargões e ele está exigindo
que até 2002 todos os documentos oficiais eliminem essas palavras
que não são compreendidas por todas as pessoas. Se estes
países fazem esse movimento por que nós não podemos
fazer?
AT — No Brasil, isto começou há quanto tempo?
Edna — De uns quatro ou cinco anos para cá a gente vê
que existe uma preocupação. Tanto que vários professores
aparecem em jornais, revistas, já chamando a atenção
para a língua portuguesa. Então, esta preocupação
não é nova. Antes ela estava restrita aos professores de
língua portuguesa e agora já é um movimento que está
se expandindo. Inclusive há um projeto de lei do deputado Aldo Rebelo
(PC do B) neste sentido.
AT — Fala-se muito mal o português?
Edna — Eu acho que se fala mal o português no Brasil por
desconhecimento da língua e por desleixo. A gente não tem
tanto cuidado ao usar a língua portuguesa. Talvez porque as pessoas
menosprezem a língua e achem muito mais bonito usar um termo estrangeiro
do que um termo legitimamente português ou legitimado, como acontecia
antigamente. Nós temos no nosso dicionário várias
palavras de outras origens como do francês, do inglês, do árabe,
do alemão, mas elas foram aportuguesadas tanto na grafia quanto
na pronúncia.
AT — As palavras provenientes do inglês não são
mais aportuguesadas.
Edna — Agora. Os novos dicionários saíram com um
enorme número de palavras sem nenhuma adaptação. Elas
foram colocadas nos dicionários na forma original. Isto é
um atentado à língua portuguesa.
AT — Sem xenofobia...
Edna — Eu de maneira nenhuma seria xenófoba até
porque sou professora de literatura francesa. Mas eu acho que isso passa
pela cidadania. As pessoas vão perceber que o uso correto da nossa
língua vai nos trazer um respeito maior pela nossa pátria,
pelo nosso País e pela nossa cultura. A nossa língua não
é tão difícil e nem é mais pobre que as outras.
Muito pelo contrário, é uma língua riquíssima.
Nós temos condições de dar nomes para todas as coisas
e adaptar palavras estrangeiras para a nossa língua.
AT — Este processo de deturpação de palavras acontece
nos outros seis países do mundo onde se fala o português?
Edna — Não. Em Portugal, por exemplo, isto não
acontece. Eles não dizem mouse, dizem rato mesmo. Eles não
dizem site, dizem sítio. Vão sempre aportuguesando. Esta
deturpação acontece principalmente no Brasil.
AT — Por que aqui acontece de forma tão intensa?
Edna — Talvez pela necessidade que o brasileiro tem de se mostrar
e de se aproximar dos Estados Unidos. A vergonha do próprio país,
o desejo de ser um outro cidadão talvez tenha influenciado na escolha
do brasileiro. Essa transformação aconteceu paulatinamente
desde que começamos a perder a consciência e o amor pelo próprio
país. Achamos que amor pelo país era nacionalismo, patriotada
e não patriotismo.
AT — Quais os riscos que isto traz?
Edna — No momento em que a gente perde o domínio da linguagem
acaba perdendo a força. Foi o que aconteceu com o Império
Romano. No momento em que o Império Romano cresceu tanto e passou
a não dominar a linguagem dos soldados, eles passaram a receber
muito mais influência do povo dominado do que de Roma. Este é
um fator que a gente deve levar em conta.
AT — Em pouco tempo brasileiros que vivem no interior, na zona
rural, não vão falar a mesma língua que a população
de grandes centros urbanos...
Edna — A língua sempre foi o fator de unidade do Brasil
e nós nos orgulhávamos disso. Agora se percebe que existem
muitas diferenças entre o falar do cidadão urbano e do cidadão
do campo. Porque o cidadão da cidade é muito mais invadido
por termos de outras origens durante todo o tempo, seja nas lojas, supermercados,
nos shoppings, nos jornais. O uso da língua inglesa está
muito intensa.
AT — A sra. acha preocupante chegar a uma loja onde o desconto
é dito como 50% off?
Edna — Sim. Daqui a pouco vamos ter um número muito grande
de palavras na nossa língua de origens diversas. Uma palavra passa
a fazer parte do dicionário no momento em que aparece em locais
públicos e na mídia. No momento em que ela se torna frequente
ela tem possibilidade de entrar para o dicionário ou até
para o vocabulário ortográfico, que é o que rege a
língua portuguesa. Este vocabulário precisa de atualização
que é feita pela Academia Brasileira de Letras.
AT — Então não está havendo rigor por parte
da academia?
Edna — Este rigor para o controle das palavras está desaparecendo.
AT — A globalização e a Internet também
contribuem para esta mudança?
Edna — É. Mas isto tem que ser visto com cuidado. O que
se vê nos outros países é que eles querem a globalização
científica e econômica e não a cultural e a linguística.
Os países da Europa estão se munindo de elementos para se
prevenir contra essa globalização cultural.
AT — Em função deste movimento, o brasileiro pode
tomar consciência da sua cidadania?
Edna — Seria uma boa hora para começar a fazer alguma
coisa concreta. Este movimento deve ser apolítico, que vise realmente
a língua portuguesa e que ela possa vir a ser respeitada como ela
sempre foi.
AT — Paralelamente a estes movimentos, o que precisa ser feito
na educação brasileira para preservar o bom português?
Edna — Eu acho que isto tem que vir de todos os lados. Além
da escola, temos que fazer com que os jornais, as revistas e a mídia
de um modo geral passem a usar preferencialmente a língua portuguesa,
evitando os anglicismos, os galicismos e outros. A nossa língua
tem que ser valorizada. Temos que mostar para as crianças, aos adolescentes
e à população o quanto ela é rica.
AT — Como fazer com os termos técnicos que são
usados na informática, por exemplo?
Edna — Se nós prestarmos atenção, vamos
ver que palavras que são usadas na computação e nas
áreas técnicas e científicas podem ser incorporadas.
E elas são. Mas devem ser anexadas ao português de forma coerente,
adaptando-as aos padrões da língua portuguesa, tanto na fala
quanto na escrita, ou seja, na pronúncia e na ortografia.
AT — Não teríamos print nos computadores, mas o
imprimir...
Edna — Mesmo que exista o print você deve usar a palavra
imprimir. Por que nós temos que usar a palavra mouse se outros países,
até Portugal, usam rato? Temos preconceito contra a palavra rato?
E mais: se você pronuncia uma palavra de outra origem errado as pessoas
acham que você é ignorante e não que está apenas
preservando a sua língua. Por que shopping e não centro de
compras ou comercial?
AT — As gírias também agridem a língua?
Edna — Temos não apenas as gírias regionais como
as de faixas etárias e as profissionais. A gíria continua
sem fazer parte do vocabulário ortográfico por um bom tempo.
Só depois de muito aparecerem na linguagem coloquial é que
elas passam a fazer parte da língua. Hoje o que a gente vê
é que as pessoas não sabem se comunicar de outra forma. E
isso é prejudicial porque o controle da língua materna é
imprescindível para que a gente possa até governar bem o
país, para que todos se entendam de forma clara.
AT — O ensino da língua portuguesa no Brasil é
eficiente?
Edna — Eu acho que precisava haver uma reforma no ensino da língua
portuguesa, adaptando-a mais para a realidade. Precisamos fazer com que
o aluno perceba que o uso da língua é essencial para ele,
não para fazer prova, mas para que ele possa entender tudo que o
cerca. Porque se ele não falar bem a língua portuguesa, se
ele não escrever bem, se não ler bem, ele terá dificuldades
de ler e entender as outras matérias. Uma das coisas que os professores
mais reclamam é que os alunos não sabem ler e compreender
os enunciados das provas. Não entendem a própria língua
portuguesa.
AT — Quando o ensino do latim ainda existia a situação
era melhor?
Edna — Faz bastante falta porque o latim ensinava a lógica.
A gramática é uma coisa lógica. O fato de se ensinar
análise sintática não é para saber que aquilo
é sujeito ou objeto indireto. É para na hora de ler e escrever
você saber que aquela palavra que está ali ela domina o verbo.
Você tem que saber que preposição se deve usar porque
o seu uso incorreto altera todo o sentido do que você quer dizer.
Uma vírgula malcolocada faz com que a sua frase fique completamente
diferente.
AT — Dê alguns exemplos de palavras que incomodam?
Edna — O célebre ‘‘a nível de’’. Outra coisa que
incomoda é ver pessoas que têm um grau de conhecimento e até
uma certa formação e falam ‘‘para mim fazer’’. Isto é
uma coisa que incomoda muito.
AT — Mas ninguém gosta de ser corrigido...
Edna — Não. As pessoas se ofendem com a correção.
Às vezes o que a gente pode fazer é procurar repetir o que
algumas pessoas disseram errado repetindo de forma correta, sem chamar
atenção para o erro, mas fazendo com que elas percebam que
a forma correta não é aquela. |