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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa
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NOSSO IDIOMA
IBGE registrará os idiomas do Brasil
Matéria publicada no jornal Folha de São
Paulo, no caderno Mais! da edição de 12 de julho de 2009, nas páginas 8 a 10:
Criança nada em rio
da terra indígena Raposa/Serra do Sol (Roraima)
Foto: Marlene Bergamo -
10 de dezembro de 2008/Folha Imagem, publicada com a matéria
+(s)ociedade
Vozes indígenas
Pela primeira vez, IBGE fará o levantamento de todas as línguas
faladas no País; para cientistas sociais, pergunta sobre o idioma dos entrevistados no censo de 2010 reflete mudanças na
sociedade brasileira e em sua identidade, cada vez menos "monoglota, católica, mestiça, heterossexual e cordial"
João Paulo Gondim/José Orenstein [*]
Colaboração para a Folha
Em 2010, o Brasil saberá pela primeira vez na sua história o número
oficial de línguas indígenas faladas em seu território. No Censo a ser realizado no ano que vem pelo IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística), um quesito específico vai levantar essa informação.
Estima-se que no país sejam faladas cerca de 220 línguas além do português. Dessas, cerca de 190 são indígenas e
as demais vieram com imigrantes ao longo dos séculos 19 e 20.
Duas pesquisas piloto já foram feitas entre julho e novembro de 2008, e em setembro deste ano um Censo
experimental ocorrerá em Rio Claro (SP) para testar, entre outras coisas, o novo quesito lingüístico. Quando o entrevistado pelo
Censo do próximo ano declarar-se indígena, serão feitas perguntas sobre sua língua.
É um passo importante para acompanhar o processo de afirmação da diversidade brasileira, na avaliação do
antropólogo Otávio Velho, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Trata-se de aceitar cada vez mais o Brasil como um
país plural formado por muitos grupos que possuem sua própria identidade; é um país onde a interpluralidade predomina".
A última vez em que foram produzidos dados oficiais sobre os idiomas no país foi em 1950. O objetivo daquela
pesquisa era ter um controle sobre os imigrantes que viviam no Brasil, em razão da Segunda Guerra Mundial (1939-45).
Na época, não se falava de pluralismo ou multiculturalismo, tampouco se valorizavam línguas diferentes do
português. Pensava-se num pais monoglota, católico, mestiço, heterossexual e cordial.
Agora, a situação é diferente. Segundo o professor de história da UFRJ Manolo Florentino, a redemocratização
pós-ditadura (1964-85) e o novo arcabouço político-jurídico implantado com a Constituição de 1988 criaram "instrumentos que
oferecem vantagens efetivas àqueles que se auto-definem como indígenas: o acesso à terra, por exemplo".
Um dispositivo constitucional, porém, "não é nada se você não tem uma luta social para implementá-lo", argumenta
o professor de Filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e colunista da Folha, Marcos Nobre.
Os conflitos recentes na demarcação das terras de Raposa/Serra do Sol, em Roraima, são exemplos de que os
índios, com suas terras, costumes e cultura, "ainda são vistos como um risco à integridade da nação por muita gente".
O processo de auto-afirmação indígena se segue a movimentos de afirmação racial, ao crescimento no número e na
visibilidade de evangélicos e à organização dos homossexuais na luta por seus direitos. Nesse período, os indígenas foram
ganhando espaço e se fizeram ouvir em suas reivindicações.
"Seria muito estranho imaginar um Brasil imóvel e hermético, sobretudo num mundo globalizado", diz Florentino.
Para Marcos Nobre, trata-se de um processo de democratização geral da sociedade. "Há uma aliança de movimentos
sociais distintos, mas com objetivos muito parecidos. Da mesma forma que os homossexuais, as populações indígenas querem ter
reconhecida como digna sua forma de vida".
Finalmente "há um reconhecimento por parte do Estado da diversidade lingüística e cultural, mas que é fruto de
uma conquista, de pelo menos 20 anos de lutas", analisa a lingüista Bruna Franchetto, do Museu Nacional da UFRJ.
O levantamento dos idiomas pelo IBGE foi sugestão do Grupo de Trabalho sobre Diversidade Lingüística, liderado
pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Após reuniões em 2006 e 2007, o grupo de trabalho propôs
uma série de ações para a valorização das línguas no Brasil. Com a realização do inventário nacional, espera-se transformar os
idiomas em patrimônio imaterial.
"Com a perda da diversidade lingüística, perde-se a diversidade cultural e, conseqüentemente, perde-se muito da
criatividade humana", afirma o lingüista da UnB (Universidade de Brasília) Aryon Rodrigues, que é um dos pioneiros da pesquisa
de línguas indígenas no Brasil e participou do grupo de trabalho do Iphan.
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"Trata-se de aceitar cada vez mais o Brasil
como um país plural",
diz Otávio Velho |
"Há vantagens para quem se diz índio, como
o acesso à terra",
afirma Manolo Florentino |
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Outras fontes - Lingüistas e missionários vêm mapeando a situação das línguas no Brasil, no vácuo das
informações oficiais sobre o assunto. Além da lista elaborada pelo lingüista Aryon Rodrigues, há duas outras fontes para o
quadro geral lingüístico do país.
Em fevereiro deste ano, a Unesco lançou um atlas de línguas ameaçadas de extinção em todo o mundo. Só no Brasil
foram contabilizados 190 idiomas, com graus variados de risco de desaparecimento. Os dados foram reunidos a partir de uma
compilação de pesquisas anteriores feitas por diversos lingüistas, e que por isso muitas vezes são irregulares.
Bruna Franchetto e Denny Moore, lingüista do Museu Paraense Emilio Goeldi, lideraram a compilação no Brasil, que
classificou 45 línguas como em risco crítico de extinção.
Também neste ano, em junho, foi lançada a pesquisa Ethnologue, feita pelo SIL (Summer Institute of Linguistics)
- uma organização cristã que mapeia línguas pelo mundo visando à tradução da Bíblia. O Brasil é um dos principais focos de
atuação dos missionários, que, em muitos casos, são também lingüistas.
Muitos acadêmicos, no entanto, criticam os métodos do SIL por interferirem diretamente na cultura original dos
índios.
[* ] Colaboraram Flávia Martin, Luiza Bandeira e Vitor Moreno. Os autores participaram da
47ª turma do programa de treinamento da Folha, que teve patrocínio de Philip Morris Brasil, Odebrecht e OI.
Vale a pena salvar
idiomas?
Hélio Schwartsman
Da equipe de articulistas
É relativamente fácil mobilizar uma multidão para salvar as
baleias; mais difícil é reunir alguns gatos pingados pela preservação de bichos pouco simpáticos, como a minhoca branca (fimoscolex
sporadochaetus), que pode já ter desaparecido; o verdadeiro desafio, entretanto, é arregimentar gente para conservar um
idioma.
O Brasil é um dos países campeões em línguas ameaçadas de extinção. A crer nas estimativas de Tove
Skutnabb-Knagas, com 219 idiomas, somos a oitava nação mais lingüisticamente diversa do planeta, ficando atrás apenas de
Papua-Nova Guiné (850), Indonésia (670), Nigéria (410), Índia (380), Camarões (270), Austrália (250) e México (240).
Não por acaso, as línguas faladas por pequenos grupos indígenas em áreas tropicais são as que correm maiores
riscos, a exemplo do que se dá com espécies animais e vegetais. As pressões econômicas que derrubam florestas são as mesmas que
rompem o isolamento cultural de índios e os levam a fixar-se em áreas urbanas, adotando idiomas majoritários como o português.
No plano global, acredita-se que existam em torno de 6.500 línguas. Elas podem ser classificadas em três grandes
grupos em relação a suas perspectivas de sobrevivência. São chamadas de "moribundas" quando já não são aprendidas pelas
crianças. Estima-se que de 20% a 50% estejam nessa situação. Diz-se que estão "ameaçadas" quando se encontram em vias de deixar
de ser aprendidas por jovens. E são consideradas "seguras" quando não se enquadram em nenhuma das categorias anteriores. Só 10%
dos idiomas são robustos o bastante para se encaixar na última definição; 90% não sobreviverão além de 2100.
A iniciativa do IBGE de promover o recenseamento lingüístico tem o mérito de mapear, para além de chutes e
estimativas, os idiomas existentes no Brasil e o grau de ameaça que paira sobre cada um.
A questão é se vale a pena tentar salvar idiomas ou se o processo de concentração lingüística é inexorável. Na
última hipótese, só o que nos restaria fazer é colecionar o maior número possível de registros dessas línguas, para que elas não
se percam inteiramente. Cada idioma, afinal, ao revelar como um grupo de indivíduos pensa e hierarquiza o mundo, é uma janela
para a natureza humana. |
O então presidente
Getúlio Vargas encontra comissão de índios, em 1954
Foto: acervo do jornal
Ultima Hora - 22 de janeiro de 1954, publicada com a matéria
O patrimônio da
diferença
Para antropóloga, história do País revela sucessivas tentativas de
negação da existência física e cultura dos índios
Manuela Carneiro da Cunha [*]
Especial para a Folha
Há um grande divisor de águas na maneira de se perceberem os
índios. Até muito recentemente - e ainda existem resquícios felizmente cada vez mais isolados dessa visão - entendia-se que os
índios estavam aí como resquício do passado e destinados a desaparecer física e culturalmente.
A partir sobretudo do final da década de 1980, percebeu-se que os índios estavam aqui para ficar, e que faziam
parte do futuro do Brasil.
As variações sobre esses temas são muitas: na colônia, procurava-se evangelizar os índios, escravizá-los ou pelo
menos transformá-los em trabalhadores braçais, em suma incorporá-los por baixo à sociedade colonial.
Morreram nos aldeamentos aos milhares, em poucos anos, de causas então desconhecidas. Uma explicação teórica a
essa mortandade chegou no final do século 18: biologicamente, afirmou-se com De Pauw, o Novo Mundo era um local de senescência
precoce, em que não havia grandes mamíferos como na África e onde a civilização não podia prosperar porque a humanidade era
acometida de prematura velhice antes de poder atingir a plena maturidade.
O desaparecimento dos índios se tornava assim, pela primeira vez, um destino biológico. Quase um século mais
tarde, o darwinismo social explicava pela seleção natural o declínio populacional dos índios sem aparentemente atentar para as
guerras movidas nesse período aos índios em todas as Américas para controle das terras.
Outra vertente de programas de desaparecimento biológico dos índios eram as políticas de miscigenação, da quais
a mais famosa foi a do marquês de Pombal em 1755, mas que José Bonifácio endossou na tentativa de criar uma nação homogênea
correspondendo ao novo Estado do Brasil.
O século 19 agregou a noção de civilização à de catequização e em larga parte a substituiu. O "progresso" - para
o qual os índios estavam "atrasados" - sucedeu à "civilização", da República até o fim da Segunda Guerra Mundial. Depois do
"progresso", veio o "desenvolvimento". Em muitos sentidos, catequização, civilização, progresso e desenvolvimento são avatares
uns dos outros na medida em que preconizam mudança cultural. Mas há diferenças significativas.
Etapas da cobiça - O historiador José Oscar Beozzo distingue com razão dois grandes períodos da política
indigenista no Brasil: até cerca de 1850, os índios eram sobretudo cobiçados como mão-de-obra; a partir de 1850, cobiçavam-se
sobretudo as terras deles.
"Desinfestar os sertões" do país dos seus índios passou a ser entendido como condição de progresso. Aldeá-los
fora de seus territórios tradicionais era um modo de dar acesso às terras deles. O mapa das terras indígenas no Brasil de hoje é
o mapa das terras que até recentemente não interessavam a ninguém.
Foi com a cobiça de suas terras que os índios passaram a ser considerados como entraves, empecilhos ao
desenvolvimento. Agora um programa de assimilação passava a ser estratégico para tentar descaracterizar legalmente os índios
enquanto sujeitos de direitos territoriais, reconhecidos pelo menos desde 1680 e inscritos em todas as Constituições brasileiras
desde a de 1934.
As tentativas de "emancipação" dos índios das décadas de 1970 e 1980 repetiram estratégias do último quartel do
século 19 que dissolviam aldeamentos a pretexto de que os índios estivessem misturados com o resto da população.
"Desenvolvimento" foi o mantra do pós-guerra e em nome dele fez-se por exemplo a Revolução Verde [que disseminou
novas técnicas agrícolas]. Outra idéia mestra, provocada pelos horrores do racismo nazista, foi a do direito à igualdade,
inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, de 1948, e também na Convenção 107 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, essa respondendo ao racismo do apartheid.
O direito à igualdade, essencial sem dúvida, de certa forma obnubilou outro direito fundamental, o direito à
diferença. Sartre já dizia que a forma de racismo liberal era aceitar a igualdade dos homens desde que despidos de qualquer
especificidade cultural.
A grande inovação do final dos anos 1980 e que ganhou corpo nos anos 90 foi o reconhecimento desse direito à
diferença. A grande introdutora desse direito no âmbito internacional foi a Convenção 169 da OIT, adotada em 1989, que revisava
em grande parte a convenção de cunho assimilacionista de 1957.
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Benveniste mostrou que as categorias da
filosofia de Aristóteles eram as próprias categorias gramaticais do grego: calculem os riscos que corremos |
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Uniformidade nacional - No domínio da diferença, a questão da língua
foi sensível: é provavelmente o traço mais reconhecível de todo grupo étnico. Há pouco tempo ainda se proibia falar ou publicar
em catalão na Espanha, com a conseqüência - curiosa, aliás - de que há toda uma geração catalã que não sabe escrever sua língua
porque apenas a falava em casa, clandestinamente.
A idéia de que cada país deva falar uma única língua faz parte de uma concepção de
Estado do século 18, assente em uma única comunidade homogênea em todos os seus aspectos: religiosos, lingüísticos, culturais em
geral. Ora, países como esses são a exceção, e não a regra. Mas, durante pelo menos dois séculos, tentou-se no Ocidente dar
realidade a essa utopia.
No Brasil não foi diferente. Em 1755, o marquês de Pombal exigiu o uso do
português e proibiu o do nheengatu, um tupi gramaticalizado pelos jesuítas e introduzido pelos missionários na Amazônia.
Nos últimos 20 anos, a situação mudou consideravelmente: na Constituição de 1988
se assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas no ensino fundamental e agora abundam cartilhas em
línguas indígenas.
Há alguns anos, o município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, reconheceu
quatro línguas oficiais, das quais três são indígenas. E, agora, o IBGE anuncia que incluirá as línguas indígenas nas perguntas
do próximo Censo.
Todas essas iniciativas marcam uma distância clara da ideologia assimilacionista
de algumas décadas atrás. A diferença lingüística - e o Brasil tem pelo menos 190 línguas indígenas - passou a ser vista como
patrimônio.
Dessas 190 línguas e dialetos, a grande maioria é falada por menos de 400 pessoas.
Ora, a estrutura e a gramática das línguas encerram toda uma visão de mundo: Benveniste mostrou, por exemplo, que as categorias
da filosofia de Aristóteles eram as próprias categorias gramaticais do grego. Calculem os riscos que corremos.
[*] Manuela Carneiro da Cunha é antropóloga e professora da Universidade de Chicago. |
Site traz textos, fotos e vídeos sobre línguas indígenas
que correm o risco de desaparecer
Da Redação
As línguas indígenas em risco de extinção são o tema de um site
produzido pela Editoria de Treinamento da Folha. Lá é possível encontrar mais informações sobre os idiomas citados nesta
edição do Mais! e reportagens exclusivas.
Um mapa interativo mostra a distribuição de 190 línguas indígenas do Brasil - algumas delas extintas. O mapa é
complementado por textos, fotos e vídeos. Há também conteúdo multimídia sobre os akuntsus, canoés e caapores, que praticam a
única língua de sinais indígena catalogada no Brasil.
No site, há depoimentos dos últimos falantes do poianaua e um vídeo sobre a escola de sua aldeia. Também há um
documentário sobre os poliglotas de São Gabriel da Cachoeira. (AM), a Babel brasileira. Podem-se ainda ouvir palavras em xipaia.
O site pode ser acessado pelo endereço
http://treinamento.folhasp.com.br/linguasdobrasil. |
Crianças que falam a
língua avá-canoeiro, também ameaçada, navegam no rio Tocantins,em Goiás
Foto: Antônio Gaudério,
em 2 de outubro de 1995/Folha Imagem, publicada com a matéria
Monólogo paciente
Com apenas uma falante fluente, o idioma poianaua é ensinado em
sala de aula para que próximas gerações psosam reutilizá-lo
Luiza Bandeira
Enviada especial a Mâncio Lima (AC)
Parecem intermináveis os 30 segundos em que Railda Manaitá, 79,
interrompe a conversa para tentar lembrar, em silêncio, como se diz "bananeira" em poianaua. Para qualquer um, seria um "branco"
trivial. Mas, quando uma língua tem só três falantes, uma palavra esquecida é mais do que isso.
Railda olha para cima e se concentra. A insistência traduz o espírito dos poianauas: em um esforço conjunto, o
grupo indígena tenta recuperar um idioma que foi proibido há quase cem anos e resgatar, com isso, uma identidade que parecia
perdida.
A tarefa é árdua. Até hoje, a única história conhecida de língua que ressurgiu é a do hebraico, que perdeu seu
uso durante a diáspora judaica e ficou restrito às cerimônias religiosas por cerca de 1.800 anos. Foi recriado como língua
oficial em Israel.
O poianaua começou a desaparecer por volta de 1910, quando os índios foram seqüestrados e escravizados na
extração de borracha. A primeira providência dos seringalistas foi proibir o uso do idioma indígena e criar uma escola para que
todos aprendessem o português.
Quem falava poianaua era castigado. Tinha os olhos furados, dentes e unhas arrancados e era açoitado, de acordo
com o lingüista Aldir de Paula, da Universidade Federal de Alagoas. "Os patrões foram inteligentes. É pela língua que existe
controle social", diz.
Nos últimos 20 anos, morreram quase todos os falantes da língua, que eram crianças à época do contato. APós a
escravização, os índios passaram a ter vergonha do idioma, que ficou quase esquecido.
Hoje, os cerca de 500 índios poianauas vivem onde funcionava a fazenda, em Mâncio Lima (AC), quase na fronteira
com o Peru. Quem ainda fala a língua aprendeu escondido: além de Railda, seu irmão, Luiz Manaitá, 85, e o ex-cacique Mario
Puyanawa, 65, Mas Railda é a única que ainda é fluente na língua.
Desobediência - Criança nos anos de maior repressão, ela só lembra de ouvir falar na proibição uma vez.
"Mas minha mãe não obedecia". Em casa, longe dos olhos dos patrões, Joana Manaitá continuava a falar poianaua. Foi devido a essa
desobediência da mãe que ela e o irmão, Luiz, aprenderam o idioma.
Railda aprendeu a falar observando os mais velhos. Pegou os parentes de surpresa. "Ela vai falar nossa língua",
comemoraram quando pronunciou as primeiras palavras, conta Railda, repetindo a frase em poianaua.
Mas a transmissão cessou aí. Nenhum filho de Railda aprendeu a língua. A neta Joana, 31, diz que não aprendeu
porque, quando era criança, a identidade indígena não era valorizada. "A gente sabia que era índio, mas isso não mudava nada.
Ninguém queria aprender poianaua".
Foi somente com o início do processo de demarcação da terra que a cultura poianaua começou a ser valorizada. Em
2002, um ano após o reconhecimento pela Funai (Fundação Nacional do Índio), a escola local passou a se chamar Escola Estadual
Ixubãy Rabuy Puyanawa e adotou um modelo de ensino que valoriza a cultura indígena.
A partir daí, o local criado para destruir o poianaua se tornou o principal foco de resistência à extinção do
idioma.
A escola vai do ensino infantil ao médio. Todas as manhãs, os 232 alunos respondem à chamada em poianaua e
dançam músicas indígenas. Eles aprendem nomes de animais, de partes do corpo, números e frases simples em poianaua.
O conteúdo das disciplinas é traduzido pelo professor Samuel Puyanawa, filho de Mario, de quem herdou um caderno
com anotações em poianaua. Nas aulas de matemática, por exemplo, os nomes dos números são ensinados também em poianaua.
Mas, apesar do esforço, os resultados ainda são limitados. Nenhum aluno consegue manter um diálogo na língua.
Uma gramática está sendo produzida, mas o sucesso do projeto dos poianauas ainda depende de Railda. Só ela sabe, por exemplo, a
entonação das palavras.
Complexidade - Morador da aldeia, Jósimo Constante, 20, fala inglês e espanhol e tenta aprender o
poianaua. "Mas a lógica é bem mais complicada".
A complicação à qual se refere é reflexo de um sistema lingüístico que traduz uma forma diferente de enxergar o
mundo. São essas riquezas, escondidas na diversidade dos idiomas, que desaparecem quando morrem as línguas. No poianaua, por
exemplo, existem quatro formas diferentes de falar "nós": uma que inclui somente o interlocutor, outra para um grupo que não o
inclui, uma terceira que inclui o interlocutor e todos os presentes e uma que significa todos os seres, todas as criaturas.
Tantas palavras para "nós" são reflexo da importância do coletivo para a etnia. "Eles fizeram várias assembléias
até decidir escrever a língua e ensiná-la na escola. Levou muito tempo", diz a pedagoga Maristela Walker, da Universidade
Federal do Acre.
Os poianauas sabem que também vai levar muito tempo até o projeto de recuperação dar resultado. Como os pais não
falam, as crianças não têm como usar o conhecimento adquirido na escola em casa. Por isso, ninguém espera que os alunos comecem
a falar a língua naturalmente. "A idéia é que eles cresçam e ensinem o idioma para os filhos", diz a diretora da escola, Olinda
dos Santos, 49.
Mas paciência não parece ser problema para os poianauas. Depois de intermináveis
segundos, Railda Manaitá lembra da palavra: "xiku", diz, aliviada. E volta a contar suas histórias.
Coro da selva
Município em que se fala o maior número de línguas nas Américas
oficializa, além do português, três idiomas indígenas, fato inédito no País
Flávia Martin/Vitor Moreno
Enviados especiais a São Gabriel da Cachoeira (AM)
Português, espanhol, baniua, uanano, kuripako, nheengatu, uerequena,
tucano e arara. Luiz Laureano, 62, fala ou pelo menos entende cada uma dessas nove línguas. O auxiliar administrativo Marino
Fontes, 31, é fluente ou consegue entender seis idiomas. Eles não são os únicos poliglotas de São Gabriel da Cachoeira (AM). Na
cidade, a 860 km de Manaus, indígenas de 22 etnias dão um jeito de se comunicar em cerca de 20 línguas.
Banhada pelas águas do rio Negro, a cidade está estrategicamente localizada na tríplice fronteira do Brasil com
a Colômbia e a Venezuela, na região conhecida como Cabeça do Cachorro. Pela proximidade física, os são-gabrielenses incorporaram
o espanhol a seu caldeirão lingüístico.
Em 2002, a Câmara Municipal de São Gabriel aprovou a lei nº 145, que oficializou três dessas línguas - baniua,
nheengatu e tucano -, fazendo da cidade a primeira do país com língua oficial além do português.
Com 76,31% de sua população declarada indígena segundo o último Censo, São Gabriel, de quase 40 mil habitantes,
ocupa uma área maior do que Portugal. Os superlativos não param por aí. A cidade concentra o maior número de línguas das
Américas.
Exclusão - O lingüista Gilvan Müller, um dos idealizadores da lei, diz que antes da oficialização muitos
eram excluídos por não falarem o português, já que a língua é o canal de acesso aos serviços públicos.
"Havia uma situação em São Gabriel igual à da África do Sul na época do apartheid, em que a maioria era
indígena e, no entanto, a única língua oficial era a da minoria", diz Müller.
Um dos fatores que explicam a profusão de línguas da região é a tradição do casamento entre etnias diferentes.
Matrimônios na mesma etnia são considerados relações consangüíneas.
Andreza Andrade, gerente do Instituto Socio-ambiental, entidade que estuda as etnias locais há 23 anos, explica
que a língua paterna predomina, mas que as crianças aprendem a da mãe. Nas escolas indígenas, o português costuma ser aprendido
mais tarde.
A diversidade lingüística sobreviveu até ao nheengatu - ou língua geral -, introduzido por missionários na
tentativa de uniformizar as línguas indígenas e que contribuiu para a extinção de algumas delas. Hoje, o risco é que, com a
predominância do tucano, outros idiomas minoritários desapareçam.
A tentativa de oficializar essa diversidade não vingou. Depois da regulamentação da lei, em 2006, a prefeitura
tinha o prazo de um ano para providenciar a emissão dos documentos públicos nas três línguas, além do português. A sinalização
urbana, as lojas e as propagandas institucionais deveriam ir pelo mesmo caminho.
Nas ruas há poucas placas de sinalização, mesmo em português. Nem a Câmara Municipal nem o único hospital da
cidade ou a prefeitura possuem equipe de tradutores a postos, como previsto na lei. O Conselho Municipal de Política
Lingüística, que deveria ter sido criado para fiscalizar a aplicação da lei, tampouco saiu do papel.
A lei prevê também que a rádio municipal tenha programação nas três línguas. Atualmente, só há em duas. Em
tucano, Rigoberto Assis, da etnia uanana, apresenta o "Boa Noite, Rio Negro". A rádio tem ainda o "Desperta, São Gabriel", em
nheengatu. Gerente da rádio, Elke Oliveira diz que é difícil encontrar um locutor fluente em baniua.
As esperanças de fazer valer a lei foram renovadas em janeiro, quando ocorreu na cidade um fato inédito na
política brasileira: a eleição de prefeito, vice e presidente da Câmara indígenas. São eles, respectivamente: Pedro Garcia, da
etnia tariana, que fala tucano; André Fernandes e Rivelino Ortiz, baniuas. |
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